ODS 1
O Brasil é uma casa de farinha
A rotina de trabalho de uma casa de farinha do interior de Pernambuco nos ajuda a entender o país
Em dezembro de 1996, eu nasci. Por não haver hospital equipado na cidade, minha mãe precisou entrar às pressas no carro de um amigo da família, dono da casa de farinha em frente a nossa casa, viajar 25 km até Garanhuns e me parir no hospital Dom Moura. Depois de dois dias, fui levado para o endereço que respondo até hoje quando perguntado. E até hoje uso a casa de farinha como ponto de referência.
A cidade de Jupi, inserida no Planalto da Borborema, Agreste meridional pernambucano, a 206,9 km de Recife, 15.329 habitantes, ocupa a 5029º posição no ranking dos municípios brasileiros por média salarial mensal: apenas 8,5% da população ocupada formalmente, segundo o último censo. As cinco casas de farinha em atividade – São José, Santa Quitéria, Tradição, Produto Jupi e a GGA – funcionam como a principal alternativa de trabalho para parte da população que não consegue alcançar a formalidade.
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O surgimento das casas de farinha no Brasil remete ao século 16. No artigo “Vulnerabilidades, trabalhadores e casas de farinha: cenário de riscos no agreste de Pernambuco”, o geógrafo Antônio Pacheco de Barros Júnior explica que a produção em maior quantidade de farinha foi uma saída encontrada pelos portugueses para alimentar a população escravizada utilizando como mão de obra os próprios escravizados e a maneira indígena de transformar a raiz em farinha. Esse trabalho acontecia de forma manual. O artigo do pesquisador, que tem mestrado e doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente, destaca que, apesar de ter sido inventada a mais de 300 anos, a prática ainda hoje se utiliza da atividade manual direta de pessoas.
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Veja o que já enviamosE as condições de trabalho parecem também ter ficado presas ao passado. Em novembro de 2022, Ministério Público do Trabalho (MPT), de Pernambuco realizou uma força-tarefa em 45 empresas (casas de farinha) do Agreste, incluindo as de Jupi. Segundo o MPT, foram estabelecidos 21 Termos de Ajuste de Conduta (TAC). Ainda segundo o texto, entre as irregularidades encontradas, destacou-se: “instalações elétricas irregulares; máquinas sem proteção contra acidentes; ausência de equipamento de proteção individual (EPI); condições sanitárias precárias; inexistência de local para refeições em condições adequadas; não fornecimento de água”.
Visitei duas das cinco casas de farinha da cidade, a Produto Jupi e a São José. Em ambas, observei o ambiente e o ritmo do trabalho. Alguns dos trabalhadores eu já conhecia ou conheciam meu pai, minha mãe, irmãos. Aproveitei para conversar com alguns deles. Também conversei com trabalhadores de outras casas de farinha. Alterei todos os nomes que aparecem nesta reportagem por motivo de segurança dos entrevistados, que ajudaram a entender o trabalho realizado e os processos pelos quais a mandioca passa até virar farinha.
Do plantio à fábrica
A mandioca nem sempre é plantada próximo de onde posteriormente se tornará farinha. Do plantio à colheita (arranquio) de ciclo único pode levar até 16 meses; por isso, os donos das terras se organizam para preparar o solo logo em seguida da colheita. Quem planta hoje é dono de terra com o mínimo de tradição nesta área – quem me explica é Ana, 55, branca, que trabalhou por mais de 20 anos na administração de uma casa de farinha e de uma plantação do tubérculo na região.
“Para plantar mandioca em um hectare, o dono da terra gasta em média R$ 5 mil, sem contar o gasto com os trabalhadores”, conta ela. Os cuidados necessários com a preparação do solo, com a maniva-semente, com o preparo dos ramos, com o plantio, adubo, fertilizantes, maquinário, justificam, segundo Ana, os gastos. “É fácil lucrar o dobro do [valor] investido. Um hectare pode dar 15 toneladas de mandioca. Se vender o quilo a um real, são R$ 10 mil de lucro”, assegura. Ela comenta ainda sobre impactos causados no solo pela plantação seguida da outra, pelo uso de fertilizantes e maquinário. “A gente não tinha conhecimento se um produto estava prejudicando a terra”.
Depois que a mandioca é comprada pelos donos das casas de farinha, os mesmos trabalhadores que colhem as raízes, cortam dos troncos (maniva) e separam das folhas, carregam os caminhões. O transporte é terceirizado e encomendado pelo proprietário da fábrica. As cargas, que dependendo do modelo do caminhão e da demanda do comprador, podem chegar a pesar 30 mil quilos. “Quando a mandioca é vendida em grande quantidade assim, eles sempre negociam um preço abaixo” – diz Ana, acrescentando que 30 mil quilos de mandioca podem ser comprados por R$ 20 mil.
Na casa de farinha
Ao chegar na casa de farinha, o responsável confere a placa e o nome do motorista. Em seguida, o caminhão é pesado. Uma nota é emitida. Da conta, é retirado o peso original do veículo. Só depois que essas informações são checadas, a matéria prima está pronta para ser descarregada.
No dia em que conversei com Joaquim, 31, negro, ele havia acordado à meia noite para cumprir sua função dentro da casa de farinha: descarregar o primeiro caminhão de mandioca do dia junto com um colega. Em casa, deixou os três filhos e esposa dormindo; mas logo Edna, 36, negra, acordou pois trabalha na mesma casa de farinha do marido. “O caminhão chega com 15, às vezes 20 mil quilos de mandioca” conta Joaquim. “A gente leva uma hora, uma hora e meia, pra descarregar tudo. Uma garfada atrás da outra, não pode parar porque se parar dá preguiça e você não termina”, continua.
O som do garfo tipo de jardineiro raspando no piso da carroceria do caminhão faz parte da rotina da minha família assim como das outras que moram em frente à casa de farinha. À noite, o som é ainda mais presente.
Á meia luz, às vezes na chuva, mas sempre com a coluna curvada, a primeira etapa do trabalho dos descarregadores é concluída. Em seguida, Cléber, 32, negro, chega por volta das duas da manhã e dá início a distribuição da mandioca no pátio principal onde majoritariamente mulheres desempenham a próxima etapa: a raspagem. A divisão é fundamental para calcular o valor do pagamento posteriormente.
O garfo, o caçuá (cesto grande, sem tampa, feito de cipó) e a balança são os instrumentos que Joaquim e Cléber usam durante o seu trabalho. O objetivo de Cléber é fazer pequenos montes de, inicialmente, 100 quilos de mandioca. Quem diz quantos quilos cada mulher irá raspar é o gerente ou dono, em ordem previamente anunciada. As mulheres começam a chegar às três da manhã em ponto.
Raspagem
Maria, 41, negra, saí de casa às 2h50 da manhã. Mora perto da casa de farinha onde trabalha, e começa a descascar as raízes às três da manhã enquanto seus dois filhos – o mais velho de oito anos e a mais nova de três anos – dormem na casa da avó. “Eu chego às três da manhã porque se eu raspar mais eu ganho mais”, disse Maria. “Um caçuá de mandioca tem 100 quilos e custa R$ 6. Se eu raspar cinco caçuás em um dia, ganho R$ 30. Se eu raspar dez [1000 quilos], eu ganho R$ 60, mas a gente só recebe por semana”, conta, enquanto toca os dedos inchados pelos movimentos repetitivos.
O pagamento máximo que Maria recebeu após uma semana de trabalho foi R$ 250. “Começou a sair muita farinha pro Pará e a gente teve que aumentar a produção”. Em uma semana, ela diz ter raspado mais de 4 mil quilos de mandioca. Em média, 50 mulheres trabalham como raspadeiras em cada casa de farinha.
Os instrumentos que Maria usa em seu trabalho são faca, marisco (parecido com os raspadores de coco seco), um avental e um banco de 20 centímetros sem apoio para as costas, onde fica sentada das 3h da manhã até às 7h – quando vai tomar café da manhã em casa -, das 7h30 às 10h da manhã, quando para para o lanche, das 10h30 até o meio dia, quando vai almoçar, e de uma da tarde até, às vezes, às quatro (16h). “O marisco custa R$ 5, a faca das mais simples é R$ 30, o avental na verdade é um pano [tecido] que eles dão pra gente e o banco eu levo de casa”, conta Maria, que paga o marisco e a faca para o trabalho.
Para a raspadeira, nem as dores nas costas e nas mãos, nem o barulho das máquinas operando, se comparam ao incômodo de ter que ficar ausente da rotina dos filhos. “Meu filho mais velho, às vezes, diz que vai ficar acordado pra não me deixar ir para o trabalho. Ele sempre acaba dormindo e eu vou, minha mãe fica com eles”, relata Maria que trabalha como raspadeira desde de criança. “Só fiz até o ensino médio porque minha família não tinha condições para que eu continuasse estudando. Tenho que dar graças a Deus por ter a casa de farinha”, diz ela, que é beneficiária do Bolsa Família e cria seus dois filhos sem a ajuda do pai das crianças.
Cevadeira
Depois que a mandioca está raspada, ela é lavada, e colocada na cevadeira onde é quebrada, formando uma pasta. Márcio, 29, negro, explica o que acontece: “a mandioca é jogada dentro daquela baía onde é empurrada para a cevadeira”. Dentro da máquina existe uma peça cilíndrica e pontiaguda girando em alta velocidade que quebra a mandioca ao entrar em contato.
Márcio me conta que trabalha em casa de farinha desde criança, acompanhando os pais, e que estudou até o ensino fundamental na mesma escola estadual onde estudei. Eu me lembro dele e da vez que conversamos por horas sobre Dragon Ball.
O tour pela Casa de Farinha continua: ele me mostra a pasta em um tanque, o cano que suga a pasta e a leva para outro estágio da cevadeira. Lá é retirado o líquido venenoso chamado de manipueira que tem como principal finalidade servir como fertilizante, restando apenas um farelo em gomos. “Antigamente a gente tinha que fazer [manualmente] quase tudo”, explica Márcio. Ainda faz parte da função dos trabalhadores empurrar a mandioca para dentro da cevadeira. “Eu já vi gente perdendo dedo na hora de prensar a mandioca na cevadeira, prender a roupa”, continua.
Márcio veste calça de corrida azul, sapato de construção, uma camisa cinza de manga curta e um boné na cabeça. Seu rosto e pelos do braço estão levemente esbranquiçados pela farinha, assim como a sua roupa, o chão, o ar e todo o maquinário. Não usa máscara, protetor auricular, luvas ou qualquer outro EPI (equipamento de proteção individual). O cheiro da farinha é presente e o calor também. O teto é de telhas intercaladas pelas de cerâmica e as transparentes, para a luz entrar. O barulho das máquinas operando nos obriga a aumentar o tom de voz enquanto conversamos.
Prensa
O farelo em gomos é jogado dentro da prensa que o tritura – tornando-o mais próximo do aspecto de farinha – e depois é peneirado. A transição entre uma máquina e outra é feita manualmente: um dos trabalhadores junta o farelo em um balde, joga na prensa e, depois, na peneira. Ao menos quatro pessoas estão envolvidas nessa etapa, que revezam os horários de entrada, saída e pausas.
O horário do almoço é organizado para que em nenhum momento a prensa fique sem supervisão. “Prefiro trazer marmita, porque você acaba perdendo mais tempo indo e voltando do que comendo e descansando. E aqui a gente não pode perder tempo”, diz Márcio que trabalha, em média, dez horas por dia.
A dinâmica do trabalho faz com que seja incorporado nos trabalhadores o raciocínio de que são os únicos responsáveis pelo seu ‘salário’ ao mesmo tempo que, quanto mais rápido realizarem as tarefas, mais cedo estão livres para descansar. Cléber me conta que. no tempo livre. gosta de subir na sua moto, comprada de segunda mão após anos de economia, colocar seus dois filhos – um de seis anos e o outro de quatro – em cima, e sair andando pela cidade. “Espero que meus filhos consigam um trabalho melhor”, deseja Cléber.
A quantidade de farinha ensacada diz quanto os funcionários que operam as máquinas – posições 100% ocupadas por homens – vão receber. “A gente recebe pela produção, pela quantidade de sacos que der”, afirma Joaquim. Pergunto quanto recebem por cada saco de farinha produzido: “60 centavos” (R$ 0,60).
Nas visitas que fiz às casas de farinha, procurei confirmar essa informação junto dos proprietários. Na São José, não fui autorizado a conversar com os trabalhadores ou circular dentro da casa de farinha; na Produto Jupi, o gerente pediu que eu falasse sobre esse assunto com o dono. Eu o esperei por uma hora mas ele não apareceu.
Falei com Márcio depois, fora do horário de trabalho, ele repetiu o valor pago pela casa de farinha – sessenta centavos por cada saco de 50 quilos. “Nos últimos meses, a gente tá produzindo farinha que vai pro Pará. Chegamos a ganhar R$ 500 em uma semana”, disse ele. 833 sacos de 50 quilos cada foram produzidos em apenas uma casa de farinha em uma semana. “É puxado, um trabalho pesado. Mas é o único serviço que tem aqui em Jupi”, disse Cléber que trabalha há mais de 13 anos em casas de farinha.
Forno
É nessa etapa que, dependendo da demanda, os tipos de farinha são produzidos – amarela, fécula, de goma e a tradicional, branca. Nos fornos, a quase farinha é embolada, mexida e remexida sob as fornalhas alimentadas por madeiras. Durante o cozimento, é adicionado substâncias para finalmente termos as farinhas, no caso da branca, amido gelatinizado.
Maciel, 26, negro, me fala que já trabalhou em quase todas as etapas do processo e que gosta de trabalhar no forno. “É a parte mais leve, eu acho. Não preciso pegar muito peso, não me sujo muito e no inverno eu não fico com frio”, afirma. A distribuição das funções é novidade, reflexo das ações mais recentes do MPT. Na conversa com Maciel, também fiquei sabendo da movimentação feita por uma casa de farinha para assinar a carteira de trabalho dos trabalhadores homens.
Charles, 40, negro, trabalha no forno ao lado de Maciel. Ele faz parte da primeira turma de homens formalizados pela casa de farinha. “Nunca trabalhei de carteira assinada, sempre foi fazendo bico, sendo ajudante de pedreiro, cuidando de terra dos outros”, relembra. Charles teve a carteira assinada no início do mês de novembro de 2023 e me conta que nunca teve férias remuneradas, décimo terceiro, seguro desemprego e outros direitos garantidos pela Consolidação das Leis de Trabalho (CLT). “A melhor vantagem da carteira assinada é a aposentadoria”, acredita. A aposentadoria por idade exige que o segurado tenha idade mínima de 65 anos e 15 de contribuição; já na modalidade de tempo de contribuição a exigência mínima é de que o segurado tenha contribuído por 35 anos.
Nesse meio tempo, entre a conversa com um trabalhador e outro, a farinha fica pronta para ser ensacada. Os sacos de farinha branca de 50 quilos, vendidos para indústrias alimentícias, são o principal produto. Um funil de quase dois metros de altura ajuda os trabalhadores a encher os sacos de ráfia com a farinha. Em seguida, uma máquina de costura de mão é usada para fechar a boca dos sacos.
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Lucas Bezerra é estudante de Comunicação Social na Universidade Federal de Pernambuco. Integra o Observatório da Vida Agreste, é fã da música popular brasileira e produz de Jupi, cidade agrestina pernambucana onde cresceu e vive.