Em seu pouco mais de século e meio, o futebol produziu vários craques, incontáveis esforçados e uns poucos heróis. Ostenta, ao menos, uma heroína: Marta. A alagoana que veste a camisa 10 da seleção brasileira há mais de uma década joga em 2019, aos 33 anos, provavelmente sua derradeira Copa do Mundo. À frente de um time estropiado (ela mesma toureia uma lesão para entrar em campo), virou, em 19 de junho de 2019, a maior artilheira de mundiais – incluindo todos os sexos. Ao marcar pela 17ª vez, superou o alemão Miroslav Klose e, no bojo, garantiu a vitória na boa atuação brasileira contra a Itália.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Mais: Nos Jogos Olímpicos com recorde de atletas LGBT+, Marta estreia dedicando gol à noiva
Na verdade, o que ela e suas contemporâneas enfrentam vai muito além da má vontade dos desinteressados por esporte. Ainda hoje, no Brasil, muita gente trata o futebol feminino como algo que deveria ser proibido. Não basta ignorar – tem de impedir que exista.
[/g1_quote]A maior façanha da atacante não acontece quando a bola rola. A canhota Marta precisou superar o machismo de toda uma sociedade para vencer no futebol. Está por ser inventado campeonato mais difícil do que esse. No país onde a craque nasceu, pais e mães ainda reprimem meninas que se interessam pelo esporte mais popular. Os garotos, mal aprendem a andar, ganham uma bola, na admirável massificação espontânea que nos faz o maior fabricante mundial de talentos futebolísticos. As meninas têm de se contentar com bonecas.
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Veja o que já enviamosAté para ser exaltada por seus gols e atuações, Marta sofre com barbaridades machistas. “Joga como homem”, admiram-se os marmanjos. “Barrava fácil fulano, beltrano, sicrano”, completam os chegados a ironias igualmente estúpidas, referindo-se a degradados dos seus times de coração.
Na verdade, o que ela e suas contemporâneas enfrentam vai muito além da má vontade dos desinteressados por esporte. Ainda hoje, no Brasil, muita gente trata o futebol feminino como algo que deveria ser proibido. Não basta ignorar – tem de impedir que exista.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Marta, eleita melhor do mundo seis vezes, recebe algo em torno de US$ 400 mil – perto de R$ 1,6 milhão – por temporada. Seu congênere masculino, o português Cristiano Ronaldo embolsou 113 milhões de euros – ou R$ 512 milhões – no mesmo período. O salário dele é 320 vezes o dela
[/g1_quote]Alinha-se totalmente ao machismo que está nos alicerces da sociedade brasileira e a preconceitos planetários. Jogadora do Orlando Pride (EUA), Marta, eleita melhor do mundo seis vezes, recebe algo em torno de US$ 400 mil por temporada. Seu congênere masculino, o português Cristiano Ronaldo, 34 anos, dono de cinco títulos semelhantes (um a menos, prest’enção), embolsou € 113 milhões no mesmo período. O salário dele é 320 vezes o dela; ela recebe 0,31% dos vencimentos dele.
A diferença poderia ser grande, diante do longevo investimento que irrigou o jogo dos rapazes, contra a recente – e tímida – aposta nas moças. Mas não precisa ser um abismo mesmo na comparação de Marta com qualquer zé-mané dos clubes brasileiros da Série A. Nos mais endinheirados, os aproximadamente R$ 130 mil mensais da artilheira de todas as Copas pagam jovens promessas, recém-desembarcadas das divisões de base.
Em todos os esportes, o machismo está presente, mas entre os inquilinos do topo, outras modalidades apresentam menos desequilíbrio. No tênis, o sérvio Novak Djokovic, 32 anos, número 1 do mundo, acumula US$ 125,7 milhões em prêmios; a japonesa Naomi Osaka, líder feminina, com somente 21 anos, soma US$ 11,35 milhões – pouco menos de 10%, na carreira muito mais curta. A americana Serena Williams, 37 anos, principal nome do tênis feminino, embolsou US$ 84 milhões com seus títulos, ou 67% do pago ao líder do ranking masculino.
A luta pela igualdade às mulheres vem de longe no esporte das raquetes. Nos quatro principais torneios (o Grand Slam), o US Open, em Nova York, paga prêmios iguais desde 1973; Rolland Garros, em Paris, adotou a isonomia em 2005; o Australian Open, em Melbourne, no ano seguinte; Wimbledon, em Londres, o maior de todos, o fez em 2007. No futebol, a estrada da desigualdade ainda é longa – a França, campeã da Copa da Rússia, recebeu cheque de US$ 38 milhões; a seleção que erguer o troféu do Mundial feminino receberá US$ 4 milhões, pouco mais de 10%.
Para além dos números, a desigualdade futebolística alimenta-se do preconceito. Como bem observou Marcelo Barreto n’O Globo, há vôlei masculino e feminino, basquete feminino e masculino, tênis, natação, boxe, atletismo – tudo nos dois gêneros. No mais popular esporte de todos, só existem futebol feminino e… futebol. Intrusas no protetorado macho – eis o epíteto do jogo.
Nem entre os encarregados da seleção o machismo dá trégua. Marco Aurélio Cunha, o coordenador das equipes femininas da CBF, confessou sem constrangimento ao repórter Tino Marcos, da TV Globo, sentir “pressão feminista” para ter mulheres trabalhando com as jogadoras. O pacato Vadão comanda Marta e suas companheiras nos campos da França.
A Copa serve como ensaio de uma virada nesse jogo. A Globo apostou na cobertura e na transmissão ao vivo da competição e tem colhido boas audiências. Empresas mais modernas dispensaram funcionários nos dias de partidas da seleção, como no torneio masculino. Chega tardio o reconhecimento a uma geração de mulheres – lideradas pela heroína Marta – que fez a modalidade existir no país de Pelé e Zico.
Durante muito tempo, o futebol feminino foi proibido por lei no Brasil. A maluquice, implantada em 1941 por Getúlio Vargas, caiu apenas em 1979, mas não adiantou muito – a seleção das mulheres estreou somente em 1986 e não houve campeonatos relevantes no país até 2019, quando a CBF decretou que os clubes da primeira divisão têm de manter times femininos.
Você aí não sabe, mas o campeonato nacional, após nove rodadas, apresenta o Corinthians na liderança e o Santos em segundo. A primeira fase vai até agosto, classificando oito equipes ao mata-mata (numa vantagem sobre os homens e seu tedioso torneio de pontos corridos). São 16 participantes – ou seja, alguns clubes desrespeitam a lei. O mais tradicional é o Santos, com suas Sereias da Vila, em atividade há quatro temporadas e atuais vice-campeãs da Libertadores.
Atualmente em nono lugar, está um fenômeno do futebol feminino por aqui. O Esporte Clube Iranduba da Amazônia, da cidade homônima, na região metropolitana de Manaus, chegou a ter média de 15 mil pessoas por jogo, em 2017. Ficaria, naquele ano, à frente de grifes como Botafogo, Atlético-MG, Cruzeiro e Santos. O Hulk da Amazônia, fundado em 2011, inexiste no futebol masculino, mas mostra força no feminino. Hoje, tem como estrela a meia Andressinha, da seleção.
Em outros países, o cenário é bem diferente. Em março passado, 60.739 pessoas foram ao Wanda Metropolitano, estádio novinho do Atlético de Madrid (palco da final da última Champions League masculina), assistir à vitória do time da casa sobre o Barcelona por 2 a 0, pela Liga Iberdrola, no sexto maior público da história, recorde entre clubes. O primeiro geral é a final da Copa do Mundo de 1999, no Rose Bowl (EUA), com 90.185 torcedores para ver Estados Unidos x China.
Mas quando terminar o Mundial da França, no dia 7 de julho – ou antes, numa eventual eliminação – as brasileiras seguirão sua luta pelo prosaico direito de jogar bola. O machismo continuará em campo, como adversário poderoso. Ao menos, haverá o orgulho de, apesar da goleada de pesares, ser daqui a artilheira de todas as Copas, de todos os sexos. Todas as homenagens à heroica Marta serão poucas.
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