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A fome invisível de quem entrega comida

Pesquisa escancara a vulnerabilidade dos entregadores que trabalham por aplicativos no Brasil

ODS 2ODS 8 • Publicada em 11 de abril de 2025 - 09:40 • Atualizada em 11 de abril de 2025 - 09:42

No labirinto caótico das grandes cidades, eles são figuras onipresentes, cruzando avenidas e vielas em suas motos e bicicletas, carregando nas mochilas a promessa, muitas vezes, de uma refeição quente na porta de casa. Mas, por trás da agilidade e da aparente independência, pulsa uma realidade bem mais dura, como a vivenciada por Amsterdan Sousa, ou simplesmente Mister, um trabalhador por aplicativo que dedica cerca de seis horas diárias às entregas.

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“A alimentação é muito complicada, na maioria das vezes a gente passa o dia todo só com um salgado”, relata Amsterdan. A dificuldade em encontrar locais para comer, esquentar uma marmita ou sequer usar um banheiro durante a jornada expõe uma das facetas mais cruéis da rotina desses profissionais. E a instabilidade financeira é uma sombra constante: “Dependendo 100% das entregas, seria um pouco complicado viver só disso… hoje a gente consegue bater a meta, amanhã a gente não sabe”.

O entregador Amstendan Sousa, o Mister, em debate sobre trabalho com aplicativos no Rio: "A alimentação é muito complicada, na maioria das vezes a gente passa o dia todo só com um salgado" (Foto: Arquivo Pessoal)
O entregador Amstendan Sousa, o Mister, em debate sobre trabalho com aplicativos no Rio: “A alimentação é muito complicada, na maioria das vezes a gente passa o dia todo só com um salgado” (Foto: Arquivo Pessoal)

A voz de Amsterdan encontra eco diante dos dados da mais recente pesquisa da Ação da Cidadania, intitulada “Entregas da Fome”, que investigou a insegurança alimentar domiciliar entre trabalhadores de aplicativos de entrega de comida em São Paulo e Rio de Janeiro. Os resultados, como aponta Rodrigo ‘Kiko’ Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, são alarmantes e revelam uma vulnerabilidade muito além do esperado. “A gente já tinha uma expectativa de que a gente acharia dados de insegurança alimentar similares ao que a gente tem de média no Brasil, né? O que a gente não esperava é que esses valores fossem acima da média”, declara Kiko Afonso.

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A pesquisa revela que 32% dos entregadores nas duas capitais enfrentam insegurança alimentar em seus domicílios, e 13,5% vivenciam restrição alimentar moderada e grave. Esse percentual de restrição alimentar severa contrasta com a situação esperada para trabalhadores ativos, como frisa o diretor: “Afinal, quando a gente olha pessoas em insegurança alimentar moderada e grave, normalmente elas não estão trabalhando”.

A realidade de Amsterdan, que muitas vezes passa o dia com apenas um salgado, se conecta diretamente com a alta prevalência de insegurança alimentar identificada no estudo. A pesquisa também detalha as condições laborais precárias enfrentadas por essa categoria:

  • 91,5% consideram o trabalho de entregador como sua ocupação principal.
  • 56,7% trabalham todos os dias da semana.
  • 56,4% cumprem jornadas de trabalho de 9 horas ou mais por dia.
  • Uma parcela significativa não possui proteções básicas: 90% não têm seguro saúde, 90,6% não têm seguro de vida e 72,2% não contribuem para a previdência.
  • A exposição a riscos é alta, com 41,3% dos entregadores relatando já ter sofrido algum tipo de acidente durante o trabalho, sendo que 16% precisaram se afastar por conta desses acidentes.

A falta de pontos de apoio adequados, mencionada por Amsterdan como uma de suas maiores dificuldades, é um reflexo da invisibilidade e da falta de estrutura para esses trabalhadores. Sem locais para descansar, carregar o celular, usar o banheiro ou esquentar uma refeição, a jornada se torna ainda mais exaustiva e desumanizadora.

É preciso que haja uma regulação. E que o governo coloque essa regulação no sentido de colocar garantias mínimas para esses trabalhadores

Kiko Afonso
Diretor-executivo da Ação da Cidadania

Para Kiko Afonso, os dados da pesquisa escancaram a falha do modelo de negócios das plataformas em garantir condições mínimas de sobrevivência para os entregadores. “Quando você percebe que um entregador desse, que trabalha muito tempo, mesmo assim tem uma condição de insegurança alimentar, isso mostra claramente que esse modelo falha em dar condições mínimas para esses trabalhadores de sobrevivência”, afirma. A lógica de priorizar o lucro da empresa e o preço pago pelo consumidor em detrimento da dignidade do trabalhador é duramente criticada: “O lucro da empresa e o quanto a pessoa quer pagar na ponta não pode estar acima da dignidade do trabalhador”, acrescenta.

A pesquisa também traça um perfil socioeconômico dos entregadores, revelando uma população majoritariamente masculina (93,9%), jovem (mais de 60,2%), e negra (mais de 67,4%), com ensino fundamental e médio completos (76,4%), e muitos sendo chefes de família (66,6%). Essa caracterização reforça a ideia de que a atividade de entrega por aplicativo se tornou, para muitos, uma das poucas alternativas de geração de renda em um cenário de crescente informalidade e desemprego.

Trabalhadores de entregas por aplicativo com suas motos no Centro do Rio: 32% dos entregadores nas duas maiores cidades do país enfrentam insegurança alimentar em seus domicílios (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil - 06/03/2024)
Trabalhadores de entregas por aplicativo com suas motos no Centro do Rio: 32% dos entregadores nas duas maiores cidades do país enfrentam insegurança alimentar em seus domicílios (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil – 06/03/2024)

Apesar da divulgação dos dados, Kiko Afonso se mostra cético quanto a uma mobilização espontânea das empresas de plataforma para reverter esse quadro. “As empresas sabem dessas informações. Elas guardam a sete chaves os dados e pesquisas, informações que eles têm sobre seus entregadores… Para eles, eu tenho certeza, que não é nada surpreendente”.  A prioridade, segundo o diretor, parece ser a expansão e o aumento do lucro a qualquer custo, negligenciando o bem-estar de seus trabalhadores.

Uma esperança reside, então, na conscientização da sociedade e na pressão por regulamentações governamentais que estabeleçam garantias mínimas para esses profissionais. “É preciso que haja uma regulação. E que o governo coloque essa regulação no sentido de colocar garantias mínimas para esses trabalhadores”, argumenta Kiko Afonso, adicionando que o Estado acaba por subsidiar o lucro das empresas ao arcar com os custos de acidentes e futuras aposentadorias de trabalhadores que não contribuem para a seguridade social.

A pesquisa “Entregas da Fome” não é apenas um levantamento de dados; é um grito de alerta sobre a fragilidade de um modelo de trabalho que se sustenta, muitas vezes, na exploração e na privação de direitos básicos. A história de Amsterdan Sousa e os números da Ação da Cidadania nos convidam a repensar o preço da conveniência e a reconhecer a humanidade e a vulnerabilidade daqueles que levam alimento às nossas portas, mas que, ironicamente, muitas vezes não têm o que comer.

É urgente que a sociedade, o governo e as plataformas compreendam que não se pode construir um negócio sobre a fome tendo como principal entrega, a precariedade.

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