Com 70 quilômetros de distância que as separa, as cidades baianas de Remanso e Pilão Arcado, no semiárido, compartilham semelhanças. Às margens do lago artificial da Usina de Sobradinho, ambas foram reconstruídas entre as décadas de 1970 e 1980, quando a barragem que moveu cerca de 71 mil pessoas de suas casas deixou submersos os territórios originais e parte da história de cada lugar.
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Hoje, municípios que dividem um passado temem ainda um futuro em comum: enquanto as demais cidades da região acumulam queixas relacionadas à chegada de eólicas e mineradoras, Remanso e Pilão Arcado – e especialmente as áreas rurais de ambos os municípios – são áreas de interesse para ambas as atividades.
Em 2023, a Bahia bateu o recorde brasileiro de novos empreendimentos no setor eólico, com 50 novas usinas inauguradas, totalizando 312 no estado. O investimento ultrapassou os R$ 10 bi. Ao mesmo tempo, anunciou a descoberta de uma província minerária na exata região onde estão as duas cidades.
“Essa região do Sertão baiano, onde estão Remanso e Pilão, está inteiramente mapeada por grandes empresas de energia eólica e principalmente por mineradoras. Hoje, é inclusive possível fazer parte desse trabalho por satélite, o que dificulta ainda mais a participação da população”, comenta Carivaldo dos Santos, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Bahia que há duas décadas atua junto aos territórios rurais da região.
“Também vale dizer que uma prática muito comum dessas grandes empresas é a reserva de área. Dizem que há um plano para aquele terreno após os estudos, mas passam anos sem voltar ali. O objetivo maior, na verdade, é evitar que uma outra empresa chegue”, completa. Até o momento, porém, não é possível afirmar com exatidão os planos de cada empresa para a região.
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Veja o que já enviamosPresidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Remanso, Domingas Oliveira compartilha do temor de ter o seu modo de vida prejudicado, mas reforça, ainda, o incômodo pela forma como a presença dessas empresas surge como uma imposição. “Nós [trabalhadores rurais] não gostamos nem um pouco da quantidade de estudos que acontecem na nossa região sem qualquer explicação. Acho que isso diz sobre a forma como os empreendimentos devem ocorrer e penso que isso pode afetar muito negativamente o modo de vida tradicional”, diz.
E, se em Remanso a chegada dos aerogeradores é um forte palpite que ganha corpo com o plano econômico do estado da Bahia, bastante voltado ao setor, em Pilão Arcado já é possível cravar uma data: em janeiro de 2026 deve estar em pleno funcionamento o Complexo Eólico Pilão Arcado, da empresa VILCO energias renováveis – que desde 2010 funciona em parceria com a dinamarquesa EMD International A.S. “O Projeto teve a campanha de medições anemométricas iniciada em abril de 2018 e a potência instalada em desenvolvimento é de 4.380 MW. Nesta região há vários projetos eólicos em desenvolvimento, construção e também em operação”, diz a página do empreendimento.
Apesar disso, lideranças comunitárias do entorno afirmaram não saber muitos detalhes sobre o assunto. “Nós ainda não temos informações sobre quais comunidades arrendaram seus terrenos ou quais os planos exatos da empresa”, reforça Cíntia Araújo, presidente da União das Associações de Fundo de Pasto de Pilão Arcado (UNAFPPA). “Dizem que foi tudo mapeado de avião, mas nós nunca autorizamos nada. Em 2019, 2020, começou a ser comum o aparecimento de pessoas de carro, com roupa de empresa, que a gente nunca sabe o que foi fazer lá. Depois que a gente entende que era mapeamento”, comenta o agricultor João Luiz Amorim, morador da comunidade tradicional de Fundo de Pasto de Salinas Grande, em Remanso – onde não há obras conhecidas por enquanto.
A presença de profissionais que realizam estudos nos terrenos, porém, parece funcionar como um lembrete de que o espaço onde estão é uma área cobiçada. “Agora está parado. Acho que não tem mais o que mapear”. O agricultor, que participa de atividades sindicais e encontros comunitários, diz não saber informações sobre quais empresas já observaram o lugar onde vive em Remanso. Questionado se já sentiu o desejo de, em algum momento, arrendar suas terras por um valor à altura, João ri: “a gente vende e depois vive de quê?”.
Província minerária
De acordo com a Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM), as cidades de Remanso e Pilão Arcado – além do município de Campo Alegre de Lourdes, onde, em setembro de 2023, três pessoas foram baleadas em conflitos agrários relacionados à grilagem de terras – compõem uma recém-descoberta província minerária de enorme potencial.
O estudo aponta a presença de ferro-titânio-vanádio, níquel-cobre-cobalto, fosfato, ferro, ouro, metais básicos e terras raras. Até o fim deste ano, a região passa então por um “programa extensivo de sondagem”, nas palavras da própria CBPM, para concluir com exatidão o potencial minerário da área que pode chegar a 100 quilômetros e transformar a Bahia na segunda colocada em produção mineral do país, ultrapassando o Pará e seguindo atrás apenas do estado de Minas Gerais.
“As comunidades sentem sempre que vivem sob ameaça desses grandes empreendimentos [eólicas e mineradoras] porque nós sabemos que eles chegam, passam por cima do nosso modo de vida, não respeitam e já começam a fazer a pesquisa. Apesar disso, nós nos organizamos politicamente por meio de associações para tentar nos preparar para essas coisas”, comenta Cíntia Araújo. De acordo com a Agência Nacional de Mineração (ANM), entre 2017 e 2021 a Bahia investiu mais de R$1,5 bilhão (contabilizando investimentos públicos e privados) em pesquisa mineral.
Devido à demografia específica das cidades, que proporcionava – desde o período anterior à década de 1970 – certo afastamento entre as populações da beira do rio (conhecidos como beiradeiros) e moradores da área mais seca da caatinga (os caatingueiros), o grupo diretamente removido pela chegada da Usina de Sobradinho não necessariamente é composto pelas mesmas famílias que, historicamente, ocupam as comunidades tradicionais mais ameaçadas neste momento. Apesar disso, é importante destacar que o impacto da represa não alcançou apenas aqueles que necessariamente perderam seus lares e, ainda, que dinâmica de apropriação historicamente se repete no Sertão nordestino.
A pesquisadora e professora Mariana Traldi, autora da tese Acumulação por despossessão: a privatização dos ventos para a produção de energia eólica no semiárido brasileiro, critica destaca o fato de que muitas das empresas que atuam no semiárido baiano são transnacionais autorizadas pelo Estado brasileiro a reforçar um ciclo que, de maneira simplificada, leva para outros países a riqueza que sequer chegou a ser distribuída entre os principais afetados pelo empreendimento.
“O que se vê nesses casos é a transferência da riqueza produzida no interior semiárido brasileiro, a partir da apropriação de um bem comum, financiada por um banco público brasileiro (…), para a esfera financeira internacional”, observa o estudo.
“Na minha tese chamei de acumulação por despossessão porque é um elemento do imperialismo. A apropriação de riqueza naturais na periferia do sistema capitalista para acumulação de capital e acumulação de riquezas que vão ser direcionadas novamente para aquilo que antigamente era a metrópole e atualmente são os países do centro do sistema capitalista”, afirma Traldi ao #Colabora.
“Na prática, o que a gente vê são grandes empresas que se apropriam de uma riqueza natural (e gratuita, no caso dos ventos) em detrimento do modo de vida dessas populações. Ao fim, muitas são as promessas e em geral elas não se concretizam nem em termos de valores, nem em termos de geração de emprego e, em muitos casos, chegam a trazer prejuízos à saúde, impedimentos de acesso a esses territórios, proibição de determinados usos da terra… em resumo, vão inviabilizando o modo de vida dessas comunidades”, diz a pesquisadora.
Comunidades tradicionais de Fundo de Pasto
Outro traço em comum não só entre Pilão Arcado e Remanso, mas entre todos os municípios que circundam o lago artificial da Usina de Sobradinho, é a forte presença de comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto. São elas as mais ameaçadas pelo atual modelo centralizado de energias renováveis, por exemplo, como foram no passado atingidas pela construção da Hidrelétrica da Chesf.
Os Fundos de Pasto são comunidades centenárias, tradicionais, que têm um modo de vida próprio. Essas comunidades normalmente estão nas chamadas áreas devolutas, ou seja, legalmente pertencentes ao estado da Bahia – “o que significa que não há uma escritura, um título que garanta a posse desses moradores”, explica Carivaldo dos Santos.
Entre as características dessas comunidades está o uso do território de maneira comunitária, com a criação de animais (quase sempre de pequeno porte, no caso do Sertão baiano) e uma outra área “individual” para produção de alimentos e ração para os animais.
O uso do território e o modo de vida estão de acordo com a definição de Povos e Comunidades Tradicionais do Decreto 6040/2007, que institui uma política nacional de desenvolvimento sustentável desses territórios. Muitas dessas comunidades, porém, não possuem um registro formal que garanta, inclusive, a produção ambiental. “Uma coisa que ocorre de maneira praticamente igual em todas as comunidades tradicionais ameaçadas por grandes empreendimentos é uma tentativa [por parte das empresas] de colocar essa área como um lugar que só tem pobreza, que carece de desenvolvimento e que, sem aquele projeto, as pessoas não conseguiriam viver. As empresas se apresentam como grandes salvadoras enquanto desvalorizam o território tradicional”, aponta Carivaldo.
O agente da CPT destaca que um traço importante dos Fundos de Pasto é a ausência de áreas cercadas para cultivo e criação, o que vai de encontro direto à chegada de grandes empreendimentos que imediatamente buscam a imposição de limites na área e alteram o uso comum da terra. “O uso de cercas na área comum, por si só, altera a dinâmica daquele espaço”, explica.
A dinâmica dessas comunidades tradicionais abrem espaço, ainda, para uma prática comum no contexto dos conflitos agrários: a grilagem de terras. Ou seja, uma fraude documental para invasão de terras públicas. “Como existe a legislação de que é necessário um tempo mínimo de propriedade daquela região, o grileiro coloca uma data retroativa. Aqui na Bahia, por exemplo, uma terra para ser considerada legal requer um documento anterior a 1960”, diz o agente. “Isso acontece muito nesses espaços por serem terras que não têm uma ‘documentação legítima’, digamos assim [um registro de compra do terreno, de uso comunitário]. Nós sabemos que o uso do povo, por si, dá legitimidade, mas a falta de um documento abre brecha para esse tipo de fraude”.
“Eu acho que falta uma boa vontade do Estado em agir nesse sentido. Porque há, por exemplo, a possibilidade de doar o título ou fazer uma concessão de uso para esses moradores e garantir uma legitimidade documentada para essas pessoas, mas não acontece muito. É uma luta muito antiga”, finaliza Carivaldo dos Santos.
*A série especial ‘Sobradinho, uma saga sertaneja em dois tempos’ foi uma das vencedoras da Bolsa #Colabora de Reportagem – 8 anos