Em Casa Nova, líder comunitária resiste às eólicas com lembranças da barragem

Em Casa Nova, líder comunitária resiste às eólicas com lembranças da barragem

Especial 'Sobradinho, uma saga sertaneja em dois tempos' | Com memórias familiares do município submerso pelo lago da hidrelétrica, Vaneide Braga é a única na comunidade a rejeitar instalação de usina

Por Nathallia Fonseca | ODS 1ODS 7 • Publicada em 9 de julho de 2024 - 01:40 • Atualizada em 19 de novembro de 2024 - 16:56

A agricultora e líder comunitária Vaneide Braga ainda estava na barriga da mãe, Valdete, quando a família foi informada de que o lugar onde viviam na área rural do município de Casa Nova, na Bahia, se tornaria um grande lago. Era a usina hidrelétrica de Sobradinho. A obra seria inaugurada em 1982, deixando 320 quilômetros do Sertão da Bahia completamente submersos.

Desde os primeiros dias no mundo, então, Vaneide observa os impactos do empreendimento sobre os seus: da falta de recursos que foi se agravando à articulação política, cada dia mais presente no território. Além do medo de viver tudo de novo. É desse medo que a agricultora lembra hoje ao ir na contramão dos 19 vizinhos e ocupar o único terreno do sítio onde vive atualmente, no sítio de Garapa, que não foi arrendado para a construção de um novo parque eólico.

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Natural da comunidade de Cacimba do Meio –  para onde sua família foi após o completo alagamento do território onde viviam inicialmente  –  Vaneide foi morar em Garapa há 17 anos, após o casamento com o também agricultor e ativista Gilmar Amorim. Juntos, o casal criou dois filhos e um vasto quintal que alimenta a família e produz alguns dos frutos e legumes vendidos na feira de Casa Nova, município ao qual pertencem todos os povoados citados até agora. Feijão, abóbora, melancia, tomate. Além de algumas galinhas e uma criação de caprinos que vivem soltos, conforme a tradição da comunidade, um Fundo de Pasto centenário. “Nossa mesa é simples, mas não falta nada”, diz. 

Nas primeiras noites depois de rejeitar o documento, eu estava sozinha, o GIlmar viajando. Eu passei algumas noites sem dormir. Falei com o pessoal da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e disse: eu não tenho o apoio da comunidade. Eu estou sozinha e estou com medo

Vaneide Braga
Agricultora e líder comunitária em Casa Nova

O “quintal” é parte do terreno que Vaneide quer proteger. Para evitar o que ela considera uma venda do próprio sossego, a família de agricultores rejeita, desde 2022, reiteradas investidas da empresa Casa dos Ventos, que pretende iniciar o funcionamento de um novo parque eólico para geração de energia nas proximidades da casa. O projeto recebeu um investimento de R$ 6,5 bilhões em 2020, um ano antes do momento em que a família de Vaneide e Gilmar finalmente conquistou energia elétrica dentro de casa.

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O cenário que acompanha quase todo o caminho para chegar ao Sítio Garapa, vale mencionar, é preenchido por enormes aerogeradores no horizonte. São partes dos parques Casa Nova II e Casa Nova III, inaugurados em 2017 pela Chesf – mesma empresa responsável pela construção da Usina Hidrelétrica de Sobradinho. Conforme anunciou a Companhia, o complexo possui capacidade de abastecer 57 mil residências com energia elétrica. Entre elas, porém, não está a casa onde vivem Vaneide e Gilmar, que apenas em 2021 puderam contar com eletricidade.

Proposta de arrendamento

“Um dia os trabalhadores da empresa, fardados, bateram aqui na minha porta. Eles sentaram bem aí onde você está e me mostraram só vantagens sobre a chegada de uma eólica. Falaram que eu poderia colocar meus filhos nas melhores escolas, que tudo ia mudar pra melhor”, recorda. A maioria dos 18 vizinhos da agricultora recebeu a mesma visita. A proposta deixou de ser feita apenas àqueles cuja residência, apesar de estar na mesma comunidade, não interfere na rota do projeto.

A proposta de arrendamento da terra envolvia um retorno financeiro de até R$ 1.200 mensais na fase inicial, que pode chegar ao valor aproximado de R$ 6 mil após o início do funcionamento dos aerogeradores. Por já ter ouvido queixas de quem vive perto dos cataventos, porém, Vaneide recebeu a ideia com desconfiança. “Eu só não sei te dar muitos detalhes porque na hora que eu entendi a destruição da coisa, eu parei de prestar atenção. Eles perguntaram se eu não queria nem ouvir, eu disse que não”. Entre os temores da agricultora estão os danos causados pelo barulho das hélices, prejudicial à saúde dos moradores e dos animais. 

Gilmar e Vaneide na plantação de feijão próxima à casa da família: resistência em vender suas terras para empresa de energia eólica (Foto: Nathallia Fonseca)
Gilmar e Vaneide na plantação de feijão próxima à casa da família: resistência em vender suas terras para empresa de energia eólica (Foto: Nathallia Fonseca)

Vaneide pontua, aliás, não ser a única a conhecer poucos detalhes sobre o projeto. “Eu não tenho o contrato porque não quis ver, mas depois tentei saber melhor com os vizinhos que ainda falavam comigo. Acho que todo mundo assinou sem tirar cópia. Não temos nenhum documento para mostrar”, diz.

Fundada em 2007, a Casa dos Ventos é associada à Total Energies, com sede em Paris, e considerada uma gigante do setor. A empresa possui, entre os principais clientes para geração de energia elétrica, outras grandes corporações como Vale, responsabilizada pelo desastre em Mariana (MG), e Braskem, responsabilizada pelo afundamento de cinco bairros históricos em Maceió, capital alagoana. 

No Sítio Garapa, onde vivem 19 famílias, todas as outras residências localizadas na área de interesse das eólicas já concederam o arrendamento e Vaneide relata intimidações e conflitos desde que o assunto foi pautado. “Acho que a nossa resistência em assinar atrasa o início da obra. Tem muitos vizinhos que não falam mais comigo”, conta. “Nas primeiras noites depois de rejeitar o documento, eu estava sozinha, o GIlmar viajando. Eu passei algumas noites sem dormir. Falei com o pessoal da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e disse: eu não tenho o apoio da comunidade. Eu estou sozinha e estou com medo”, conta.

Questionada sobre detalhes do projeto no Sítio Garapa, queixas de intimidação aos moradores, a empresa não respondeu até o fechamento desta reportagem. Também não informou maiores detalhes sobre o projeto e termos do arrendamento.

No código de conduta, a Casa dos Ventos aponta a atuação “de maneira idônea e transparente, respeitando todas as legislações e as comunidades locais onde estamos inseridos” como um dos valores da empresa. Atualmente, a Bahia é o estado brasileiro que lidera a geração de energia eólica.  

“Quando eu soube que todo mundo tinha assinado, eu lamentei com eles. Eu disse que a gente podia ter conversado, decidido em comunidade. Ainda que aceitasse, nós poderíamos ter pedido melhorias pro lugar. Uma escola, uma estrada. Agora já assinou, não tem mais o que fazer”. A agricultora também diz que, há dois anos, mantém contato com moradores e ativistas de outras localidades onde parques eólicos foram construídos. “Tem muita gente arrependida”, comenta. 

Seca no Lago de Sobradinho deixou à mostra ruínas das cidades submersas: parentes levaram Vaneide ao lugar onde era sua casa (Foto: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil – 10/12/2015)

Casa Nova submersa pela barragem de Sobradinho

“Meu pai falava que tinha muito medo de chegar uma outra empresa que mudasse a gente de lugar de novo. Eu também sempre tive. Não sei como tem gente que aceita vender o próprio sossego. Eu não vendo”, recorda a líder comunitária, destacando o fato de que o atual conflito com a empresa energética não é o primeiro de sua vida. 

Como eu não conhecia, os parentes mostraram o lugar onde tinha a casa. É difícil de imaginar quando o lago está cheio. Eu só conseguia pensar como era perto do rio e em como eu cresci afastada da água, enfrentando tantas secas

Vaneide Braga
Agricultora e líder comunitária em Casa Nova

Antes mesmo que viesse ao mundo, Vaneide deixou a comunidade onde a família formou-se e viveu para dar passagem à usina hidrelétrica de Sobradinho – apresentada ao Brasil como uma solução à crise do petróleo que se instaurou durante a ditadura militar. Até então, o sustento da comunidade vinha da venda de artigos de palha na cidade de Casa Nova, como vassouras e esteiras. O município, assim como a maior parte da área rural e a casa da família, foram submersos.

Diferentemente do centro urbano de Casa Nova, porém, a zona rural não foi reconstruída pelo Estado. Restou aos camponeses, como a família de Vaneide, a adaptação forçada a uma nova terra, com recursos naturais distintos e, na maioria das vezes, sem qualquer sem indenização. 

Em 2015, o semiárido brasileiro viveu a pior seca em 84 anos, o que levou a barragem de Sobradinho ao nível de apenas 1,6% da capacidade total. Na ocasião, Vaneide conta que conseguiu ver o ponto onde sua família viveu. “Como eu não conhecia, os parentes mostraram o lugar onde tinha a casa. É difícil de imaginar quando o lago está cheio”, diz. “Eu só conseguia pensar como era perto do rio e em como eu cresci afastada da água, enfrentando tantas secas”

Segundo Vaneide, o único aporte financeiro recebido pela família foi fruto de um processo coletivo vencido há apenas um ano. “Sei que minha mãe recebeu cerca de R$ 2 mil, mas foi já esses dias, em 2023. Eu não sei de muitos detalhes. Já meu avô faleceu antes que a Justiça desse notícia sobre isso”, diz. 

“Vender sal, vassoura, lenha, maxixe: meus pais sustentavam meus oito irmãos com isso aí. Quando a barragem chegou, eles não só perderam a palha e a salina, como também não tinham mais onde vender”, conta. “Foi quando meu pai aprendeu a pescar. Ele foi um dos primeiros pescadores da comunidade, porque quando o rio chegou, chegaram os peixes. Mas ele nunca tinha pescado antes, então precisou aprender primeiro”.

A agricultura nasceu na comunidade de Cacimba do Meio, uma outra região do povoado de Riacho Grande, pertencente ao mesmo município de Casa Nova, mas não próximo o bastante para evitar que a família perdesse a rede de apoio a qual esteve ligada por muitas gerações. “O impacto da barragem foi muito grande para todo mundo. Meus pais, tios, avós… todo mundo foi tirado de lá”, diz. “Um tio foi deslocado para Minas Gerais. A gente foi ter notícias dele 30 anos depois da mudança, quando já tinha telefone. Ninguém tinha certeza se ele estava vivo. Isso deixou meu pai até o fim da vida dele com muito medo de viver outra coisa parecida”.

Vaneide, com o marido Gilmar, em frente da residência da família em Casa Nova: nascida no movimento social e com histórico de resistência (Foto: Nathallia Fonseca)

Política e habitação no campo

No ano em que Vaneide Braga nasceu, 1978, logo após a família ser deslocada pela construção da usina de Sobradinho, o contexto político no Brasil envolvia uma enorme pressão sobre a população camponesa, a crise econômica e o terror da ditadura militar. Foi nesse cenário que a agricultora viveu o primeiro contato com questões como grilagem de terras e desapropriações. De acordo com ela, a formação política foi consequência. “Logo depois que Chesf botou a gente pra fora, entrou uma empresa querendo tomar as terras que disseram que eram nossas. Tomou nossas terras e fundos de pasto. Na época, foi um conflito muito grande. Derrubou roça, derrubou casa, matou gente. Diziam que tinham comprado as terras e queriam de divina força tomar essa terra da gente”, diz.

Vaneide narra o início do conflito com a Agroindustrial Camaragibe S.A., produtora de etanol a partir da mandioca. Acusada de grilagem de terras na comunidade, a empresa decretou falência na década de 1990, acumulando mais de R$ 40 milhões em dívidas com o Banco do Brasil. A resistência em uma região que até hoje é considerada uma área de disputa exigiu da família de Vaneide, à época uma criança, uma maior articulação em comunidade. Em 2009, o trabalhador rural e também líder comunitário Zé do Antero, tio da agricultora e ativista pelo reconhecimento do Fundo de Pasto, foi assassinado dentro de casa. De acordo com as autoridades, o crime foi relacionado ao conflito histórico na região. 

Em 2020, conseguimos nos organizar para obter o certificado. Aí começou a pandemia e o processo foi interrompido. Chegamos a conseguir aquele Cadastro Ambiental Rural (CAR) das comunidades, mas na hora que ele estava pronto… chegou a empresa do parque eólico

Vaneide Braga
Agricultora e líder comunitária em Casa Nova

O bispo baiano Dom José Rodrigues, conhecido como “profeta do semiárido”, foi uma das lideranças que lutaram contra a ditadura militar e auxiliaram a comunidade durante a infância e adolescência de Vaneide, junto à Comissão Pastoral da Terra, durante os conflitos. “A nossa associação lá em Riacho Grande foi uma das primeiras fundadas naquele período. Os encontros eram todos os domingos e muita gente ia, porque não existia outro lugar pra ir aos fins de semana”, recorda.

Quando chegou ao Sítio Garapa, onde vive hoje, a agricultora já possuía experiência em defender o lugar onde vive. “Eu me lembro  de quando cheguei aqui. O pessoal não sabia o que era movimento social, mas eu nasci dentro de um movimento social”, diz. “Os vizinhos achavam que não existia nenhuma ameaça. Eles diziam que ninguém ia querer uma terra assim, seca, além da gente”, completa Vaneide.

“Nos primeiros anos eu também me afastei da política. Aí em 2016 o pessoal do Pró-semiárido [ação do Governo do Estado da Bahia] incentivou que fosse feita uma associação para reivindicar políticas públicas, porque aqui não tinha nada. Como eu já tinha vindo de uma articulação, me deixaram à frente”, recorda. Entre as necessidades do território, ela cita a falta de cisternas para o abastecimento de água e a própria energia elétrica, que chegaria apenas em 2021. 

A luta mais importante, porém, era o reconhecimento formal do território enquanto comunidade tradicional de Fundo de Pasto – que ajudaria, inclusive, a preservar o lugar da intervenção de grandes empresas. “Em 2020, conseguimos nos organizar para obter o certificado. Aí começou a pandemia e o processo foi interrompido. Chegamos a conseguir aquele Cadastro Ambiental Rural (CAR) das comunidades, mas na hora que ele estava pronto… chegou a empresa do parque eólico”, lamenta.

*A série especial ‘Sobradinho, uma saga sertaneja em dois tempos’ foi uma das vencedoras da Bolsa #Colabora de Reportagem – 8 anos

Nathallia Fonseca

Nathallia Fonseca é jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Nascida no Sertão baiano, criada às margens do São Francisco e residente hoje em São Paulo. Em 2019, venceu o prêmio Vladimir Herzog na categoria Arte com o livro-reportagem em quadrinhos TIRA e foi apontada entre os jornalistas mais premiados do Nordeste no mesmo ano. Passou pelas redações do Diário de Pernambuco, CNN Brasil, Agência Pública, Lupa e outros veículos e coletivos de jornalismo. Atualmente trabalha como editora de notícias nacionais no Brasil de Fato.

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