A COP 26 começa no próximo domingo, dia 31, em um cenário de escassez e preço alto de energia que ameaça a retomada da economia mundial. No Brasil, a crise energética é agravada por planejamentos que insistem em ignorar as mudanças climáticas e o que os especialistas já chamam de “novo normal”. Uma espécie de pacote de notícias ruins que inclui redução de chuvas, secas mais prolongadas e reservatórios quase vazios. A falta d`água custa caro à União, ao setor produtivo e ao consumidor. Um estudo apresentado em mesa redonda promovida pelo iCS (Instituto Clima e Sociedade) estima que o Brasil gastou R$ 17 bilhões a mais do que teria desembolsado se tivesse agido preventivamente, acionado há mais tempo térmicas a gás, mais baratas, para economizar a água das hidrelétricas.
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Esse “seguro contra a seca” teria custado R$ 20 bilhões. Como não foi feito, os reservatórios chegaram ao menor nível em 90 anos, o governo, agora, vem sendo obrigado a gastar R$ 37 bilhões para acionar todas as térmicas, inclusive as mais caras, a diesel. Os cálculos são do engenheiro Donato Filho, diretor da Volt Robotics e professor de Modelagem Computacional e Sistemas Inteligentes da USP. A apresentação do estudo contou com a participação do matemático Sérgio Margulis e do engenheiro Luiz Eduardo Barata, ex-diretor do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), entre outros especialistas convidados pelo iCS.
[g1_quote author_name=”Teresa Liporace” author_description=”Diretora Programática do iCS” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O fator fundamental desta grande crise é que o planejamento não considera as mudanças climáticas. Quem paga é o contribuinte, e isso impacta toda a economia
[/g1_quote]O estudo revela também que a conta poderia ser ainda menor caso o governo tivesse investido antes na ampliação da geração solar e eólica. Essas fontes renováveis teriam evitado o esvaziamento dos reservatórios, cumprindo a mesma função que as térmicas, só que a um custo muito menor e sem aumentar as emissões. Um investimento anual de R$ 10,7 bilhões, metade do valor gasto com as térmicas, seria o melhor “seguro contra a seca” disponível. “Em vez disso, leis e emendas obrigam a contratar térmicas, um malabarismo para passar o custo da energia suja ao consumidor. É uma espiral da morte: aumentamos as emissões de CO2, que aceleram as mudanças climáticas. As térmicas deveriam ser a última opção, mas se tornaram prioridade nas emendas do Congresso à MP de privatização da Eletrobras, com o consumidor sendo forçado a comprá-las a preços cada vez mais altos”, critica Donato.
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Veja o que já enviamosNão satisfeito com o valor da conta, o governo segue apostando na energia suja. Em um leilão emergencial para contratação de energia, realizado nesta segunda-feira, dia 25 de outubro, apenas 78 projetos foram de fonte solar fotovoltaica, totalizando 1,86 GW de potência. Já a contratação das usinas a gás natural representou 97,1% do leilão, enquanto a biomassa ficou com 2,6% e a solar fotovoltaica com apenas 0,3%.
Sérgio Margulis reforça que o planejamento não pode mais ignorar as mudanças climáticas: “As secas não são mais eventos extraordinários, são para sempre e cada vez mais frequentes e intensas. O setor agrícola também vai ter que se adaptar a mais temperatura e menos chuva, todos temos de conviver com o novo normal”. Margulis, que foi economista do meio ambiente do Banco Mundial, em Washington, por 22 anos, e trabalhou com o tema em mais de 40 países, é autor de “Mudanças climáticas: tudo o que você queria e não queria saber”. Ele apresentou uma série de mapas evidenciando a tendência de redução da chuva em todo o Brasil, com exceção do Sul.
“O fator fundamental desta grande crise é que o planejamento não considera as mudanças climáticas. Quem paga é o contribuinte, e isso impacta toda a economia”, complementa a diretora programática do iCS, Teresa Liporace. Ela lembra que, às vésperas da COP, o Brasil dá uma “pedalada” em sua própria vantagem competitiva, adotando ações poluentes quando deveria mitigar riscos climáticos. “A quem interessa adotar medidas de curto prazo que vão ter impactos a longo prazo para todos?” O ex-ministro José Goldemberg, que presidiu quatro estatais do setor elétrico, comparou a atitude do governo em não evitar o esvaziamento dos reservatórios à de quem não faz seguro do carro. “Se você paga o seguro, vê que é muito menos do que o prejuízo de perder o carro. Não fazer seguro contra a incerteza tão grande de chuvas é um absurdo.”
Ex-diretor do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) e ex-secretário-executivo do Ministério das Minas e Energia, Luiz Eduardo Barata lembrou que o problema das mudanças climáticas é mundial, mas o Brasil procura agravá-lo ao contratar fontes poluentes em vez de se adequar à realidade. “O problema não é divino, é da natureza. Começa com crise climática, se transfere para a hídrica e, no Brasil, vira crise elétrica. O caminho é quebrar o paradigma e viabilizar a contratação em grande escala das renováveis, mas insistimos em negar o que o mundo nos apresenta”, explica o engenheiro.
Muitos estudos, segundo Barata, demonstram que o Brasil pode recuperar os reservatórios, tirando-os da situação crítica, com energias renováveis. “O esquema que vivemos desde o início do sistema, na década de 50, não serve mais, e o uso das renováveis no período seco permitiria manter as hidrelétricas em condições de modular a carga elétrica o ano todo, sem esvaziar os reservatórios”. Donato reitera que o Brasil precisa observar como as mudanças climáticas estão alterando decisões governamentais pelo mundo. “O governo da China, um país comunista, está falando em adotar preço de mercado para a energia, para as pessoas sentirem o que estão gastando. Enquanto nós estamos com uma tarifa fixa”, compara.