ODS 1
Futuro sustentável no Semiárido: transição energética avança mas mantém exclusão
Especialistas criticam arrendamento de terras com contratos abusivos, disputa entre a energia solar e a produção de alimentos e desigualdade na distribuição
Ibimirim é um dos sete municípios que compõem o Sertão do Moxotó, em Pernambuco; a cidade fica a 334,4 km do Recife, capital do estado. Quase metade de sua população está concentrada na zona rural, correspondendo a 44,74% dos 26.593 habitantes, segundo censo de 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). A região, conhecida como a terra do santo e do mel, vem se destacando pelo forte potencial para um ramo de negócios cada vez mais importante na atualidade: a energia.
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Em outubro de 2023, a Prefeitura de Ibimirim realizou evento com empresários da energia solar com projetos em andamento ou em processo de implantação na cidade, o que representa a tendência de ampliação dessa forma de negócio na região. A empresa Eletron Energy já deu início às obras de instalação de uma usina fotovoltaica na cidade. O Complexo UFV Ibimirim terá uma capacidade de 57 MWp, vai ocupar uma área de 110 hectares e, de acordo com a empresa atender, continuamente, cerca de 33 mil residências durante todo o ano com energia solar.
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Quem anda por Ibimirim percebe facilmente a expansão do segmento. Os carros adesivados por empresas de energia solar indicam como elas vêm prosperando naquele território. Se a visita é acompanhada por conversas com os moradores e moradoras, é possível entender que esse movimento é recente. Por volta de um ano pra cá, o município vem recebendo grupos empresariais do setor para captar luz solar – o mesmo vem acontecendo em outros pontos do Semiárido. A própria Eletron Energy inaugurou, em 2024, o Complexo Solar São Pedro e Paulo, no sertão do Pajeú, e já tinha outra usina solar funcionando em Carnaíba na mesma região.
O cenário acompanha as expectativas de transição energética para os próximos anos. Diante dos problemas ambientais, como o aquecimento global, o mundo se vê com a necessidade de reduzir a utilização de combustíveis fósseis e a emissão de gases. Desse modo, os meios de obter energia de forma renovável aparecem como grandes aliados.
Porém, nem tudo é tão simples. A utilização das chamadas energias limpas também tem impactos negativos. Do ponto de vista ambiental, por exemplo, a confecção das placas solares exige a utilização de metais. Assim, a difusão desse modelo implica uma maior extração. “É preciso fazer uma barragem para depositar os rejeitos da mineração das rochas que são liberadas e isso além de causar um impacto ambiental da exploração, na lavagem ela vai precisar de muita água e isso pode comprometer o uso da população. Nós temos ainda um risco [de rompimento] que essas barragens trazem para as populações que estão nesses locais de exploração”. explica Cássio Cardoso, engenheiro elétrico e assessor político no Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc).
Além dos efeitos ambientais, que também atingem a população, conflitos de terra também podem ser agravados pelo crescimento do mercado de energias renováveis. Cássio chama atenção para os “latifúndios de energia solar”, que acarretam problemas como arrendamento das terras com contratos abusivos entre as empresas e as populações, e a disputa entre a energia solar e a produção de alimentos do campo.
Energia solar para quem?
Para Cássio Cardoso, a solução possível para uma transição energética justa seria a geração distribuída. Neste formato, a energia gerada em um território é direcionada às residências e estabelecimentos daquela mesma localidade. Com essa estruturação, desconcentra-se a produção e abre um leque de possibilidades para a população mais vulnerável.
“As populações poderiam ter a energia elétrica para quem não tem ainda, e fazer um poço na sua propriedade. Olhando para pequenos produtores rurais, por exemplo isso garantiria a segurança hídrica, garantiria aumentar a produção de alimentos, consequentemente, a segurança alimentar dessa família, possibilitaria o aumento da renda, com mais água, através da irrigação. E um poço ou uma bomba vão poder ser instalados através da geração de energia. A produção de alimentos poderá aumentar e poderá ser vendido mais, comercializado mais e ampliada sua renda garantiria a sensação para essas famílias de pertencimento local, o que evitaria o êxodo rural”, argumenta o assessor do Inesc.
Porém a geração desconcentrada desse tipo de energia também tem suas contradições. O Brasil ocupa o 6° lugar no ranking global de energia solar fotovoltaica. No período do ranqueamento, o país contava com 37,4 GW (gigawatts) de potência instalada. Desse total, 13 GW é gerado pelo segmento centralizado, constituído de usinas solares contratadas por meio de leilões de energia realizados pelo Poder Público. Já os 24 GW são gerados de forma distribuída, a partir de painéis instalados pelos próprios consumidores. No primeiro trimestres de 2024, este valor já foi superado, atingindo 41 gigawatts (GW).
O país, entretanto, ainda é carente de políticas públicas para o setor. O que representa um obstáculo para sua expansão, mas, principalmente, a conversão de uma possível ferramenta de combate à desigualdade em mais um instrumento para mantê-la. Problema que fica evidente ao analisar o panorama nacional da energia solar distribuída. “A geração distribuída é destinada a uma classe da sociedade. Quem tem condições financeiras, até agora, de instalar painel solar na sua casa ou no seu lote de reforma agrária são pessoas ricas, pessoas que podem ir lá no banco, fazer um empréstimo e instalar”, aponta Cássio.
O especialista se refere à normativa 482, em vigor desde abril de 2012, que estabelece a possibilidade de geração de energia a partir de fontes renováveis para consumidores em geral. Além disso, o excedente pode ser fornecido para a rede de distribuição da cidade em que reside em troca de compensação no valor de seu próprio consumo de energia. Contudo, o investimento para adotar o sistema está fora do alcance de grande parte da população. Estima-se que a instalação somada à aquisição de todos os itens – inversor solar, estruturas de suporte e fixação, cabeamento, caixa de junção e o painel fotovoltaico – custe em torno de R$25.000,00.
Mais recentemente, em fevereiro de 2024, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) regulamentou a Lei 14.300, sancionada em 2022. Considerada o marco legal da mini e microgeração distribuída, a resolução prevê a formação de cooperativas para geração de energia solar, permitindo o rateio dos custos e também dos créditos de compensação. Outro ponto é o benefício do Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE) para aqueles que instalassem as placas até 12 meses depois da promulgação da lei.
Após atualização aprovada, a isenção de subsídios passou a ser garantida até 2045 para que os consumidores-geradores que solicitem a conexão com a rede de distribuição da Aneel até março de 2024. Dessa forma, para as pessoas que tenham a possibilidade de realizar o procedimento apenas após esse período, a isenção não está prevista.
Semiárido Sustentável: uma experiência em Ibimirim
Encabeçado pelo Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta), o projeto Semiárido Sustentável é um exemplo da geração de energia solar de forma distribuída em pequena escala. A iniciativa beneficiou cinco famílias em Ibimirim com um protótipo do sistema agrofotovoltaico e outras cinco em Manari. O sistema é constituído por um módulo de placa solar é adicionado a aquaponia, tecnologia que integra cultivo de hortaliças, reutilização de água e criação de animais.
Instalado em 2021, o projeto, colocado em prática por meio de financiamento da Fundação Banco do Brasil, teve duração de 12 meses, incluindo a instalação e orientações quinzenais de manuseio do sistema. Na segunda etapa, cada família ficou responsável pela manutenção de seu próprio equipamento. Foi o caso da agricultora Geralda Nery, de 49 anos, e do engenheiro elétrico e também agricultor Dênis Fernandes, de 35 anos, dois dos contemplados. “Todo dia você tinha que estar olhando, de manhã, meio-dia e à tarde”, explica Geralda sobre como era a rotina no período que utilizava a estrutura agrofotovoltaica.
Para a agricultora, a grande dificuldade foi lidar com a placa solar. Ela aponta que há mais ou menos dois anos não via mais efeito do equipamento e tentou de toda forma manter o funcionamento das outras partes do sistema. “Eu não sabia mexer nesse negócio da energia. Eu tinha dificuldade para deixar aquela água girando. Tinha peixe, aí algumas vezes eu ficava jogando água no peixe. Aí depois parei porque não ia ficar fazendo isso direto, porque esse era o papel da energia”.
O caso de Dênis foi um pouco diferente. Seu sistema manteve-se em bom funcionamento até precisar desmontá-lo por precisar sair da cidade, já com a expectativa de um dia remontá-lo. Para ele, um dos principais benefícios da iniciativa estava no bolso. “É um sistema que ajuda ao longo do tempo. Se eu deixo de comprar, eu também tô ganhando. É algo que ajuda no dia a dia. Você não tem que sair de casa pra comprar alguma coisa”, defende o engenheiro.
Entretanto, a realidade atual no Assentamento Mulungu, onde foram acomodados os equipamentos para o funcionamento da aquaponia e energia solar, só há vestígios e lembranças do que foi o sistema.
Das cinco casas que receberam o equipamento em Ibimirim, apenas duas, como a de Geralda, continuam habitadas pelas mesmas pessoas. Nenhuma delas mantém o sistema em funcionamento. O motivo foi a dificuldade de lidar com o equipamento. Na perspectiva da agricultora, se tivesse alguém ou alguma instituição que se encarregasse de acompanhar por mais tempo o desenvolvimento em cada residência, a proposta teria sido mais eficiente.
Um sol para todos e todas
O projeto promovido pelo Serta em Ibimirim é um exemplo da potencialidade de uma transição energética que acompanhe o desenvolvimento social. Outra proposta funciona na cidade sertaneja de Itacuruba, em Pernambuco, viabilizada por meio da parceria do CCBA (Centro Cultural Brasil Alemanha) com a ONG alemã Atmosfair. As placas fotovoltaicas foram instaladas na Aldeia Serrote do Campos, onde vive a comunidade indígena Pankará. Por lá, a iniciativa liderada pelo professor Genival Barros não conta com a parte da aquaponia, mas as hortaliças também são cultivadas abaixo das placas para captação de energia solar.
Manarí, também no sertão pernambucano, e Suape, localizado no Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana do Recife, são outros pontos onde há experiências semelhantes de utilização da captação e utilização da energia solar de forma local. Em comum, todas elas são tentativas quase que guerrilheiras de promover melhor acesso à água, segurança alimentar e geração de renda para populações vulneráveis. Para Cássio Cardoso, políticas públicas são fundamentais para que pessoas mais vulneráveis, como pequenos produtores rurais e moradores de periferia possam usufruir do recurso e, como consequência, aumentar a presença de energia renovável no Brasil.
Leandro Carvalho, coordenador de projeto do Semiárido Sustentável, avalia que o financiamento dessas iniciativas é um grande obstáculo. Além do estado, as empresas poderiam ser aliadas, se não estivessem mais preocupadas com resultados financeiros. “As empresas não têm interesses em aportar dinheiro em projetos pontuais. Preferem aportar recursos para um projeto de assistência técnica para atender 1000 famílias diretamente e 5 mil pessoas indiretamente”, explica o coordenador. Ele analisa que financiamentos de origem corporativa têm a tendência de rejeitar ações mais complexas, com etapas mais profundas que, por isso, precisem se restringir a uma quantidade menor de beneficiados.
Em 2023, o Brasil apresentou à COP28 novas metas de emissões de gases do efeito estufa em relação a 2005. O país agora deve atingir 48% de redução até o próximo ano (2025) e chegar a 53% até 2030. No mesmo ano, a fonte solar chegou a gerar quase um terço da demanda nacional, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Dados dos primeiros meses de 2024 já apontam a mesma tendência.
Apesar da perspectiva positiva que este cenário possa representar, o país demanda ainda de uma revisão legislativa e de mais políticas públicas para que o sol, esse bem que chega a todos e todas, possa ser aproveitado com equidade.
*As reportagens da série ‘Futuro renovável começa no Semiárido’ foram produzidas com o financiamento do edital Nordeste Potência junto com o Instituto ClimaInfo
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