Programa Cisternas só encolheu nos últimos quatro anos

Principal política pública de acesso à água do Brasil fechou 2022 com o pior desempenho da história: apenas 3.698 cisternas construídas

Por Adriana Amâncio | ODS 6 • Publicada em 21 de março de 2023 - 23:52 • Atualizada em 19 de abril de 2023 - 09:21

Suzana Pereira enche galão de água após longa caminhada: sonho de ter cisterna em casa (Foto: Arnaldo Sete)

Suzana Pereira enche galão de água após longa caminhada: sonho de ter cisterna em casa (Foto: Arnaldo Sete)

Principal política pública de acesso à água do Brasil fechou 2022 com o pior desempenho da história: apenas 3.698 cisternas construídas

Por Adriana Amâncio | ODS 6 • Publicada em 21 de março de 2023 - 23:52 • Atualizada em 19 de abril de 2023 - 09:21

“Chegou uma cisterna aqui na vizinha e a minha não veio. Ô meu Deus, queria tanto que a minha cisterna chegasse”, lamenta Suzana Pereira, agricultora da Serra do Urubu, de 38 anos. Não só para Suzana, mas para cerca de 1 milhão de pessoas no Semiárido, o sonho de ter uma cisterna esbarrou nos grandes cortes orçamentários realizados nos últimos quatro anos.

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O Programa Cisternas não foi prioridade para a gestão de Bolsonaro, tanto que o programa que já teve um aporte orçamentário de R$ 820 mi, em 2013, em 2022, executou apenas R$ 22 mi e entregou menos de 3.700 cisternas. O número é inferior ao total de tecnologias construídas no ano de criação do programa, 2003, que foi de 6.497.

É importante considerar que as construções de cisternas começaram, em meados de 2003, por sua vez as 3700 correspondem ao saldo de todo o ano de 2022. “O governo Bolsonaro desmontou o programa; aconteceu um desmonte, vamos trabalhar para retomar”, assegura o membro da coordenação Executiva da Articulação Semiárido pelo estado da Bahia, Naidison Baptista.

Programa de cisternas
Arte: Fernando Alvarus

A cientista social Jessica Siviero, especialista em Justiça Climática da ActionAid Brasil, organização internacional que atua no país com projetos de acesso à água e apoio a mulheres da agricultura familiar, também lamenta o desmonte do programa. “Foi escandaloso ver o governo passado realizar o desmonte do programa Um Milhão de Cisternas, que, em 2017, chegou a ganhar o prêmio de Política do Futuro da ONU como melhor iniciativa de combate à desertificação e que está presente nos territórios de atuação da ActionAid” , comenta.

Essa situação [a falta de acesso à água] tem forçado, principalmente, os homens das casas a migrarem. Esse movimento havia sido revertido na década de 2000, pois o sucesso do Um Milhão de Cisternas, sem falar nos outros programas governamentais implementados na época, levaram a uma melhora exponencial da vida no campo e pequenas cidades do interior

Jessica Siviero
Cientista social e especialista em Justiça Climática da ActionAid

O ano de 2022 fechou um ciclo desastroso de queda no orçamento e nas implementações, que iniciou junto com a gestão de Bolsonaro, mas que teve a pedra cantada pelo governo Temer. Comparando o número de cisternas construídas no primeiro ano do governo Temer, 2016, com o ano anterior, houve redução de 40 mil cisternas. Entre os anos de 2015, último ano do Governo Dilma Rousseff, e 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro, a queda foi de 86 mil cisternas.

Quem estava nas comunidades, à espera da tecnologia, sentiu o impacto. Maria Ângela, de Salgado Lino, área rural de Mata Grande, que trabalha como instrutora nos cursos de gestão de recursos hídricos, viu a demanda sumir e a renda diminuir. “Quando tem programas de cisternas, eu ganho vinte e cinco reais (R$ 25) por cada pessoa [matriculada no curso]. Depois do Bolsonaro as coisas pioraram, mas eu espero que o programa volte”, afirma esperançosa.

A premiação a que se refere Jéssica é o Prêmio Internacional de Política para o Futuro, promovido pela ONG World Future Council. Em 2017, o Programa Cisternas foi reconhecido como a segunda iniciativa mais importante no mundo no combate à desertificação.

O Programa Cisternas, inicialmente, surgiu, em 1993, como uma alternativa à escassez hídrica, criada por organizações não governamentais do Semiárido. As primeiras construções foram implementadas com recursos do Unicef e de outros órgãos de cooperação internacional. Em 2003, o Governo Federal, sob o comando do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, adota a iniciativa e a batiza de Programa Cisternas.

Com o passar dos anos, a redução dos casos de mortalidade infantil e de doenças de veiculação hídrica se torna visível. Um estudo realizado pela Fiocruz Pernambuco, em 2011, em 21 municípios do Agreste Central, apontou uma redução de 68% no risco de ocorrência de episódios de diarreia, em crianças de 0 a 5 anos, nas casas com cisterna.

No ano de 2013, o Programa Cisternas caminha para a universalização. Recebe um aporte maior de recursos e intensifica o número de construções até chegar, em 2015, à meta de 1 milhão de reservatórios implementados. Essa meta havia sido estabelecida por organizações não governamentais, que compõem a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), com base em um levantamento do total de cisternas necessárias para atender todas as famílias sem acesso à água de consumo humano do Semiárido.

Arte: Fernando Alvarus

Jéssica recorda que o sucesso do programa levou muitas famílias a retornarem das regiões Sudeste e Centro – Oeste para o Semiárido. Por outro lado, com a redução de recursos, a migração Nordeste , Sudeste em busca de trabalho voltou a acontecer.

“Essa situação [a falta de acesso à água] tem forçado, principalmente, os homens das casas a migrarem. Um movimento mais conhecido é para as cidades, que costumamos chamar de êxodo rural. Esse movimento havia sido revertido na década de 2000, pois o sucesso do Um Milhão de Cisternas, sem falar nos outros programas governamentais implementados na época, levaram a uma melhora exponencial da vida no campo e pequenas cidades do interior”, analisa a especialista da ActionAid.

Mulheres como prioridade

A falta de acesso à água roubou o direito da agricultora Maria Neves, do Distrito Caiçara, em Juazeiro, no semiárido baiano, de estudar. Em vez disso, ela caminhava, junto com os irmãos e os pais, seis horas por dia, entre a madrugada e o início da manhã, para buscar água em uma fonte a 5km de casa. Ela casou, teve filhos e continuou refém do mesmo sufoco: carregar lata d’água na cabeça. “Mesmo sem ter tido direito de estudar, eu matriculei os meus filhos na escola. A coisa mais linda que eu acho no mundo é aprender a ler”, afirma.

Eu tenho fé que agora a minha cisterna vai sair

Francisca Oliveira
Agricultora

Em 2016, quando tinha 47 anos, Maria conquistou a sua primeira cisterna de 16 mil litros. Era o fim de uma vida de sufoco. A água de que ela tanto precisava para beber e cozinhar os alimentos estava ali, à mão, do lado da casa. A agricultora aproveitou a oportunidade para acertar as contas com o passado. Pediu que os filhos a matriculasse na Educação de Jovens e Adultos (EJA) e foi se entender com as letras e os livros.

“No começo [das aulas] não foi fácil. Eu achava que não ia conseguir aprender a ler e escrever. Mas o professor dizia: ‘calma, Maria, daqui a pouco você consegue’. Eu fui juntando, juntando as letras e as palavras daqui a pouco comecei a ler. Eu vi o mundo, antes eu era cega. Comecei a entender o que falava nas reuniões, viajar e ler as coisas, saber onde eu estava”, relembra emocionada.

Maria Neves em sua horta em Juazeiro, no semiárido baiano: investimento em agroecologia após conseguir cisterna (Foto: Arquivo Pessoal)

Maria Neves é um bom exemplo da relação do Programa Cisternas com as mulheres. Levando em conta que elas são as mais afetadas pela escassez hídrica, o Programa tem como prioridade atender mulheres chefes de família, com crianças de 0 a 6 anos, pessoas com deficiência e idosas.

Números da Associação Programa Um Milhão de Cisternas (AP1MC), organização jurídica, que representa a ASA, dão ideia da proporção de mulheres beneficiadas pelo programa. Até 2021, 67% das quase 630 mil cisternas de 16 mil litros construídas no Semiárido, apenas pela AP1MC, estavam em nome das mulheres.

Em geral, a tecnologia encurta a distância entre as mulheres e a água de consumo humano, mas também as aproxima de oportunidades. Valendo-se dos novos conhecimentos matemáticos, Maria Neves ampliou a sua produção agroecológica [livre de agrotóxicos] e passou a comercializar em duas feiras livres.

Dinheiro público tem que ter clareza e transparência de onde vem e para onde vai. O Estado deve investir onde tem mais pobreza, ser indutor de desenvolvimento

Sergio Ferraz
Cientista político

Quinzenalmente, ela comercializa nas feiras dos Distritos Maçaroca e Pillar, em Juazeiro. Em meio a tanto trabalho, ela ainda encontra tempo para ajudar famílias agricultoras vizinhas. “Eu levo os produtos do colega para vender e quando chego, sento, faço as contas e entrego os lucros dele”, explica. Maria Neves relembra que quando os filhos eram pequenos pediam uma fruta para comer, mas ela não tinha nada para oferecer. “Minha filha, hoje eu faço doação de frutas para quem precisa”, afirma com satisfação.

Nos últimos quatro anos, com o encolhimento do Programa Cisternas, as alternativas solidárias das organizações aliviaram o sufoco. A ActionAid direciona ações de convivência com o Semiárido às mulheres, trabalhando na direção do acesso à água e saneamento e no fomento à produção agrícola para a garantia da segurança alimentar e renda.

Uma dessas iniciativas é o Fundo Água voltado à oferta de saneamento, acesso, reuso e melhoria da qualidade da água, tem como prioridade as mulheres. Ao longo do período de implantação, mais de 500 pessoas já foram beneficiadas, em sete estados.

“Nesse projeto, estão sendo instaladas tecnologias já mundialmente reconhecidas, como as cisternas, mas também iniciativas inovadoras desenvolvidas pelas próprias comunidades beneficiadas. Até o momento, foram ao menos sete variedades de tecnologias sociais implementadas”, informa Jessica.

Para ter acesso às tecnologias, as mulheres passam por formação técnica de manejo da água. A ActionAid lançou também a Campanha de Doação Mulheres da Terra, direcionada à arrecadação de recursos para impulsionar a agricultura desenvolvida por mulheres no Semiárido.

Cisterna construída no Governo Dilma Rousseff: corte violento no orçamento do programa nos quatro anos de Bolsonaro (Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)

O orçamento oficial encolheu, mas o secreto bombou

Em 2021, ano em que o Programa Cisternas executava o segundo investimento mais baixo da história, R$ 32 milhões, Miguel Coelho (MDB), prefeito de Petrolina, no Sertão pernambucano, anunciava a implementação de mil cisternas de polietileno.

Em um vídeo, gravado direto da sede da Terceira Superintendência da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Coodevasf), o prefeito atribuiu a conquista “ao investimento feito pelos deputados e senadores” e informou que s tecnologias seriam distribuídas pela área rural de Petrolina.

No fim daquele mesmo ano, reportagem da Folha de São Paulo afirmava que os recursos tinham origem no Orçamento Secreto. O texto afirmava ter encontrado documentos que ligavam Fernando Bezerra Coelho, pai de Miguel Coelho, a R$ 125 milhões em emendas de relator.

A ONG Transparência Internacional definiu a prática do orçamento secreto como “o maior processo de institucionalização da corrupção que se tem registro na história brasileira. Ele é responsável por imensos retrocessos e violações do devido processo orçamentário”, afirma a instituição em documento.

A retomada do ambiente democrático no Brasil, além de alívio, traz a expectativa de que a transparência e os critérios técnicos voltem a dar o tom do Programa Cisterna. “Dinheiro público tem que ter clareza e transparência de onde vem e para onde vai. O Estado deve investir onde tem mais pobreza, ser indutor de desenvolvimento”, frisa o cientista político Sérgio Ferraz.

As mulheres da Serra do Urubu, que vivem para buscar água, esperam entrar no campo de visão do Estado e, finalmente, ganharem a cisterna. “Eu tenho fé que agora a minha cisterna vai sair”, declara em tom de esperança, a agricultora Francisca Oliveira, do Sítio Sombra, município de Angico, estado do Rio Grande do Norte.

Esta reportagem teve apoio da ActionAid Brasil, que implementa projetos como o Mulheres da Terra e o Fundo Água.
Adriana Amâncio

Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.

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