Catadores seguem excluídos das políticas públicas em João Pessoa

Trabalhadores da cadeia da reciclagem já são mais de um milhão em todo o Brasil

Por Agência Eco Nordeste | ODS 6 • Publicada em 1 de setembro de 2023 - 09:46 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 19:31

Os catadores em cooperativa de João Pessoa: queixas sobre as condições de trabalho e a falta de uma renda complementar oferecida pela Prefeitura (Foto: Márcia Dementshuk / Agência Eco Nordeste)

(Márcia Dementshuk** / João Pessoa) – Em se tratando de política ambiental, estreitando o foco para os direitos humanos, como estão as condições atuais de trabalho dos catadores de resíduos recicláveis no Brasil? Gestores de 5.568 municípios, 26 estados e o Distrito Federal, empresários, prestadores de serviços, profissionais liberais, industriários, agricultores, cidadãos brasileiros, enfim, estão sujeitos à observância da Lei que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Nº 12.305), pela qual a categoria dos trabalhadores na área da reciclagem obtém um mínimo de respaldo trabalhista e social.

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Contudo, decisões políticas e descaso afetam de maneira aterradora essas pessoas que buscam trabalhar e têm consciência dos benefícios que geram ao meio ambiente. Realizam seu trabalho há mais de 60 anos, nas ruas, nos lixões das pequenas e grandes cidades, de maneira voluntária, autônoma. Os catadores/as de materiais reutilizáveis e recicláveis já constituem uma categoria com quase um milhão de trabalhadores no Brasil, segundo estudo desenvolvido na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).

De preferência, os catadores e as catadoras são desenquadrados das fotos na cidade mais votada para se viver em pesquisa feita pelo ‘Mais 50’, canal do YouTube dedicado à geração sênior (+50 anos), João Pessoa. Entre os destaques estava “ambiente pacífico e acolhedor para os moradores e visitantes”. Não tão acolhedor para catadores/as. Eles declaram problemas como a pressão de trabalhar em locais de onde sofrem ordem de despejo, o baixo preço pago pelos atravessadores, a dificuldade para obter a documentação completa a fim de poderem emitir nota fiscal, a dificuldade de diálogo com representantes do poder público, além do descumprimento das obrigações deste poder.

A visita a um galpão onde é feita a triagem de materiais recicláveis não está na rota de nenhum turista, muito menos de um morador. Os prédios normalmente estão danificados; o cheiro não é atrativo, moscas; calor e pilhas de materiais misturados, separados ou prensados por todos os lados. Um dos galpões em João Pessoa abriga três grupos de diferentes cooperativas. Às vezes, 40 pessoas trabalham numa área de 25mX60m, um terreno onde uma família média teria uma casa, por exemplo.

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Esse galpão fica no bairro de Mangabeira, o mais populoso da cidade e superlotou porque está servindo de abrigo para três grupos de trabalhadores da reciclagem. Um deles encontrou solidariedade dos demais depois de ter seu galpão incendiado há três anos. “Nosso galpão está reformado há dois anos pela gestão anterior da Prefeitura, mas até agora não nos entregaram de volta”, argumenta Maria Dyonnes Pereira, da Associação Acordo Verde – JP. O local é cedido pela Autarquia Especial Municipal de Limpeza Urbana (Emlur) desde a fundação da associação, em 2007. “Se a Prefeitura andasse lado a lado conosco, teríamos nosso salário. Estamos trabalhando para a cidade, para a população, sem pagamento e ninguém dá valor”, desabafa Dyonnes.

A Política Nacional de Resíduos Sólidos orienta a inclusão dos catadores e catadoras nas operações de reciclagem nos municípios. Para isso, devem estar organizados em associações ou cooperativas. O poder público tem a incumbência de auxiliar nessa organização e o pagamento por serviço prestado, assinatura de convênios, entre outros.

“A falta do pagamento por parte do poder público municipal aos catadores/as faz com que esses trabalhadores tenham renda apenas dos recicláveis que eles coletam, estes não são suficientes e nem é compatível com o trabalho ambiental que realizam nos municípios brasileiros. Na cadeia dos recicláveis são os catadores/as o segmento que menos ganha com o seu trabalho”, explica a professora Maria de Fátima Ferreira de Araújo da UEPB, que tem projeto conveniado com ao Ministério do Trabalho (MTE) e a Secretaria Nacional de Economia Solidária desde de 2012.

Catadores em depósito de cooperativa em João Pessoa: leis municipais não trazem benefícios proporcionais ao papel na sociedade (Foto: Márcia Dementshuk / Agência Eco Nordeste)
Catadores em depósito de cooperativa em João Pessoa: leis municipais não trazem benefícios proporcionais ao papel na sociedade (Foto: Márcia Dementshuk / Agência Eco Nordeste)

Invisibilidade

Contudo, se os catadores são invisíveis na sociedade, tanto mais nas leis. Na esfera municipal, a legislação em João Pessoa começa a dar referência à Lei Federal Nº 12.305 em 2014, ao tratar do Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos. De acordo com Egrinalda Santos, da Associação Catajampa, “a Lei municipal de Resíduos Sólidos de 2014 manteve a Associação formada no ano 2000, a Astramares, com os catadores que já estavam na época do lixão do Roger (anterior ao atual aterro sanitário) e esses colegas estão com ordem de despejo dos galpões onde trabalham: é o pessoal da Ascare JP e do Acordo Verde”.

Em 2015, foram acrescentadas políticas para a Educação Ambiental como prática educativa integrada nas escolas municipais. Em 2016 foram aprovadas leis significativas visando o descarte correto de resíduos sólidos por organizadores de eventos, o acondicionamento, a instalação de ecopontos, limpeza urbana, destinação de lâmpadas e lá se vão 2017, 2018, até que em 2019 aparece uma citação às cooperativas e associações de catadores: trata-se de um veto a um projeto de lei que sugeria designar as coletas feitas em eventos às associações. Em 2020, há normas para a implementação da logística reversa e por fim, em 2021, o tema é a disponibilização de um link para o gerenciamento integrado dos resíduos sólidos formato digital, segundo dados da plataforma Diário do Clima*.

A professora Fátima Araújo coordena projetos nos quais uma equipe de professores e estudantes, em conjunto com as lideranças de catadores/as, identificam esses profissionais na cidade de João Pessoa. “Depois passamos a mobilizá-los em várias áreas da cidade, entre elas Mangabeira, Cristo Redentor, Castelo Branco (comunidades São Rafael, Santa Clara, no complexo Beira Rio), Timbó, Mandacaru, Bessa e em outros bairros da cidade”.

E segue: “o que identificamos foi uma categoria de trabalhadores/as que vivem e sobrevivem na invisibilidade. Eles não são reconhecidos como trabalhadores/as que contribuem com a cidade, com a preservação ambiental, com a limpeza pública urbana, com o saneamento básico, na medida que coletam toneladas e toneladas de resíduos e esse resíduo é desviado do aterro sanitário, o que contribui com a vida útil do aterro”.

O prefeito de João Pessoa, Cícero Lucena, afirmou que há projetos para os catadores/as em seu governo. “Eu fui relator do projeto de lei da Política Nacional no Senado e implantei o aterro sanitário em João Pessoa. No ano 2000 formamos a primeira cooperativa de catadores da Paraíba, a Astramares. Nós encontramos alguma resistência por parte da população para instalação de unidades de reciclagem. Mas já colocaram contêineres de coleta seletiva em pontos da cidade e há um projeto para a Emlur fazer essa coleta e para as associações de catadores complementarem suas rendas”. O prefeito fala ainda da montagem de uma unidade de triagem de recicláveis no aterro para “agregar valor para os catadores.”

Mercado não ajuda

A geração de resíduos sólidos no município de João Pessoa foi de 359.060 toneladas no acumulado de janeiro a novembro de 2021 (Emlur). Quase a totalidade passa pelas mãos dos catadores. Seria possível pensar numa grande arrecadação financeira com a venda dos materiais. Contudo, os preços pagos são mínimos, variam diariamente (para baixo) e dependem até do lugar da cidade onde são negociados. A tonelada de latinha varia de R$ 5 a R$ 6; o papelão de R$ 0,18 a R$ 0,35.

Segundo Egrinalda Santos, os valores diminuíram muito desde a pandemia por causa da importação de resíduos sólidos no Brasil. “Os empresários importam matéria e lotam suas capacidades de reciclagem. Nós acabamos afetados por isso”, explica a catadora que é representante na Paraíba do Movimento Nacional dos Catadores de Reciclados (MNCR) e da Associação Nacional dos Catadores (Ancat).

Segundo informações do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, as alíquotas do Imposto de Importação para resíduos de papel e vidro estavam estabelecidas em 0%. Já no caso das importações de resíduos plásticos, a tarifa aplicada era de 11,2%. O grupo de trabalho formado pelo ministério para estudos “indicou o crescimento das importações brasileiras de resíduos de papel, plástico e vidro entre 2019 e 2022. Nesse período, as compras externas de resíduos de papel e vidro subiram respectivamente 109,4% e 73,3%, ao passo que as operações envolvendo o ingresso no país de resíduos plásticos apresentaram elevação de 7,2%”.

Em vista disso, em 18 de julho passado, o Comitê-Executivo de Gestão (Gecex) da Câmara de Comércio Exterior (Camex/MDIC), decidiu “elevar para 18% as alíquotas do Imposto de Importação cobradas sobre a entrada no Brasil de resíduos de papel, plástico e vidro”.

Kelson Galdino dos Santos, presidente da Associação dos Catadores de Reciclagem de João Pessoa (Ascare-JP), reclama da falta de quem fiscalize a execução da política pública. “A nossa única fonte de renda é a venda dos materiais. Não conseguimos captar recursos por meio da logística reversa porque, para negociarmos, conforme a Lei, seria pela venda da quantidade retirada do meio ambiente, o que deveria ser comprovado por nota fiscal e nenhum de nós (associações) tem. Sempre falta um papel. No nosso caso, é a liberação dos bombeiros”.

O catador continua: “Os terrenos onde trabalhamos são cobiçados pelo valor financeiro. A única forma de ajuda que poderíamos esperar seria o poder público e este é quem fecha as portas. Deveriam acomodar os catadores em um local de serviço, organizar uma estrutura. Não existe organização para fazer uma coleta seletiva na nossa cidade, exercer a responsabilidade compartilhada, da Prefeitura, das indústrias, da sociedade, pelo descarte adequado. Há mais de 30 anos estou nessa luta, desde o lixão do Roger. Já vi colegas morrerem. Mas tenho o sonho de ver os nossos cooperados com o INSS sendo pagos pela nossa Associação”.

Nos piores momentos da pandemia, Fátima Araújo iniciou a montagem de uma rede de apoio aos catadores com o Ministério Público da Paraíba (MPPB). Hoje, essa rede conta com a Promotoria de Justiça da Paraíba, o Ministério Público Federal (MPF), o Ministério Público Estadual do Meio Ambiente, a UEPB e o Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região – Paraíba. “Foi a solução para amparar esses trabalhadores agrupados em seis associações oficializadas. Neste ano iniciamos uma série de conferências com o apoio do TRT para continuar com o mapeamento da situação em João Pessoa e buscar uma garantia de remuneração para esses trabalhadores”, conclui.

* O Diário do Clima é uma plataforma capaz de agregar dados de políticas ambientais para auxiliar na pesquisa dos atos publicados por municípios brasileiros. Com uso de inteligência artificial, monitora diários oficiais para identificar os documentos mais relevantes para quem acompanha o tema. Cada ato é categorizado e organizado de modo que os usuários possam filtrar e receber alertas sobre temas e locais de interesse. Ele foi criado a partir de uma coalizão entre seis organizações jornalísticas das áreas ambiental e de transparência: Agência Envolverde#ColaboraEco NordesteInfoAmazonia((o))eco e Open Knowledge Brasil (OKBR).

** Marcia Demenstshuk é jornalista, formada em Comunicação pela PUC/RS e com mestrado na UFPB

Agência Eco Nordeste

Eco Nordeste é uma agência com a proposta de oferecer conteúdo diversificado sobre Sustentabilidade, considerando o tripé ambiental, social e econômico, a partir das muitas realidades da Região Nordeste do Brasil

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