Durante mais de quatro décadas, a mortandade de peixes na Lagoa Rodrigo de Freitas – cartão-postal do Rio que espelha o Cristo Redentor em suas águas – fez parte das tradições do verão carioca. Entretanto, já são quatro anos, desde fevereiro de 2019, que não há necessidade de acionar uma tropa de garis para retirar peixes mortos da Lagoa. As águas estão, perceptivelmente, mais limpas – houve constante redução do despejo de esgoto, um processo iniciado no começo deste século, após seguidos protestos dos cariocas, e acelerado com a concessão dos serviços de água e esgoto da cidade – responsabilidade da Cedae, companhia estadual – à iniciativa privada há dois anos.
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A diminuição da poluição pode ser atestada ainda pelo aparecimento de caranguejos e aves (garça-azul, quero-quero e biguá dorminhoco) na região e pelo testemunho dos pescadores que vem achando mais peixes em suas redes. “A gradativa melhora se dá por conta da pressão crescente da sociedade pela melhoria da qualidade ambiental local e com a concessão dos serviços de água e esgoto, que finalmente colocou outra empresa no lugar da estatal”, afirma o biólogo Mario Moscatelli, responsável há mais de 30 anos por um projeto de recuperação dos manguezais na Lagoa Rodrigo de Freitas. “Nós fizemos o dever de casa: recuperamos as elevatórias, estancamos os vazamentos de esgoto na rede, e buscamos trabalhar em sintonia com os outros responsáveis pela lagoa”, argumenta Sinval Andrade, superintendente da concessionária Águas do Rio para os serviços da capital. “Durante muito tempo, houve um jogo de empurra sobre os problemas de poluição aqui; hoje estamos todos trabalhando na mesma direção”, atesta o presidente da Fundação Rio Águas, Wanderson Santos, com a autoridade de quem trabalha há quase 30 anos no órgão municipal.
A poluição da Lagoa Rodrigo de Freitas é um problema centenário: foi uma das razões para a construção, no começo da década de 1920, do canal do Jardim de Alah para a troca de água entre mar de a lagoa, o que garantiria a balneabilidade, e para evitar enchentes na região. De acordo com o pesquisador Victor Coelho, o primeiro registro de mortandade de peixes é de 1935 – ele contou, até 2015, 72 registros de mortes de peixes pela imprensa. Mas esta cicatriz visível no cartão postal carioca tornou-se comum a partir da década de 1970, quando o entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas passou por acelerada urbanização após a remoção de favelas. A mortandade de peixes era um efeito colateral do esgoto despejado irregularmente na Lagoa que provocava uma proliferação de plantas aquáticas, roubando o oxigênio dos animais. O verão era a época mais crítica já que o calor também impacta na oxigenação da água.
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Veja o que já enviamosOs seguidos registros de peixes mortos provocaram também seguidos protestos da sociedade. “Desde o início deste século, por meio dos abraços à Lagoa, milhares de cariocas se uniram em defesa do ecossistema e obrigaram quem cobrava, recebia e prestava um péssimo serviço de saneamento na região à trabalhar de fato”, afirma Moscatelli. Em 2001, foi inaugurada a chamada galeria de cintura – um cinturão de proteção para evitar o despejo de esgoto. Durante a obra, iniciada pela Prefeitura do Rio e concluída pela Cedae, foram localizadas mais de 100 ligações clandestinas. Com o cinturão, todo o esgoto deveria ir para essa galeria. “A estatal se viu obrigada por meio de termo de ajuste de conduta a executar uma série de ações estruturantes, como a troca dos antigos troncos coletores e a recuperação de todas as elevatórias. O problema é que o tempo passou e principalmente as elevatórias não receberam a manutenção necessária como de praxe e os velhos problemas começaram a acontecer novamente”, acrescenta o biólogo.
Recuperação das elevatórias
O engenheiro Wanderson Santos, presidente da Rio Águas, destaca que a construção da galeria de cintura foi o primeiro passo de um planejamento para a recuperação do ecossistema. “Não existe mágica. A melhoria do ecossistema da Lagoa Rodrigo de Freitas é um processo no qual tem papel importante a recuperação dos manguezais promovido pelo professor Moscatelli. Mas, durante muito tempo, faltaram ações conjuntas”, afirma. A troca de acusações entre a Cedae, estadual, e a Prefeitura do Rio também repetiam-se a cada mortandade de peixes: responsável pelo saneamento, a Cedae culpava a ocupação irregular do solo, responsabilidade da prefeitura. “A partir de 2021, com a entrada da nova concessionária, a filosofia mudou, e as obras necessárias de recuperação e manutenção foram iniciadas de imediato, bem como as ações de gestão como as relacionadas com a identificação e neutralização das fontes poluidoras”, destaca Moscatelli.
A concessionária Águas do Rio ganhou dois lotes da concorrência aberta para a operação do sistema de água e esgoto do Rio, antes operado pela Cedae: tem sob sua responsabilidade agora o saneamento de 27 municípios – inclusive as zonas Sul, onde está Lagoa Rodrigo de Freitas, Norte e Central da capital. “O que nós começamos a fazer imediatamente na Lagoa foi óbvio: fazer o sistema funcionar. Nós temos aqui um cinturão de proteção a lagoa, com 26 elevatórias e com a capacidade de pegar o esgoto que chega aqui e bombear para o sistema de esgotamento sanitário, e daí para o emissário submarino. E a gente colocou o sistema para funcionar”, garante o engenheiro Sinval Andrade, superintendente da concessionária na capital.
A prioridade foi verificar todo esse cinturão de proteção: desobstruir, limpar, reparar locais de vazamento, e recuperar as elevatórias que recebem o esgoto. Em uma das elevatórias, foi necessária a troca de 30 metros de linha de recalque (tubulação depois da bomba). “Aquilo era uma peneira; estava toda podre”, conta o coordenador de operações da Águas do Rio na capital, José Maria Vaz. Sinval Andrade explica que a concessionária precisou “assumir de fato” a operação do sistema. “As elevatórias eram operadas, por exemplo, pelo dono do quiosque, que, quando fechava o quiosque, desligava a bomba da elevatória: o esgoto que devia ir para o sistema de esgotamento sanitário, ia direto para a lagoa”, afirma o superintendente. “Nos primeiros 100 dias, nós assumimos as elevatórias, reformamos, trocando das tubulações ao sistema elétrico, e automatizamos o processo”, acrescenta.
Hoje, o controle das elevatórias é realizado no Centro de Operações Integradas (COI) da concessionária onde qualquer problema pode ser identificado de imediato. “Mas, muitas vezes, a reclamação pelo whatsapp chega junto ou até antes do alarme do sistema automatizado”, brinca Andrade. A Águas do Rio, na verdade, tem orgulho do seu entrosamento com a população, através do Programa Afluentes, que reúne líderes da comunidade com objetivo de abrir canais de informação e integração. Na área da Zona Sul onde está a Lagoa Rodrigo de Freitas, o Afluentes mantém um grupo de whatsapp com quase 100 pessoas. “Nós temos um senso de urgência para resolver as questões. Assim que detectamos qualquer problema ou somos acionados, a equipe chega rapidamente. E as pessoas reconhecem isso”, comenta Maria Alice Rangel, coordenador de serviços da região.
De acordo com a Águas do Rio, os problemas agora são mais pontuais, mas eles mantêm equipes de fiscalização permanentes no entorno da lagoa e contam com os parceiros. “Os despejos generalizados e em gigantescos volumes não são mais vistos. No entanto, há ainda vários trechos onde as galerias de águas pluviais têm apresentado presença de esgoto. Para neutralizar essa situação completamente deplorável em pleno século XXI temos potencializado o trabalho de nossa equipe que gerencia o manguezal local com as equipes da concessionária Rio Águas. A cada identificação de despejo, a empresa é informada e imediatamente manda uma equipe para tomar as providências necessárias”, conta o biólogo Mário Moscalelli. “Essa guerra, isto é, a identificação das fontes dos lançamentos irá durar mais um ou dois anos, sendo que a vigilância terá de ser permanente. Não há como baixar a guarda”, completa.
Sinval Andrade acrescenta que essa parceria se estende aos pescadores da colônia da Lagoa que ajudam na limpeza das rúpias marinhas, a espécie de alga que mais prolifera nas águas. Sua proliferação descontrolada ameaça os peixes; mortas, as plantas exalam um cheiro ruim e uma espuma branca. “Não é esgoto mas parece esgoto, então fica sendo nossa responsabilidade”. A Águas do Rio também vem trabalhando em parceria com o projeto Manguezal, do biólogo Moscatelli, e com os órgãos públicos. “Nós temos um canal direto com a Rio Águas, responsável pela operação das comportas dos canais que ligam o mar à lagoa. Trabalhamos juntos sempre para evitar qualquer problema. A concessionária realmente abraçou a lagoa”, garante o superintendente, lembrando ainda que a concessionária tem uma parceria com Inea (Instituto Estadual do Meio Ambiente) para a fiscalização. “Nós podemos multar quem viola os termos de concessão, jogando, por exemplo, esgoto na galeria de água pluvial mas quem pode punir crime ambiental, por exemplo, é o Inea”, explica Andrade.
Balneabilidade possível
A Fundação Rio Águas faz um trabalho de monitoramento diário da Lagoa Rodrigo de Freitas, controlando nível da água, temperatura, oxigenação. “No caso da Rodrigo de Frietas, nós atuamos permanente para manter desobstruído o canal do Jardim de Alah, assegurando a troca de água entre mar e lagoa”, explica Wanderson Santos. O órgão municipal também opera outras duas comportas (General Garzon e Visconde de Albuquerque) que são estratégicas para a qualidade ambiental da Lagoa e para a balneabilidade das praias. A manutenção do nível da lagoa influencia diretamente no escoamento das águas pluviais de bairros da Zona Sul. “Nós estamos agora trabalhando em parceria com a concessionária para viabilizar a modernização das comportas e facilitar toda a operação”, acrescenta o presidente da Rio Águas.
Todas essas ações vêm contribuindo para essa mudança no cenário deste cartão postal: nadar nas águas da Lagoa Rodrigo de Freitas nem parece mais uma ameaça à saúde. “Há pontos da lagoa que já são balneáveis, principalmente na área mais central, onde ficam concentrados os praticantes de esportes aquáticos”, atesta o presidente da Rio Águas, que tem acesso aos boletins diários. “Dependendo do ponto, a Lagoa já deve ser balneável”, concorda Moscatelli. Nós sabemos que será preciso uma fiscalização permanente e constante. “Nos trechos sob influência das galerias de águas pluviais, por conta da fauna urbana, não vejo com bons olhos um mergulho por conta de contaminação de urina de roedores”, ressalva. “100% de balneabilidade não vai dar porque desaguam galerias de água pluvial, além de óleo dos veículos nas pistas do entorno que podem acabar na Lagoa”, lembra Andrade, da Águas do Rio. “Mas os próprios pescadores garantem que já há pontos em que é possível mergulhar”.
A água mais clara, o aparecimento de novas espécies de animais, o vigor dos manguezais e, naturalmente, a ausência de mortandade de peixes reforçam a esperança de uma vitória ambiental definitiva na Lagoa. “A Lagoa Rodrigo de Freitas é um ecossistema naturalmente vulnerável que está em processo contínuo de recuperação. a história ambiental recente da Lagoa, nos últimos 34 anos, foi de renascimento e morte. Minha expectativa é que de agora em diante avancemos de forma mais sistemática em direção à uma efetiva gestão do ecossistema loca”, afirma Moscatelli. “Essa nova vida da Lagoa é resultado de planejamento e de um trabalho de longo prazo. Foi com o fortalecimento de ações conjuntos que temos um ecossistema recuperado e equilibrado na Lagoa Rodrigo de Freitas”, aponta Wanderson Santos.
O desafio de Jacarepaguá
Se a Lagoa Rodrigo de Freitas completou neste fevereiro quatro anos sem registrar mortandade de peixes, o complexo lagunar de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, começou o ano com quase seis toneladas de peixes mortos sendo retirados das águas da Lagoa de Marapendi na primeira quinzena de janeiro. Os suspeitos foram os de sempre: esgoto, poluição, calor excessivo. O complexo lagunar de Jacarepaguá é formado por três lagoas principais – Tijuca, Jacarepaguá e Marapendi – além da de Camorim, A Zona Oeste do Rio é a área da cidade com menor cobertura de rede de esgoto e, de acordo com o próprio Inea, e as lagoas são destino de despejo de esgoto de variadas origens. “O sistema lagunar de Jacarepaguá é o maior passivo ambiental e até econômico, exclusivo do município do Rio de Janeiro. Nosso ‘everglade’ carioca, de paraíso ambiental dos anos 40 do século passado, se transformou numa imensa latrina em menos de 80 anos de ocupação predatória”, protesta o biólogo Mário Moscatelli.
O professor explica que a falta de ordenação do uso do solo e falta de saneamento universalizado transformaram o complexo de lagoas “em imensas latrinas e depósitos de lixo e sedimento, além de transformar toda a bacia hidrográfica local numa imensa vala morta de esgoto e lixo”. O saneamento da Zona Oeste está agora sob responsabilidade da concessionária Iguá, que já está trabalhando com Moscatelli para repetir o trabalho de recuperação realizado na Lagoa. “A expectativa recai agora sobre a ação da nova concessionária que atua na região e que tem por obrigação contratual investir 250 milhões de reais nos passivos, produto de décadas de descaso, além da universalização do saneamento. Pessoalmente, do ponto de vista técnico, vai levar algum tempo mas poderá ser feito. A grande incógnita é se o poder público fará a sua parte, ordenando e gerando políticas habitacionais pelos próximos vinte anos”, afirma o biólogo.
O presidente da Rio Águas também acredita que é possível a recuperação do sistema lagunar. “É numa escala maior mas as ações devem ser na mesma direção do que houve na Lagoa Rodrigo de Freitas. Precisa ter planejamento, fazer a dragagem dos canais para melhorar a circulação das águas das lagoas, recuperar áreas assoreadas, garantir a coleta de lixo, barrar o esgoto, recuperar fauna e flora”, afirma Wanderson Santos. “No caso da Lagoa Rodrigo de Freitas, foi decisivo o mesmo sentimento de pertencimento que os cariocas têm com ela; isso fez com que a sociedade cobrasse soluções. Infelizmente, ainda não existe o mesmo sentimento em relação ao sistema lagunar de Jacarepaguá, uma área belíssima com potencial para ser abraçada pela população mas que pouca gente conhece ou aproveita. É um berço de vida, com uma riqueza incrível de fauna e flora”, acrescenta.
Para Wanderson Santos, a recuperação é possível. “A Lagoa mostra isso. Mas é preciso começar agora, com planejamento, para que os resultados apareceram no futuro. É necessário desenvolver ações conjuntas e também cobrar. E criar esse sentimento de pertencimento em relação a esse ecossistema maravilhoso”, argumenta o presidente da Rio Águas. O biólogo Mário Moscatelli aponta na mesma direção. A Lagoa mostra que trabalhando sério e de forma permanente, os resultados ambientais aparecem”, afirma, ressalvando que o desafio é grande. “De uma coisa eu tenho certeza, o sistema lagunar de Jacarepaguá, as Baías de Guanabara e Sepetiba são recuperáveis do ponto de vista técnico. Resta saber se, do ponto de vista cultural e político, o que precisa mudar, irá mudar efetivamente. Não tem mágica, apenas trabalho por duas a três décadas”.