No dia 4 de dezembro de 2023, o policial militar Thiago Cesar de Lima matou a mulher, Érika Satelis Ferreira, com dois tiros após agredi-la a socos no meio de uma rua Zona Norte da capital paulista. Flagrado por câmeras de segurança, o PM está preso e denunciado por feminicídio. O crime é um dos 620 feminicídios – incluindo transfeminicídios – registrados pela Rede de Observatórios de Segurança em 2023 nos sete estados em que a rede atuava também em 2022 – Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo – e significa um aumento de quase 50% (49,04%) em relação aos 416 ocorridos no ano anterior.
Todos os crimes – qualificadoras, na metodologia da pesquisa – registraram aumentos expressivos de 2022 para 2023 nesses sete estados: estupro/violência sexual subiu 39% (de 254 para 353), cárcere privado/tortura teve aumento de 48%, tentativa de homicídio cresceu 69,7%. “Os números são realmente exorbitantes e assustadores. Eles refletem essa crise de violência contra a mulher que o Brasil está sofrendo. E aparentemente nada está sendo feito para melhorar isso”, afirma a economista Thaís Custódio, Coordenador de Pesquisa da Rede de Observatórios e organizadora da quarta edição do relatório ‘Elas Vivem: liberdade de ser e viver’.
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A Rede de Observatórios é uma iniciativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) dedicada a acompanhar políticas públicas de segurança, fenômenos de violência e criminalidade. Além dos sete estados em que atua há mais tempo, a Rede incorporou o Pará em 2023 – que, por isso, ficou fora da comparação com 2022 – e passa a contar com o Amazonas em 2024. No total, o relatório da Rede de Observatórios revela que a cada 24 horas, ao menos oito mulheres foram vítimas de violência em 2023. Foram 3.181 vítimas registradas em 2023 (aumento de 20%) em 3.528 eventos de violência contra mulher – muitas mulheres são vítimas de mais de um caso de violência.
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Veja o que já enviamosFoi o caso de Érika Ferreira, assassinada pelo marido em dezembro de 2023: em outubro, Erika registrou um boletim de ocorrência contra o PM por ameaçá-la de morte: no depoimento, ela acusou o marido de apontar a arma para a sua cabeça após uma discussão por ciúmes. “Existe uma falta de continuidade nos processos de proteção às mulheres de um modo geral. Para elas, é difícil procurar uma delegacia para fazer a denúncia porque muitas vezes são mal atendidas e se sentem expostas. Faltam delegacias especializadas o que dificulta esse primeiro acesso”, comenta Thaís Custódio. “Essa falta de continuidade prossegue na esfera judicial em que as mulheres, por vezes, não conseguem as medidas protetivas necessárias”, acrescenta.
O assassinato de Érika ilustra ainda outro dado do relatório: de acordo com a Rede de Observatórios, 72,7% das vítimas de feminicídio tiveram como assassino o parceiro ou ex-parceiro. Quase 70% de todos os eventos de violência contra mulher – com identificação de relação entre vítima e autor – teve como autor o cônjuge ou ex-cônjuge (1.132 casos) ou o namorado ou ex-namorado (282 casos).
Os dados nos estados mostram São Paulo como o único estado a ultrapassar mil eventos de violência – um aumento de 20,38% (de 898 para 1.081). Em seguida vem o Rio de Janeiro, que cresceu 13,94% (de 545 para 621). Entretanto, o Piauí é o estado que registrou a maior taxa de crescimento: quase 80% nas violências de gênero em um ano (de 113 para 202). Também no Nordeste, com 319 casos de violência, Pernambuco tem o maior número de feminicídios (92). A Bahia lidera em morte de mulheres na região (199), o Ceará é o principal em transfeminicídios (7) e o Maranhão lidera os crimes de violência sexual/estupro (40 ocorrências). “Nós tivemos quatro anos em que o tema da violência contra a mulher foi negligenciado. Não me surpreende que os crimes contra mulheres continuem crescendo este ano quando um novo governo está assumindo, ainda em fase de transição”, afirma a Coordenadora de Pesquisa da Rede
Thaís Custódio destaca ainda que as dificuldades enfrentadas pelas mulheres desde a denúncia até a fase processual levam à impunidade. “Os agressores não são investigados como deveriam; não são punidos como deveriam. E acabam aumentando a violência contra a mesma vítima, levando à morte. E há agressores que são reincidentes, que já vitimaram outras mulheres e voltam a cometer violência porque não foram punidos”, aponta. Mais uma vez, o assassinato de Érika serve como exemplo – ela já havia sido ameaçada pelo PM Thiago Cesar que já respondia a acusação por agressão e estupro feito por uma ex-mulher, com quem tem um filho.
Na análise dos dados, a pesquisadora também ressalta a explosão de violência contra mulheres na Bahia. O número de feminicídios na Bahia é particularmente chocante para mim, como mulher negra. É um estado com população majoritariamente feminina – 52% – e majoritariamente negra. E houve uma explosão de crimes contra as mulheres com facas e outras armas brancas. É uma violência que não para de crescer no estado”, aponta Thaís Custódio. Na Bahia, foram registrados 70 feminicídios – e o estado é líder entre os oito monitorados nos homicídios de mulheres, com 129 ocorrências (mortes não classificadas como feminicídios).
A dificuldade no levantamento dos dados é uma rotina enfrentada a cada ano pelos observatórios. Pelo quarto ano consecutivo, há escassos registros de raça/cor das vítimas. 71,72% das mulheres sem informação racial. Em 35% dos casos, a relação entre autor e vítima não é estabelecida – na Bahia, chega a 60%. “Há um enorme falta de transparência nos dados sobre segurança pública. Muitas vezes, somos obrigados a usar a Lei de Acesso à Informação”, conta a coordenadora do relatório.
Pela primeira vez, o Pará está entre as regiões mapeadas, ocupando a quinta posição no ranking entre os oito estados, com 224 eventos de violência contra mulheres – inclusive 43 feminicídios. E, a partir de 2024, a Rede de Observatórios também estará integrada pelo Amazonas. “São iniciativas muito importante porque a violência nos estados da Região Norte, na Amazônia, tem muitas especificidades e particularidades e vem crescendo muito”, afirma a pesquisadora Thaís Custódio..
Integram a Rede de Observatórios o grupo de pesquisa ILHARGAS, do Amazonas; a Iniciativa Negra Por Uma Nova Política de Drogas, da Bahia; o Laboratório de Estudos da Violência (LEV), do Ceará; a Rede de Estudos Periféricos (REP), do Maranhão; o Grupo de Pesquisa Territórios Emergentes e Redes de Resistência na Amazônia (TERRA), do Pará; o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), de Pernambuco; o Núcleo de Pesquisas sobre Crianças, Adolescentes e Jovens (NUPEC), do Piauí; o Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), de São Paulo; e o próprio Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), no Rio.