Futebol de cegas: mulheres driblam preconceito e invisibilidade

Equipes femininas seguem fora dos Jogos Paralímpicos de Paris 2024. “Eu não vou desistir enquanto o futebol de cegas não for reconhecido”, afirma a jogadora Geisa Farini

Por Micael Olegário | ODS 10ODS 5 • Publicada em 28 de agosto de 2024 - 08:56 • Atualizada em 19 de novembro de 2024 - 11:18

Mulheres disputam partida de futebol de cegas no CT Paralímpico de São Paulo; modalidade feminina sofre com falta de campeonatos e incentivos (Foto: Renan Cacioli/CBDV – 29/05/2022)

Geisa Farini, 36 anos, cultiva o futebol de cegas como uma paixão e parte de sua identidade. Assim como no tradicional esporte de campo que as mulheres estiveram proibidas de praticar durante 38 anos (de 1941 a 1979), a modalidade paradesportiva impõe diferentes barreiras para as mulheres. Fora dos Jogos Paralímpicos de Paris 2024, não existem campeonatos e políticas de incentivo à prática do futebol de cegas. 

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Geisa foi uma das 8 atletas cegas que participaram de um jogo amistoso organizado no início de agosto pela Federação Paulista de Desportos para Cegos (FPDC), durante uma etapa do campeonato paulista de futebol para homens cegos. As duas equipes (azul e vermelha) – cada uma com quatro jogadores cegas e um goleiro que enxerga, como nos times masculinos – disputaram uma partida com dois tempos de oito minutos (as partidas entre homens têm, em geral, dois tempos de 25 minutos).

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No futebol de cegas ou cegos, a bola possui um guizo que faz barulho e serve de orientação para as atletas. A comunicação entre elas também é um outro elemento essencial durante os jogos. “Foi bem legal, inclusive as meninas foram remuneradas depois. Ganhamos uma ajuda de custo, medalha e camiseta, tudo que a gente nunca teve”, conta Geisa Farini.

Existem várias modalidades que não são paralímpicas, mas tem mundiais, outras competições que podem ser criadas e formas de você reforçar a modalidade como um paradesporto. Não queremos esperar se tornar paralímpica para jogar bola

Geisa Farini
Engenheira de software e atleta

Apesar da alegria de finalmente participar de um jogo com público, a atleta menciona os desafios constantes que envolvem a prática. “Não tem investimento financeiro, então as meninas não conseguem se manter só fazendo o esporte”, descreve Geisa, que conheceu a modalidade em 2022 através do projeto de uma associação e que depois foi encerrado, justamente pela falta de incentivo e partidas.

Os desafios envolvem também os treinos, ministrados desde o início do ano de forma voluntária por um professor do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB). Por não serem oficiais, muitas vezes os treinamentos são cancelados e nem ocorrem. “Nós que gostamos muito de jogar ficamos bem ansiosas, porque treinamos, mas não temos perspectiva de competição. Muitas vezes nem perspectiva se vai ter o treino na semana”, lamenta a atleta. 

Ainda assim, Geisa resiste e acredita em uma mudança que traga mais igualdade de gênero para o paradesporto. “Eu não vou desistir enquanto o futebol de cegas não for reconhecido e ter a visibilidade que merece, porque as meninas têm potencial para ocupar um espaço de destaque. A gente só precisa de oportunidade”, enfatiza.

Duas fotos coloridas de Geisa Farini. Na foto da esquerda, Geisa aparece em pé, com a bola de futebol e em frente a um gol. Ela é uma mulher branca cega, com cabelos pretos. Ela usa uma camiseta verde, bermuda cinza e meia preta. Na foto da direita, Geisa está em pé, em frente a beira do mar. Ela está com os braços abertos e sorri. Ela usa um boné e tem uma medalha no pescoço
Geisa Farini nutre paixão pelo futebol e pela corrida; treinos de futebol de cegas ainda não são oficiais (Foto: Arquivo Pessoal)

Brasil é uma potência na modalidade

Os primeiros registros da prática do futebol por cegos no Brasil são dos anos 1950, sendo que o primeiro campeonato foi organizado em 1978, durante as Olimpíadas das APAEs, em Natal (RN). A primeira Copa do Brasil foi disputada em 1984, em São Paulo. Desde então, a modalidade se desenvolveu e diversos campeonatos foram criados. 

  • Em 2023, a 11° edição do Campeonato Brasileiro de Futebol de Cegos Série A teve a participação de 12 equipes de nove estados e do Distrito Federal;
  • A Série B conta, atualmente, com oito equipes;
  • Ainda existem os campeonatos regionais: Sul-Sudeste, Centro-Norte e Nordeste.

Em termos internacionais, a seleção masculina do Brasil conquistou o primeiro mundial da modalidade que foi disputado em 1998, em Paulínia (SP). A equipe dos homens cegos também levou a taça outras quatro vezes (2000, 2010, 2014 e 2018). Além disso, desde a inclusão da modalidade nos Jogos Paralímpicos de Atenas em 2004, o Brasil conquistou o ouro em todas as edições. Contudo, em relação as equipes femininas, o contexto é muito diferente.

Panorama do futebol de cegas

Existem poucas informações sobre o início da prática por mulheres cegas. No cenário internacional, Alemanha, Inglaterra e Itália organizaram seleções femininas em uma primeira competição europeia em 2021. Já o primeiro mundial foi disputado no ano passado entre oito seleções: Argentina, Japão, Suécia, Índia, Alemanha, Inglaterra, Marrocos e Áustria. As partidas foram realizadas em Birmingham, na Inglaterra, e o título ficou com a Argentina.

No Brasil, a primeira equipe feminina foi criada em 2009 pela Urece Esporte e Cultura para Cegos, uma associação do Rio de Janeiro. A iniciativa, porém, não teve sequência. Anos mais tarde, em 2022, a Confederação Brasileira de Desportos de Deficientes Visuais (CBDV) organizou o I Festival de Futebol de Cegas. O evento reuniu 26 atletas de diferentes estados para uma série de treinos e partidas no CT Paralímpico Brasileiro, em São Paulo. 

No mesmo ano do festival, a Associação Desportiva de Futsal do Distrito Federal (ADEF) criou a primeira equipe feminina da modalidade. Depois, já em 2023, o futebol de cegas foi apresentado para atletas de outros paradesportos durante os Jogos Juvenis da CBDV

Em abril deste ano, o programa Atleta Cidadão do Futuro (ACF) Paradesporto criou a primeira equipe feminina de futebol de cegas do Rio Grande do Sul. A iniciativa foi idealizada pela Secretaria de Esporte e Lazer de Canoas, que é a cidade sede da Associação Gaúcha de Futsal para Cegos (Agafuc).

Argentinas derrotaram as japonesas no primeiro mundial de futebol de cegas; equipes femininas buscam se desenvolver (Foto: Richard Hall/IBSA)

Paixão pelo futebol

Por conta de um glaucoma congênito, Geisa Farini nasceu enxergando com apenas um dos olhos e, aos 13 anos, perdeu totalmente a visão. Carioca e torcedora do Vasco da Gama, ela herdou a paixão pelo futebol do pai Antônio Carlos, que morreu quando ela tinha cerca de 7 anos. Mais velha de quatro meninas, desenvolveu cedo o senso de responsabilidade e liderança.

Pós-graduada em engenharia de software, Geisa atua como analista de acessibilidade digital em São Paulo, além de ser consultora e palestrante. No tempo livre, gosta de praticar diferentes atividades físicas e produz conteúdos para as redes sociais, onde possui mais de 500 mil seguidores entre Instagram e TikTok. “Mas a minha paixão mesmo é corrida e futebol”, destaca ela.

De acordo com ela, a intenção dos conteúdos é mostrar o cotidiano de uma mulher cega com autonomia. “Consequentemente, eu acabo compartilhando as minhas paixões e é muito legal, porque muita gente nem sabe que mulheres cegas também gostam de jogar bola”, pontua Geisa. A invisibilidade da modalidade feminina está ligada a uma série de preconceitos e tabus que também afetam as pessoas cegas.

“Eu lembro que só os meninos tinham permissão de pegar a bola com guizo, as meninas não tinham”, descreve Geisa Farini. Para poder jogar, ela tinha que pedir a um menino para pegar a bola ou adaptar algum outro objeto. “Cheguei até a situação de encher uma garrafinha de pet de pedrinha para poder fazer barulho e eu chutar”, conta.

Machismo e desigualdade

Pesquisador que estuda gênero, deficiência e esporte, Wagner Xavier de Camargo explica que historicamente as mulheres cegas foram direcionadas para o goalball e atletismo, sendo excluídas do futebol e outros paradesportos de maior contato físico. Isso baseado em uma ideia preconceituosa de suposta proteção para elas.

Neste contexto, o universo dos paradesportos reproduziu certos preconceitos presentes na sociedade. “Não é porque os cegos são atingidos pelo estigma de uma deficiência que eles não sejam preconceituosos. O mundo do futebol de cegos é extremamente machista”. Como exemplo, Wagner menciona risos e piadas feitos por homens cegos em partidas disputadas por mulheres.

Por que as mulheres cegas não têm oportunidade de desenvolver a sua expressão futebolística como os homens cegos tiveram?

Wagner Xavier de Camargo
Pesquisador

Na visão do pesquisador, o contexto atual apresenta uma oportunidade para o desenvolvimento do futebol de cegas, na esteira da maior visibilidade conquistada pelo futebol feminino convencional. “As mulheres já sabem que elas são detentoras de direitos, incluindo o direito de exercer uma prática e não precisar ficar em uma outra modalidade”, acrescenta.

Um terceiro aspecto que impulsiona a inclusão no paradesporto é o que o pesquisador chama de ascensão de múltiplos futebóis, ou seja, a abertura do esporte para a diversidade de homens e mulheres LGBT+. “Mesmo dentro do futebol que é conhecido como LGBT+, já falamos de múltiplos futebóis, ou seja, práticas de representatividade e reconhecimento de grupos sociais”, afirma Wagner. 

Como outro exemplo desse movimento de inclusão, ele lembra a mesatenista Bruna Alexandre, que disputou as Olimpíadas e vai disputar também as Paralimpíadas em Paris. “A pergunta que fica é: por que as mulheres cegas não têm oportunidade de desenvolver a sua expressão futebolística como os homens cegos tiveram?”, questiona Wagner.

Jogadoras participaram de partida amistosa no início de agosto; falta de calendário e competições prejudica preparação de atletas (Foto: Wagner Xavier de Camargo – 03/08/2024)

Reconhecimento Paralímpico

Uma determinação do Comitê Paralímpico Internacional (CPI) pretende obrigar que os países possuam equipes femininas de futebol para disputar a modalidade nos Jogos Paralímpicos de Brisbane em 2032. Para a próxima edição, em Los Angeles 2028, está prevista uma partida de apresentação do futebol de cegas.

Na avaliação de Geisa, esse movimento indica um grande avanço, quase como um gol, mas está longe de representar uma partida ganha. “Não queremos esperar até lá, porque existem várias modalidades que não são paralímpicas, mas tem mundiais, outras competições que podem ser criadas e formas de você reforçar a modalidade como um paradesporto. Não queremos esperar se tornar paralímpica para jogar bola”. 

De acordo com a atleta, falta vontade política para incentivar que associações e entidades desenvolvam a prática e remunerem as jogadoras. “Às vezes não conseguimos nem lanche nos treinos. Estamos muito longe do ideal de igualdade”, acrescenta.

Geisa se prepara para cobrar pênalti em jogo amistoso; investimentos são essenciais para fortalecer a modalidade feminina como paradesporto (Foto: Wagner Xavier de Camargo – 03/08/2024)

O que diz a CBDV?

Questionada sobre as ações de incentivo ao futebol de cegas, a Confederação Brasileira de Desportos de Deficientes Visuais (CBDV) afirmou que aguarda o reconhecimento como modalidade paralímpica para poder captar recursos e investir. “O futebol de cegas está no início da caminhada para, futuramente, atingir a mesma realidade da modalidade praticada entre os homens, que é de incentivos, recursos e maior visibilidade”, diz a CBDV.

Na partida amistosa disputada em São Paulo no início de agosto, Geisa utilizou a camiseta nove, número de uma artilheira que não desiste de buscar marcar gols e vencer. “Eu quero ser resistência para modalidade. Eu estou lá faça chuva ou Sol. Depois do trabalho pego minha mochilinha e vou para o treino”.

Mesmo sem ter esperanças de disputar Jogos Paralímpicos, devido a idade e outros projetos, como a intenção de ser mãe, Geisa quer proporcionar oportunidades para outras meninas. “Eu quero estar aqui para ver isso virar oficial, para ver esse esporte virar paralímpico, porque eu sei que isso é importante e eu quero abrir o caminho para outras meninas poderem jogar bola”, finaliza ela.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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