Enquanto atletas trans são banidos de competições, crianças em transição ganham espaço nos esportes

Modalidades como vôlei atraem mais adeptos, mas futebol continua o mais popular. Pesquisas sobre possíveis vantagens são inconclusivas, dizem especialistas

Por Luiza Souto | ODS 10ODS 5 • Publicada em 2 de julho de 2024 - 08:53 • Atualizada em 12 de agosto de 2024 - 09:56

O time do IMBB, de São Paulo: pioneiro no futebol de pessoas trans do país, em maio último abriu turma somente para crianças em transição. Foto divulgação

Reconhecido como dos mais poderosos meios de inclusão social, o esporte ainda não dá conta de unir atletas transgênero – aqueles que não se identificam com o sexo biológico – a times de pessoas cisgênero (cuja identidade de gênero corresponde ao sexo atribuído ao nascimento). Debates intensos, regras restritivas e muito preconceito são adversários poderosos no jogo da inserção.

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O principal argumento é que as diferenças biológicas podem afetar a capacidade atlética, criando desigualdade competitiva. Mas se entre os adultos ainda imperam as barreiras, iniciativas têm surgido para aproximar crianças trans do esporte, num ambiente mais acolhedor, onde os menores possam participar e se desenvolver sem enfrentar discriminação. 

Um exemplo é o Instituto Meninos Bons de Bola, que em 2016 foi pioneiro no futebol de pessoas trans do país, e em maio último abriu turma somente para crianças em transição, dos 7 aos 13 anos de idade, em São Paulo. O técnico Gustavo Moura Leal narra que durante vários dias recebeu a visita “de três a quatro meninos trans” aos treinos dos mais velhos. E resolveu pedir a permissão às mães para começar uma turma só dos pequenos. “A gente quis dar mais atenção para elas. Já era um desejo nosso, e acabou acontecendo naturalmente”.

Hoje são três meninos e duas meninas. E as mães, celebra Leal, estão se movimentando para crescer o time. “Ano passado formamos um só de meninas trans e ainda temos pessoas não-binárias.”

Crianças assistem a um jogo em São Paulo: inclusão avança. Foto divulgação
Crianças assistem a um jogo em São Paulo: inclusão avança. Foto divulgação

“Espaços específicos para crianças trans fortalecem sua identidade”

A analista financeira Aline Dias, 38, está se empenhando para chamar mais crianças para as aulas. Coordenadora em São Paulo da ONG Minha Criança Trans, ela relata que Lauro, o filho de 7 anos, se reconheceu como menino antes mesmo de completar 2, época em que dava seus primeiros chutes com bola. E somente agora teve a oportunidade de achar um espaço mais acolhedor para ele. “Acho que crianças devem brincar juntas, independentemente do gênero. Porém, espaços específicos para crianças trans também são importantes para o fortalecimento da identidade e para se sentirem acolhidas e compreendidas”, ela observa.

Lauro tem entendimento muito claro sobre o assunto: “Adoro futebol e fico muito feliz no treino. Não vejo diferença entre jogar com meninos ou meninas”, ele afirma de pijama, ao lado da mãe. 

A professora Juliana Araújo, 40, andava preocupada com o desenvolvimento de sua filha, Elis, de 8, que começou sua transição recentemente e a família nunca conhecera uma mulher trans. Ela soube do IMBB através de Aline e, desde que matriculou a filha, percebeu outro cenário em casa. “Foi muito saudável para ela ter essa visualização de outras pessoas trans”. A garota complementa: “É muito legal jogar lá. Todo mundo me respeita.”

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Juliana ressalta os desafios enfrentados no esporte, como dificuldade de atenção, mas avalia: “É importante quando o esporte inclui pessoas ditas fora do padrão, já que ele é excludente de modo geral, por separar o feminino do masculino, como se as pessoas não fossem únicas e excepcionais por elas mesmas.”

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Futebol não é o único inclusivo

Outra modalidade que vem abraçando pessoas trans é o vôlei: criado em 2008, o projeto esportivo Angels Volley, também em São Paulo, hoje soma 253 atletas, incluindo 65 mulheres trans e travestis. Fora isso, busca escola para as pessoas estudarem, bolsas em universidades, cursos, empregos e mais.

Para seu idealizador, o administrador Willy Montmann, 39, separar atletas trans de cis não deveria nem ser discussão. “A população trans de cada país gira em torno de até 2%. Sabendo que a maioria tem evasão escolar por volta dos 14 anos, faz uso de hormônios de forma equivocada ou nem utiliza, são expulsas de casa, agredidas pela sociedade, quantas dessas vão chegar ao esporte profissional? Será uma em um milhão”, aponta.

Vitória, 17, filha da técnica de enfermagem Camila Chagas Távora, 40, pratica vôlei na unidade paulistana há um ano, pouco depois de começar seu tratamento hormonal, em 2022. A mãe relata que, até o momento da transição, a filha sentia-se desconfortável durante as atividades na escola, e sofria transfobia. Na sua avaliação, a interação no time com outras pessoas trans ensina toda família. “Ela foi acolhida, e a convivência com mulheres trans trouxe conhecimento que eu, como mãe, uma mulher cis, não entendia. E hoje ela tem um lugar onde pode praticar o esporte de que tanto gosta”. 

Ao lado da mãe, a adolescente, que começou a transição aos 14, afirma que a troca de experiência com mulheres trans e travestis a fez entender mais suas próprias questões íntimas e a necessária inserção na sociedade. “Esse desenvolvimento na área esportiva é mais inclusivo, porque são pessoas iguais a mim. Nunca foi confortável jogar com pessoas cis.”

Vitória torce para que, no futuro, pessoas trans possam jogar com as cis. “Principalmente para atingir algumas qualificações necessárias quando houver a questão da testosterona ou uso hormonal”, finaliza.

“Todo mundo junto com as mesmas oportunidades”

Para o presidente e técnico do clube carioca Trans United, Rodrigo Arcanjo, 32, a discussão sobre times para crianças trans é ainda complexa, porque na sua visão a desigualdade está justamente na separação de times por gênero. Mas concorda que essa é a forma mais segura para essa população praticar esportes e até seguir carreira. “Eu seria a favor de jogar todo mundo junto se tivéssemos as mesmas oportunidades para treinar. Tenho um atleta do meu time que joga com pessoas cis porque continuou jogando sem pausas”, detalha.

A carioca Cindy Castro, 33, sempre sonhou em jogar no profissional e treinava com meninos desde criança. Mas ao fazer sua transição, há 8 anos, preferiu participar do United. “Sempre tem alguém que faz piadas ou comentários maldosos quando tem pessoas cis. No meu time atual, somos todos acolhidos e não há discriminação.”

Hoje, o United têm seu próprio campeonato de futebol, com outros 90times, promovido pela LiGay. Os times ainda podem participar do evento internacional Gay Games. O presidente da Liga, Renan Evaldt, destaca a importância de proporcionar oportunidades iguais para atletas trans. “Tudo é muito difícil e a gente não tem o apoio necessário para fazer um grande evento. Mesmo assim, conseguimos fazer excelentes campeonatos e sermos reconhecidos.”

Entrega de prêmios aos vencedores do campeonato da ligay: popularidade crescente. Foto reprodução

Ciência e igualdade

Dados científicos que sugerem desvantagens ou não entre atletas trans e cis, mesmo aqueles que se hormonizam, são inconclusivos. O endocrinologista Leonardo Alvares, especialista pela USP, é pioneiro na análise das capacidades desportivas de mulheres transgênero, com reconhecimento internacional. Ele realizou pesquisa com 15 pessoas em terapia hormonal por 14 anos em média não atletas, pareadas com 13 mulheres cisgênero e 14 homens cisgênero de mesma idade, nível de atividade física e massa corporal. E numa publicação no renomado “British Journal of Sports Medicine”, evidenciou padrões de capacidade aeróbica e de força muscular de mulheres trans intermediários entre homens e mulheres cis.

Alvares revisou ainda um estudo financiado pelo Comitê Olímpico Internacional, publicado em maio último, que comparou o desempenho laboratorial entre atletas amadores transgênero e cisgênero. E viu que as mulheres trans demonstraram força de preensão manual absoluta (medida do estado de geral de força humana) maior do que a de mulheres cis, porém a altura de salto e a capacidade aeróbica foram semelhantes entre os grupos, função pulmonar reduzida, maior esforço respiratório e desempenho inferior na altura do salto e na capacidade aeróbica. 

Já os homens transgênero mostraram força e capacidade aeróbica inferiores aos homens cisgênero. No fim, a pesquisa destaca a necessidade de mais dados sobre atletas transgêneros para informar decisões e garantir equidade no esporte.

O especialista está finalizando novo estudo, agora com mulheres trans atletas amadoras de vôlei pareadas com a população cis da mesma modalidade e com alturas semelhantes. Os resultados parciais e preliminares demonstram níveis de força, altura de salto e capacidade aeróbica semelhantes entre os dois grupos. “De forma preliminar, o que nos parece é que a comparação de mulheres trans e cis não atletas demonstra capacidades maiores em mulheres trans, enquanto que nas atletas amadoras as capacidades tornam-se equiparáveis. Mais estudos de fisiologia do exercício e adaptação ao treinamento e exercício crônico são necessários para mais explicações”, ele conclui.

Estudos inconclusivos e o papel da testosterona

Numa análise de 21 estudos feitos em atletas transgênero comparando força muscular, hematócritos e hemoglobina, o ortopedista Roberto Nahon, também especialista em medicina do esporte, aponta que todos os dados mostram níveis alterados em quem faz tratamento hormonal com testosterona. Mas ele, ex-chefe do Comitê Olímpico do Brasil e diretor da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE), também pede mais pesquisa. “O que mais faz diferença é a concentração de testosterona e há quanto tempo foi feita a inibição. É baseado nisso que a gente tem alguma tendência”, explica ele, que é classificador paralímpico internacional nível II (o mais alto) nas especialidades médico e técnico das Confederações Internacionais de Remo e Triatlo.

Apesar disso, atletas trans vêm sendo banidos de alguns esportes, como aconteceu recentemente com a nadadora americana trans Lia Thomas. Ela está fora das Olimpíadas de Paris após a World Aquatics proibir a participação de nadadoras transgênero em competições femininas.

As regras do COI

Com o discurso de garantir uma competição justa e inclusiva, o Comitê Olímpico Internacional implementou, em 2003, diretrizes específicas para a participação de atletas transgênero nos Jogos, atualizadas em 2015. Entre as regras, esportistas transmasculinos (feminino para masculino) não devem usar andrógenos, a menos que comprovem que a exposição aos hormônios está dentro da faixa normal para um homem, que varia aproximadamente entre 10 e 30 nanomoles por litro (nmol/L).

As atletas transfemininas (masculino para feminino) devem demonstrar que seu nível total de testosterona esteve abaixo de 10 nmol/L por pelo menos um ano antes da primeira competição. E essa medida deve permanecer abaixo desse nível durante todo o período de elegibilidade para competir na categoria feminina. 

Apesar das diretrizes, o COI deixou para cada federação esportiva ter seu requisito, por reconhecer a diversidade dos esportes. Nahon vê coerência na decisão.  “Os esportes são muito diferentes, então faz sentido cada um pensar por si só e apresentar uma solução. Mas é preciso haver pesquisa, e estamos falando de mais de 40 esportes e um número muito pequeno de atletas trans”, observa.

Luiza Souto

Jornalista e pesquisadora do Rio de Janeiro. Tem experiência na cobertura sobre Direitos Humanos, diversidade e gênero. Também produtora e roteirista de campanhas e minidocumentários com essas temáticas. Contribuiu com veículos como Folha de S. Paulo, Extra, O Globo, GloboNews e UOL.

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