Correspondência fotográfica aproxima mulheres encarceradas de seus filhos

Projeto de fotógrafa leva textos e imagens de mães na cadeia para as famílias e traz de volta às presas fotos de suas crias

Por Luiza Sansão | ODS 16ODS 5 • Publicada em 24 de junho de 2022 - 09:52 • Atualizada em 29 de outubro de 2022 - 11:03

Costura de fotos, cartas, retalhos e bordados em exposição sobre o livro Ausência: correspondência fotográfica para aproximar mulheres presas de seus filhos (Foto: Luiza Sansão)

Foram quatro anos de tentativas até conseguir a autorização necessária para transpor a barreira que isola as pessoas presas em um mundo sombrio – e, no caso das mulheres, marcado por um abandono muito mais profundo. Depois de um mergulho no universo da prostituição de beira de estrada, a fotógrafa Nana Moraes definiu que “Andorinhas”, o fruto desse trabalho, seria o primeiro livro de uma trilogia: DesAmadas – dedicada a mulheres em situação de vulnerabilidade. “O objetivo da trilogia é me encontrar com mulheres estigmatizadas, marginalizadas, trazer à tona suas histórias de vida”, afirma a autora. O segundo mergulho, desta vez no universo prisional, deu origem ao livro “Ausência”, que acaba de ser lançado, como resultado do projeto Travessia.

A coisa mais óbvia e latente era o fato de as mulheres não receberem visitas. Os motivos são diversos: desde o fato de que não se admite o erro à mulher até o de que as famílias não têm dinheiro para visitá-las

Nana Moraes
Fotógrafa e autora do livro Ausência

Quando atravessou, finalmente, os portões do Complexo de Gericinó, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, para encontrar-se com as mulheres retratadas na obra, saltou-lhe aos olhos – e às lentes – o que vinha estudando ao longo do tempo em que teve o acesso ao presídio negado pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP-RJ): a solidão de quem, diferente dos homens presos – que contam com filas enormes de visitas, sobretudo de mulheres –, não tem o conforto dos abraços de familiares e amigos em dias de visita.

Capa de "Ausência": livro de fotógrafa Nana Moraes faz parte de trilogia sobre mulheres em situação de vulnerabilidade (Foto: Reprodução)
Capa de “Ausência”: livro de fotógrafa Nana Moraes faz parte de trilogia sobre mulheres em situação de vulnerabilidade (Foto: Reprodução)

É a ausência, em toda a sua profundidade, que marca a vida daquelas mulheres e dá nome ao livro de Moraes. “A coisa mais óbvia e latente era o fato de as mulheres não receberem visitas. Os motivos são diversos: desde o fato de que não se admite o erro à mulher até o de que as famílias não têm dinheiro para visitá-las. Porque a maioria das mulheres presas são chefes de família, 80% são mães. E não é só que elas são abandonadas por seus maridos, porque muitos já estão presos ou mortos. Então, quando essas mulheres são presas, suas famílias se destroem imediatamente. Muitas delas passam mais de um ano aguardando julgamento e, antes disso, suas famílias já estão destruídas”, conta a fotógrafa.

Leu essa? Pena maior por ser mãe

Foi a constatação desse abandono que a levou a apresentar o projeto Travessia: a proposta era exatamente estabelecer pontes entre essas mulheres e seus filhos e filhas, por meio de correspondência fotográfica. Um trabalho de “fotografia de escuta”, como define Moraes – em que transborda sua sensibilidade e entrega.

Depois de fotografar e entrevistar as dezesseis mulheres que participaram do ensaio, o que aconteceu em uma sala de aula do presídio Nelson Hungria, Moraes deu-lhes material para que escrevessem para seus filhos as cartas que a fotógrafa remeteu às famílias, no fim do ano de 2015, junto com pedido de autorização para que seus filhos também fossem fotografados em casa.

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A primeira resposta chegou em fevereiro do ano seguinte, em meio à muita expectativa – de Moraes e, claro, das mulheres. “Eu vi que eu mexi em coisas que estavam, de alguma forma, acomodadas, e eu desacomodei todo mundo. Isso me causava muito sofrimento. Muita reflexão, inclusive sobre a responsabilidade de se fazer um trabalho assim”, conta. Depois chegaram outras respostas. Ela foi às casas das famílias, fotografou os filhos e filhas distantes das mães. Por fim, entregou as fotografias para as dezesseis mulheres, reconectando-as às suas crias.

Nas colchas de retalhos, as imagens das mães e suas mensagens para os filhos (Foto: Luiza Sansão)

Tecendo histórias

Moraes deu início, então, ao processo de “tecer as teias” das histórias que reuniu no livro “Ausência” – no qual costurou as histórias em “retalhos”, entrelaçando fragmentos das cartas trocadas para tecer diálogos que expressam as relações entre mães e filhos. Antes do livro, entretanto, teceu as histórias literalmente, inspirando-se nas arpilleras chilenas – técnica têxtil em que retalhos e sobras de tecidos são bordados sobre sacos de batatas ou de farinhas, utilizada por mulheres chilenas como expressão de resistência política contra a ditadura militar de Pinochet (1973 a 1990).

Essas mulheres ouvem o tempo todo que elas não prestam, que não têm juízo, que são safadas, que mentem. São massacradas o tempo inteiro. E elas se veem como a sociedade as vê

Nana Moraes
Fotógrafa e autora do livro Ausência

A exposição “A Trajetória do Livro Ausência” – com as cartas como “maior tesouro do trabalho”, segundo a artista – estreou no Centro Cultural Correios, no Festival FotoRio 2017, simbolicamente durante as celebrações dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. “O fazer com as mãos, o bordar, o tempo da costura, a reflexão que isso foi me trazendo, a escuta para selecionar essas frases, tudo isso fez com que eu continuasse esse diálogo com elas. E isso virou a exposição. Foi quase uma catarse antes do livro”, conta a fotógrafa.

Simbólico também foi o percurso da exposição, que, depois de passar pelo festival internacional de fotografia Paraty em Foco e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), esteve no Centro Cultural Justiça Federal, de outubro de 2021 a março deste ano. Depois, seguiu para o Retrato Espaço Cultural – casarão dirigido pela própria Nana Moraes, na Glória, guardando a história de sua família, marcada pela arte da fotografia –, onde permaneceu até 12 de junho.

Emoção na visita das presas à exposição sobre “Ausência” no Centro Cultural da Justiça Federal: “Nossa história tá toda aqui, só que com sentimento”, disse, à fotógrafa Nana Moraes. uma das mulheres do projeto Travessia (Foto: Nana Moraes)

Em sete grandes peças bordadas, as fotografias das mulheres, de seus filhos e das cartas trocadas são retalhos da teia que conta histórias dessas vidas invisibilizadas, que representam tantas outras, no terceiro país com a maior população carcerária do mundo – reflexo de uma política criminal ineficaz. Diante da “carência de tudo” – coisas básicas, como cobertores, panos de prato, uma casinha digna – expressa pelas mulheres, foi que nasceu a ideia de “montar o texto como se fossem peças de casa que acolhessem essas histórias”, nas palavras da artista, que recebeu, pelo projeto Travessia, a Medalha Jorge Careli de Direitos Humanos, concedida pelo Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz.

“Os retalhos são uma forma de representar que eu podia costurar um pouco essas vidas, reaproximar um pouquinho essas vidas, bordando as falas delas, as frases que eu escutei, frases que eu li nas cartas”, conta a artista. “Tudo é texto. Só que eu escrevo com luz e, no livro, também com palavras”, define.

“Muito cuidado, muito respeito, muita sinceridade”: essas são, segundo a fotógrafa, premissas básicas para a realização de um trabalho de escuta e que trata com dignidade quem conhece as condições mais indignas de uma sociedade profundamente desigual. Trata-se de uma “fotografia humanista que escuta as questões”, explica Moraes. “A fotografia de escuta é isto: escutar e trazer à tona, de forma que a pessoa fotografada e o assunto fotografado se imponham além da arte em si. É um trabalho para causar reflexão, inquietação”, completa.

Em meio a todas as ausências, as mulheres retratadas pela fotógrafa são tão estigmatizadas – desde antes de estarem presas, já que a maioria tem o perfil dito “criminalizável”: negras, moradoras de periferias –, que não lhes resta amor-próprio para se considerarem, elas mesmas, dignas do amor de seus filhos e familiares. “Essas mulheres ouvem o tempo todo que elas não prestam, que não têm juízo, que são safadas, que mentem. São massacradas o tempo inteiro. E elas se veem como a sociedade as vê”, conta Moraes. Daí a não nutrir nem sequer ressentimento por não receberem visitas e cartas na prisão – é como se não fossem merecedoras. Sentem-se em dívida permanente.

Com orelha escrita pela diretora da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, e prefácio da presidente da Fiocruz, Nísia Trindade de Lima, “Ausência” reúne as histórias dessas mulheres que se rasgaram nas cartas escritas aos filhos e na dor expressa pelas fotografias de Nana Moraes. Com  sensibilidade, a fotógrafa teceu todas as ausências que encontrou nas vozes sufocadas daquelas mulheres esquecidas – e como só ela poderia ter feito, como evidenciam as páginas cuidadosamente costuradas de uma obra que deve ser de consulta obrigatória para todas as pessoas que se propuserem a conhecer o universo prisional feminino e despir-se dos preconceitos que somente isolam ainda mais aquelas que já se encontram relegadas à margem.

Exposição capta emoção das mães encarceradas longe dos filhos retratada também no livro (Foto: Luiza Sansão)

Travessia iniciada na juventude

O interesse de Nana pelo universo feminino remonta a uma experiência mais de trinta anos atrás, quando a então estudante de jornalismo escolheu realizar, como trabalho de conclusão de curso, um ensaio fotográfico no Hospital Psiquiátrico do Juqueri – localizado no município de Franco da Rocha, na Região Metropolitana de São Paulo –, inspirada na obra “A História da Loucura na Idade Clássica” (1961), do filósofo, professor, psicólogo e escritor francês Michel Foucault (1926–1984). Impedida de realizar o trabalho nas colônias masculinas pelo diretor da unidade, que considerou arriscada a empreitada, ela acabou realizando o ensaio somente nas colônias femininas, onde se deparou com problemas de diferentes níveis: de mulheres sem diagnóstico psiquiátrico, alcoólatras ou simplesmente abandonadas, até casos muito graves.

“Eram mulheres em farrapos, nuas no pátio, deformadas por medicações, judiadas. Num dado momento, uma bateu nas minhas costas, falando ‘olha aqui, olha aqui, olha aqui!’, quando eu olhei ela cortou o próprio rosto com o que parecia um caco de vidro”, recorda. Imundo, o lugar tinha um mau cheiro que era de “tudo” ao mesmo tempo – fezes, urina, falta de higiene básica, matérias putrefatas.

Nana Moraes: mergulhos no universo das mulheres em situação de vulnerabilidade (Foto: Divulgação)

Assim que os filmes acabaram, Nana percebeu que estava ardendo em febre. “Ali eu entendi que, de alguma forma, a câmera me protegeu. Enquanto eu estava fotografando, as coisas estavam acontecendo. Quando eu de fato não tinha mais o meu escudo, vi que estava totalmente nua. Fiquei uma semana doente mesmo, aquele cheiro impregnante não saía da minha garganta”, conta a fotógrafa.

Estava ali, sem que Nana percebesse, o impulso inicial de seu mergulho no universo das mulheres. “Com os olhos de hoje, olhando pra trás, eu sinto que ali eu plantei a primeira semente desse trabalho que eu venho fazendo agora”, afirma.

Isto porque, antes desse mergulho que envolve mulheres e questões sociais, Nana passou por diversas experiências na fotografia, a começar pelos dois anos em que, ainda na faculdade, trabalhou como assistente de seu pai, o fotógrafo José Antônio Moraes, que fotografava mulheres em estúdio para revistas da Editora Abril. Se, até então, sua intenção era o jornalismo, foi na fotografia – sina de sua família – que encontrou o ofício de sua vida. E do pai, além da profissão, ela herdou também o posicionamento político-ideológico à esquerda – vínculo que também impulsionou, ao longo dos anos, o desejo de realizar o projeto que vem realizando desde 2011, Travessia, resultado do amadurecimento profissional de uma fotógrafa que capta o mundo com olhos ternos por trás das lentes.

Luiza Sansão

Jornalista dedicada aos direitos humanos, foi repórter e editora da Ponte Jornalismo, trabalhou no jornal O Dia e no De Olho Nos Ruralistas e publicou como freelancer em veículos como Revista Piauí e Carta Capital. Cobre e acompanha o Caso Rafael Braga desde 2013. Com a reportagem "Torturas do Exército levaram Juan Forrastal ao suicídio", na Revista Adusp, recebeu Menção Honrosa do Prêmio Herzog em 2013.

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