A luta das mulheres com deficiência no mercado de trabalho

Preconceito, invisibilidade e capacitismo fazem com que trabalhadoras sejam ainda mais discriminadas do que as mulheres sem deficiência

Por Natalia Rosa | ODS 10ODS 5 • Publicada em 12 de março de 2024 - 09:33 • Atualizada em 19 de março de 2024 - 09:48

As mulheres com deficiência sofrem uma dupla discriminação no mercado de trabalho – por serem mulheres e por terem alguma deficiência. Mesmo atuando em diversos espaços políticos e sociais, e estando capacitadas para profissões que exigem níveis altos de formação – como graduação e pós graduação – as mulheres com deficiência, quando têm oportunidades de inserção profissional, enfrentam o preconceito e os efeitos do chamado capacitismo (preconceito da sociedade em relação às pessoas com deficiência baseado em uma ideia de que elas não são aptas a exercerem certas atividades profissionais e inclusive de gerir suas próprias vidas de forma plena).

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Eu, por exemplo, tenho uma deficiência física e por esse motivo ando com o auxílio de muletas. Sou formada em Comunicação Social (com habilitação em jornalismo) há 7 anos, pouco mais de um ano depois de formada, fui convidada a integrar a equipe de comunicação de um mandato coletivo estadual. Foram 4 anos de uma experiência grandiosa que me trouxe muito conhecimento das técnicas de assessoria de comunicação e do jornalismo de forma geral. Além de informações sobre áreas pelas quais me aproximei, como a de direitos humanos. Tanto que acabei fazendo uma pós-graduação no tema.

Apesar de toda essa bagagem em 4 anos de experiência ativa em formas diferentes de fazer jornalismo, tenho percebido muita dificuldade em retornar ao mercado de trabalho com um emprego fixo desde o fim do meu contrato anterior. Desde o início desse ano tenho conseguido trabalhos esporádicos e curtos em assessoria de comunicação que não pagam nem um salário-mínimo.

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Cotas, mercado de trabalho e deficiência

A Lei de Cotas para Pessoas com Deficiências (8213/1991) determina que empresas com 100 empregados ou mais reservem vagas para o segmento. As proporções variam de acordo com a quantidade de funcionários. De 100 a 200 empregados, a reserva legal é de 2%; de 201 a 500, de 3%; de 501 a 1.000, de 4%. As empresas com mais de 1.001 empregados devem reservar 5% das vagas para funcionários com deficiência, porém, ainda hoje muitas empresas não cumprem a lei.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou em julho de 2023 dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNAD Contínua) voltada para pessoas com deficiência. Segundo a pesquisa, a população com deficiência no Brasil foi estimada em, pelo menos, 18,6 milhões (considerando as pessoas com 2 anos ou mais). O número corresponde a 8,9% da população geral com essa faixa etária. Desse total, o perfil era mais feminino (10%) do que masculino (7,7%).

É a primeira vez que indicadores desse tipo relacionados às pessoas com deficiência são disponibilizados. Esses dados permitem também comparar os indicadores sociais de pessoas com deficiência com o restante da população.

Em 2022, o total de pessoas com deficiência em idade economicamente ativa era de 17,5 milhões: o que equivale a, aproximadamente, 10% do total da população com 14 anos ou mais. Sendo 10,3 milhões de mulheres e 7,2 milhões de homens.

Neste universo, há 5,1 milhões de pessoas com deficiência economicamente ativas de fato – sendo 2,5 milhões de homens e 2,6 milhões de mulheres. Pouco mais de 12 milhões de pessoas com deficiência estavam fora do mercado de trabalho no Brasil (4,6 milhões, homens; 7,7 milhões, mulheres).

Quando comparado a taxa de participação da força de trabalho das pessoas com deficiências daquelas que não têm deficiência, a porcentagem das pessoas sem deficiência no mercado de trabalho em 2022 ficou em 66,4% enquanto a de pessoas com deficiência cai significativamente para 29,2%.

Mesmo com nível superior, participação no mercado segue desigual

A pesquisa mostra que os níveis de ocupação das pessoas com deficiência foram sempre inferiores aos das pessoas sem deficiência, até mesmo quando o grau de instrução é igual. Mesmo para o nível superior, a diferença foi muito alta, em torno de quase 30 p.p. Ou seja, a escolarização não foi o suficiente para equilibrar a relação de pessoas com e sem deficiência no mercado de trabalho.

O capacitismo e a falta de conscientização e até de fiscalização do poder público quanto à acessibilidade nos espaços de trabalho, sejam eles públicos ou privados, são alguns dos principais fatores que ainda dificultam a permanência ou até mesmo a entrada de pessoas com deficiência no mercado formal.

Para conseguir se sustentar minimamente, muitas pessoas com deficiência se reinventam e correm atrás de outras formas de se inserir no mercado de trabalho em áreas que, na maioria das vezes, não têm relação com a sua profissão de origem. É o caso da jornalista Manoella Back. Atualmente, Manoella atua na área de letras, na qual também é formada. Ela explica que trabalha meio período dando aulas em uma escola no regime CLT e o restante do período como MEI (Micro Empreendedor Individual).

”O que acontece comigo, nada mais é do que o reflexo da desigualdade que atinge as pessoas com deficiência. A gente sempre é destinado às profissões que estão na base da pirâmide, aos salários sempre mais baixos”, explica.

“Hoje eu digo que estou bem profissionalmente, mas é porque tive o privilégio de conseguir continuar outros estudos e caminhar por outras áreas. Mas a minha primeira formação, por exemplo, que é comunicação social, eu nunca consegui viver dela, propriamente dita, por uma questão de capacitismo mesmo. De ouvir inclusive de pessoas que recrutam em emissoras, para vagas de repórter que tudo bem, eu era uma repórter com deficiência, mas que eu não podia pedir atestado para não cobrir alguma coisa. E, também, na área de letras, já passei por escolas que diziam que não iriam destinar educação infantil pra mim porque eu não teria condições de correr atrás das crianças. Infelizmente o nosso mercado de trabalho é isso, a gente sabe que para a pessoa com deficiência é mais difícil e para mulheres com deficiência especificamente é ainda pior. Isso só mostra que temos muito chão pela frente”, finaliza.

A pesquisa do IBGE confirma em parte o que aponta o relato de Manoella. Segundo a PNAD, mais da metade (55,0) dos ocupados com deficiência eram trabalhadores informais, enquanto para as pessoas sem deficiência o percentual foi de 38,7%, uma diferença de 16,3 p.p. A participação de mulheres com deficiência no mercado informal foi de 31,0% e das mulheres sem deficiência foi de 20,4%.  A participação no serviço doméstico também seguiu mais alta para mulheres com deficiência (18,8%) do que entre as sem deficiência (12,2%).

Entre as mais de 7 milhões de mulheres com deficiência atualmente fora do mercado de trabalho no Brasil, também está a psicóloga Gabriela Marques, de 36 anos. Mulher com deficiência física e formada há 11 anos, ela conta que só ao tentar entrar no mercado de trabalho percebeu que é um espaço que impõe diversas barreiras às pessoas com deficiência, especialmente às mulheres.

“Apenas quando me formei, em dezembro de 2012, pude perceber que o mercado de trabalho não é nem um pouco compassivo com pessoas com deficiência, como eu. Nesses quase 11 anos de formada, fiz diversas seleções de emprego e entrevistas, sempre recebendo negativas, muitas das quais eu percebia com clareza que não se tratava de uma ‘vaga já preenchida’, nem tampouco uma ‘fila de espera’, mas uma total falta de respeito e despreparo por parte da empresa, que por diversas vezes não admitem não saber ‘lidar’ com pessoas com deficiência em seu quadro de funcionários, inventando desculpas mirabolantes na tentativa de se justificarem de seus preconceitos”, relata.

Gabriela na Colação de Grau, em dezembro de 2012. Imagem Reprodução Instagram
Gabriela na Colação de Grau, em dezembro de 2012. Imagem Reprodução Instagram

O caso de Gabriela reflete uma realidade que também foi revelada pela pesquisa PNAD em 2022. Além de a taxa de participação das pessoas com deficiência ser bem menor do que a de pessoas sem deficiência, a taxa de desocupação nesse grupo da população é maior (10,3%) quando comparada às pessoas sem deficiência (9%). A diferença da taxa de desocupados entre pessoas com e sem deficiência é maior na população jovem, de 25,9% e 18,1% respectivamente, o que indica uma maior dificuldade em conseguir o primeiro emprego. Isso ocorre por fatores diversos como a falta de acessibilidade nas ruas das cidades brasileiras e, também, nos espaços de trabalho, além do capacitismo, como é nomeado o preconceito contra pessoas com deficiência.

“Sigo, até hoje, tentando me inserir no mercado de trabalho para realizar mais uma etapa do meu sonho, e ter uma vida digna, provando à sociedade que as pessoas com deficiência, principalmente as mulheres com deficiência, são perfeitamente capazes de viver as mais diversas experiências profissionais, sempre em busca de um mundo mais justo e igualitário”, conclui Gabriela.

A intersecção dos recortes de gênero e cor ou raça apontam para outras disparidades. A taxa de desocupação era de 12,6% entre as mulheres brancas com deficiência e de 8,3% entre as sem deficiência. Esse indicador era maior (13,4%) para as mulheres pardas ou pretas com ou sem deficiência

Essa dificuldade de inserção das pessoas com deficiência no mercado de trabalho tem desdobramentos que escancaram as desigualdades e o nível de vulnerabilidade social na qual as pessoas com algum tipo de deficiência ainda são colocadas.

Pobreza e renda

As pessoas com deficiência recebem dois terços do rendimento de um profissional sem deficiência. Os valores são de R$1.639,00 e R$2.619,00, respectivamente. Essa diferença cresce em atividades como serviços domésticos, agropecuária e alimentação.

A pesquisa também investigou o tema da pobreza, avaliando a proporção de pessoas abaixo da linha global de pobreza extrema (US$ 1,9 por dia por pessoa) e de pobreza (US$ 5,5 por dia por pessoa). Essas linhas representavam, respectivamente, cerca de R$ 151 e R$ 437 por mês. A linha de US$ 5,5 por dia é recomendada pelo Banco Mundial para países com o nível de desenvolvimento do Brasil. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019 revelou que 5,1% das pessoas com deficiência estavam abaixo da linha da pobreza extrema e, 18,2%, abaixo da linha de pobreza. Entre os tipos de deficiência, as pessoas com deficiência visual apresentaram os menores números. Cerca de 6,4% delas estavam na pobreza extrema e, 22,5%, na pobreza.

Entre os moradores de domicílios com rendimento inferior a meio salário-mínimo per capita, 51,2% das pessoas com deficiência receberam algum benefício social em 2019. O acesso era maior no Nordeste (61,4%) e menor no Sudeste (39,0%). A proporção era maior também entre os domicílios com presença de crianças entre dois e 14 anos (66,2%). Homens e mulheres pretos ou pardos com deficiência recebem benefícios sociais em maiores proporções, 53,9% e 53,5%, respectivamente, na comparação com pessoas brancas com deficiência.

Caminhos para a equidade e a inclusão

A Vale PCD é a primeira organização no Brasil formada por pessoas com deficiência e voltada para o protagonismo PCD e LGBTQIA+. Com uma abordagem descontraída, inovadora e com diversas informações, a Vale PCD teve seu início em 2020 a partir de inquietações de Priscila Siqueira, psicóloga e mulher com nanismo que não se sentia representada nos espaços e via dificuldade de se inserir no mercado de trabalho de acordo com sua profissão.

“Na verdade, eu não pensava que a Vale PCD poderia virar um trabalho, mas foi a partir dela que consegui ser psicóloga de fato, atendendo pessoas remotamente. E entendendo todas as dores da nossa comunidade, resolvemos investir também na questão do mercado de trabalho”, explica.

O tempo passou e o projeto, pensado inicialmente para mapear espaços acessíveis na cidade de Recife, foi ampliado e hoje conta com pessoas de outras regiões do Brasil como em Fortaleza, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Joinville e outros locais. E com essa ampliação hoje a ONG oferece serviços de acessibilidade em eventos e festas, projeto de orientação profissional e de consultoria para empresas.

Priscila em evento de consultoria de acessibilidade. Imagem Reprodução Instagram

Priscila explica como funcionam os serviços que ajudam pessoas com deficiência a entrar no mercado de trabalho: “Nós temos várias formas de inserir pessoas com deficiência no mercado de trabalho: divulgando vagas de empresas parceiras; encaminhando currículos que recebemos para empresas parceiras com o programa orienta (um programa que ajuda pessoas com deficiência na elaboração de currículo, LinkedIn, preparação para entrevistas, mudança de carreira); consultorias e palestras para empresas: preparamos o ambiente para processos seletivos acessíveis e humanizados, além de formar toda a equipe para a convivência com pessoas com deficiência e para a inclusão de fato.

Ela revela, ainda, que o impacto do Vale PCD por si só já é muito mais voltado para mulheres, o serviço oferecido pela ONG para a inserção de pessoas com deficiência LGBTQIA+ no mercado de trabalho alcança 69,1% do público feminino. Ela também fala sobre as próprias experiências no mercado de trabalho: “não tive muitas oportunidades, principalmente na área de saúde. As vagas destinadas para pessoas com deficiência não têm oportunidade de desenvolvimento”, conclui Priscila.

Novo Viver Sem Limite

 O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Silvio Almeida, apresentaram no último dia 23 de novembro, no Palácio do Planalto, o Novo Viver Sem Limite, plano do Governo Federal voltado para a garantia dos direitos das pessoas com deficiência que promete ter um investimento de R$ 6 bilhões nos próximos anos da atual gestão.

Segundo o Governo, as ações serão desenvolvidas a partir dos eixos gestão e participação social; enfrentamento ao capacitismo e à violência; acessibilidade e tecnologia assistiva; e promoção do direito à educação; à assistência social; à saúde e aos demais direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais; e é fruto de diálogos feitos pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), por meio da Secretaria Nacional dos direitos da Pessoa com Deficiência (SNDPD), com diversos outros ministérios e órgãos públicos, com a sociedade civil e movimentos de pessoas com deficiência.

Ainda segundo o Governo, o Novo Viver Sem Limite ganhará um caráter dinâmico com a possibilidade de inclusão anual de novas ações e projetos ao Plano. Em relação ao mercado de trabalho, o Governo promete promover 120 mil novos contratos de trabalho de pessoas com deficiência ou reabilitados do INSS em empresas obrigadas a cumprir a Lei de Cotas, no entanto o Governo não detalhou quais ações irão garantir que a lei será cumprida de forma a contemplar as pessoas com deficiência de acordo com suas respectivas profissões, graus de instrução e formação profissional.

Natalia Rosa

Natália Rosa, 32 anos, mulher com deficiência, jornalista formada em 2017 pela UNINASSAU e pós-graduada em direitos humanos e movimentos sociais pela UNINTER. Acredita que o jornalismo é uma ferramenta de luta por um mundo menos desigual.

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