Dos mais de 900 mil estabelecimentos rurais chefiados por mulheres no país, 57% ficam na Região Nordeste, de acordo com o Censo Agropecuário de 2017, que teve um recorte para a participação feminina no campo. Estudo da Conab, de 2019, mostrou aumento da ação de mulheres na agricultura familiar – na Região Nordeste, elas representavam 84% das fornecedoras do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), indicando a tendência da presença das agricultoras nas cooperativas e associações que participam do PAA.
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Apesar de os programas voltados para a agricultura familiar terem a preocupação de estimular a participação feminina, as produtoras rurais se queixam que o acesso se torna mais complicado para as mulheres. Coordenadora da Associação das Mulheres Camponesas, a professora Deuselina de Oliveira Silva, 57 anos, moradora do Assentamento Nova Conquista, localizado em Açailândia, no Maranhão, afirma que as mulheres que compõem a associação se sentem desanimadas com a falta de incentivos federais, estaduais e municipais.
A associação tem reuniões mensais, mas cada integrante acabou por individualizar sua produção em quintais produtivos, espaços em que se cultivam várias espécies vegetais. Geralmente, são construídos e mantidos por mulheres e ficam próximos às residências. “Eu queria que a gente conseguisse, a nível nacional, um projeto que saísse pela associação, para ‘esquentá-la’. Aí também dar um incentivo maior para as mulheres. Porque, se não tiver projeto financeiro mesmo, para financiar uma produção com mais ênfase, elas vão terminar desistindo. Foi isso que fez cada uma se individualizar”, ressalta Deuselina.
Na associação do Assentamento Nova Conquista, a produção gira em torno da criação de porcos, galinhas e hortas nos quintais produtivos. E a organização no associativismo concentra-se em proporcionar incentivo para as agricultoras. “Cada uma faz o seu plantio no quintal para vender, para se auto-sustentar mesmo. A associação é para animar as mulheres, para manter esse grupo organizado, para festejar de vez em quando. Para incentivar”, afirma a coordenadora da Associação das Mulheres Camponesas.
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Veja o que já enviamosPara Deuselina, as mulheres também possuem poucos apoios e a própria hierarquização da sociedade impõe a dificuldade da inserção das agricultoras no mercado produtivo. “Eu vejo que a mulher não é bem vista no mercado de produção. A gente produz, mas quem sempre aparece na frente são os homens. As mulheres têm dificuldade de ir para o mercado nessa questão dos quintais produtivos. A gente produz tudo, mas, na hora de comercializar, a mulher tem dificuldade de fazer isso porque geralmente o homem é quem vai fazer essa comercialização”, ressalta.
Força da agricultura familiar
Dados do Anuário Estatístico da Agricultura Familiar 2023, divulgado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), mostram que a agricultura familiar ocupa 23% das áreas, 3,9 milhões de estabelecimentos, e é responsável por 23% do valor bruto da produção agropecuária e 67% das ocupações no campo. O Nordeste é a região com o maior número de estabelecimentos da agricultura familiar no país, com 46,6% Em seguida, vem o Sudeste (16,5%), o Sul (16,0%), o Norte (15,4%) e o Centro-Oeste (5,5%).
A agricultura familiar nacional seria o 8° maior produtor de alimentos do mundo se fosse um país, sendo responsável por até 70% dos alimentos consumidos no Brasil. A atividade gera até 10 milhões de empregos e um faturamento anual de US$ 55,2 bilhões. A secretária de Política Agrícola da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), Vânia Marques Pinto, lembra que a situação das agricultoras e agricultores é muito desigual. “A gente vai ter desde agricultores familiares que hoje são mais consolidados, que têm um pouco de terra ali que é suficiente para poder trabalhar com agricultura familiar, já acessa o crédito, já tem algum tipo de organização da sua produção e consegue comercializar. Mas nós também vamos ter agricultores e agricultoras familiares que não têm nem um pedaço de terra para poder produzir, que produz ali somente para o autoconsumo e eventualmente comercializam o excedente. Esse é um número bastante significativo hoje no Brasil: são mais de 1,7 milhão de famílias que nessa condição”, ressalta Vânia.
O país tem iniciativas que auxiliam no fortalecimento e na continuação de práticas voltadas para garantir assistência ao produtor rural, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), definido em lei como destinado ao apoio financeiro às atividades agropecuárias exploradas mediante emprego direto da força de trabalho do produtor e de sua família.
O principal objetivo do Pronaf é promover o desenvolvimento sustentável do meio rural com ações que aumentem a capacidade produtiva e a geração de emprego e renda, e também garantir a melhoria na qualidade de vida e o exercício da cidadania. No entanto, muitas vezes o acesso ao programa é difícil. “A nossa compreensão é que o governo precisa fortalecer as políticas públicas e fortalecer de um modo que os agricultores e as agricultoras consigam acessá-las porque não adianta essas políticas existirem e as pessoas não conseguirem acessar”, ressalta Vânia Marques.
A agricultora Francisca Jesus de Oliveira, 56 anos, moradora do assentamento Vila Conceição, comunidade que fica a 30 quilômetros da cidade de Imperatriz, no sul do Maranhão, reclama que faltam políticas públicas para a classe que trabalha no campo. “A gente corre atrás de financiamento e não consegue porque a terra também nunca teve o título definitivo passado para a gente. O Incra, que é a instituição que cuida, nunca resolveu esse problema. A gente já fez o geo [georreferenciamento], já pagamos a empresa. Mas, assim, por parte da política pública, nós não temos praticamente nada. A gente vive aqui por conta própria, com nossas mãos e braços. Com aquilo que a gente tem”, lamenta.
Francisca menciona a falta de apoio para a regularização fundiária no assentamento: por falta de documentação para comprovar que os agricultores são seus proprietários, há uma barreira ainda maior para obter financiamentos por intermédio de editais dos programas do governo. O Brasil tem políticas públicas para os trabalhadores da área rural como a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater), o Seguro da Agricultura Familiar (SEAF), a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM), o Programa de Garantia de Preços da Agricultura Familiar (PGPAF), o Terra Brasil – Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o próprio Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Disparidade no acesso a créditos
O Nordeste tem cerca de 14 milhões de agricultores familiares. Esse número representa 47% da população rural brasileira. No entanto, a região só recebeu 14,1% do crédito distribuído pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), do governo federal. Em 2022, o Pronaf destinou R$ 5,8 bilhões aos agricultores familiares do Nordeste. Já o Sul, por exemplo, obteve R$ 22,7 milhões mesmo tendo cerca de 4 milhões de agricultores (14,3% do total) em comparação com o Nordeste.
Essa discrepância entre as regiões é ocasionada pela falta de acesso consistente aos créditos e financiamentos e as políticas públicas, além de disponibilização de assistência técnica profissionalizada e que atenda às necessidades de cada segmento das trabalhadoras e trabalhadores rurais.
Para Gilvânia Ferreira da Silva, integrante da diretoria do MST/MA, o financiamento é fundamental, mas é preciso ter assistência técnica também, principalmente voltada para as mulheres. “Não basta só ter o financiamento, tem que ter a assistência técnica. E tem que ter nessa assistência técnica mulheres profissionais que possam estar trabalhando também com essas mulheres”, afirma Gilvânia, que é pedagoga, mestre em Geografia e doutoranda em Ciências Agrárias. “Porque a tendência é colocar um homem lá que não dialoga com as mulheres, que não consegue fazer um trabalho de envolvimento, de fortalecimento da consciência crítica e formativa das mulheres da perspectiva agroecológica. Então, é importante ter mulheres que tenham essa formação e que estejam trabalhando com outras mulheres”, aponta.
A dirigente do MST argumenta que é preciso facilitar a vida do agricultor com a adoção de medidas de renegociação de dívidas, a desburocratizar o acesso ao crédito, além do aumento do volume de recursos. As mulheres e jovens são os que menos têm acesso aos créditos destinados à agricultura familiar. A quantidade de contratos do Pronaf fechados por mulheres na safra de 2021-2022 no Nordeste ficou em 50.453. Já os homens conseguiram 128.173 contratos fechados no mesmo período.
A Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Maranhão (Fetaema) afirma que tem realizado ações de empoderamento para que as mulheres continuem na luta pelos seus direitos de igualdade, autonomia política e sustentabilidade “ao mesmo tempo em que busca parcerias junto a entidades e departamentos da esfera municipal, estadual e federal para a implementação de políticas públicas e inclusão no meio rural, na expectativa de amenizar os impactos negativos vivenciados pelas mulheres que vivem no campo, onde enfrentam a falta de saúde, educação, infraestrutura, saneamento básico e segurança alimentar”. Em nota, a Federação disse ainda que, em todas as suas iniciativas, “busca encorajar as mulheres a romper o silêncio e juntas construir uma sociedade onde as mulheres sejam valorizadas, respeitadas e continuem vivas”.
As mulheres do campo também são as principais difusoras da agroecologia como caminho para o fortalecimento da agricultura familiar. “Quem realmente trabalha com agroecologia são os camponeses que fazem uma agricultura grandiosa e valorosa respeitando o meio ambiente, a natureza, e o modo de vida, ou seja, a cultura, os hábitos, a religiosidade, o respeito aos ciclos da natureza, seja a chuva, o sol, a lua, a relação também com o que há de diverso na nossa fauna e na nossa flora”, destaca Gilvânia Ferreira.
Para a agroecologia, é essencial também a organização social por intermédio do cooperativismo e do associativismo. As ações coletivas e comunitárias são fundamentais para a comercialização dos produtos da agricultura familiar. “Por mais que decretem a morte da agricultura camponesa porque tudo hoje é através dos grandes projetos e dos monocultivos e a implementação de alta tecnologia, a gente vê que, cada vez mais há um processo de resistência das diversas práticas e culturas e alimentos — alimentos que resistem a toda essa campanha de destruição do alimento básico”, afirma a dirigente do MST/MA. “Quem planta a mandioca e faz a farinha são os pequenos agricultores; são as comunidades camponesas, ribeirinhas, comunidades extrativistas, povos indígenas. Eles cultivam a mandioca e produzem a farinha, que vai para o mercado nacional”, destaca Gilvânia Ferreira.
As lideranças das entidades de trabalhadores e trabalhadoras do campo apontam que há dificuldades para executar ações voltadas para as políticas públicas no campo jurídico e também na própria execução dessas políticas em diversas vertentes. “Uma coisa que a gente vem dizendo o tempo todo é a necessidade de se fazer uma reforma agrária porque não é só apenas a distribuição da terra. É a terra, mas também é a condição da permanência na terra. Então, todas as pessoas que devem ir junto com esse acesso à terra para que as famílias possam permanecer”, frisa Vânia Marques, da Contag. “Quando a gente faz uma reforma agrária de verdade, a gente vai ver que vamos mudar essa estrutura. E isso vai dar respaldo para que as famílias consigam de fato estar no campo, permanecer no campo, produzir – e essa produção que é feita no campo vai beneficiar todo o país”, complementa