Transição demográfica, educação e desenvolvimento humano

Apesar da desigualdade persistente entre os países, população mundial caminha para ser mais urbanizada, mais educada e mais produtiva

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 10ODS 4 • Publicada em 8 de maio de 2023 - 09:48 • Atualizada em 6 de julho de 2023 - 09:53

Em Seul, na Coréia do Sul, jovens praticam suas habilidades no milenar jogo de tabuleiro conhecido como Go. O país é um dos melhores exemplos de sucesso na transição demográfica. Foto Ed Jones/AFP

O progresso da humanidade é uma conquista recente e só deslanchou após a luta civilizatória empreendida pelos pensadores iluministas dos séculos XVIII e XIX. São muitos os fatores que impulsionaram a prosperidade do bem-estar populacional. Mas existem dois fatos sociais essenciais que não podem ser escanteados da análise, uma vez que sem transição demográfica não existe desenvolvimento econômico e sem uma educação universal e de qualidade não existe perspectiva de engrandecimento humano.

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Em 2015, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) comemorou seu aniversário de 70 anos, foram aprovados os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), como parte de uma agenda para a construção e implementação de políticas públicas que visam incrementar as condições de vida da população mundial, promover a governança global e garantir a sustentabilidade ambiental. A Agenda 2030 da ONU é um plano de ação global para fomentar o desenvolvimento sustentável.

A Comissão de População e Desenvolvimento (CPD) da ONU é uma das instâncias de avaliação e implementação da Agenda 2030. O tema especial da 56ª sessão da CPD, que aconteceu entre 10 e 14 de abril de 2023, foi “População, educação e desenvolvimento sustentável” e tratou especialmente da transição demográfica e do ODS-4, que diz: “Até 2030, garantir que todas as meninas e meninos completem o ensino primário e secundário gratuito, equitativo e de qualidade, que conduza a resultados de aprendizagem relevantes e eficazes”

A Transição demográfica e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)

A transição demográfica (redução das taxas de mortalidade e de fecundidade) é um dos fenômenos de mudança de comportamento de massa mais importante da história da humanidade. Antes da Revolução Industrial e Energética as taxas de mortalidade eram muito altas e a expectativa de vida ao nascer estava em torno de 25 anos. Para compensar a inexorável mortalidade precoce, as taxas de fecundidade tinham de ser elevadas para garantir a reposição da população.

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Nessa configuração demográfica, a estrutura etária era muito rejuvenescida, com uma alta proporção de crianças e jovens na população e uma baixa proporção de pessoas em idade produtiva. As mulheres não tinham autonomia e nem grandes perspectivas profissionais, pois, além da alta mortalidade materna, tinham baixa extensão do tempo de sobrevivência e passavam a maior parte da vida dedicadas à maternidade, ao cuidado dos filhos e ao trabalho doméstico familiar. O fato é que nenhum país do mundo avança, em termos econômicos e sociais, com altas taxas de mortalidade e elevadas taxas de fecundidade.

Meninas na escola na cidade de Diffa, em Níger. O país tem um dos piores índices de desenvolvimento humano do mundo. Foto Morgane Wirtz/Hans Lucas via AFP
Meninas na escola na cidade de Diffa, em Níger. O país tem um dos piores índices de desenvolvimento humano do mundo. Foto Morgane Wirtz/Hans Lucas via AFP

O pensador iluminista Marquês de Condorcet (1743-1794) escreveu o livro “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano”, em 1794, onde registrou sua confiança na capacidade racional do ser humano a partir do aprimoramento da ciência e da educação, forças intelectuais capazes de promover o progresso da humanidade. No décimo capítulo do livro, Condorcet mostra que, no antigo regime, o progresso humano estava apenas em sua fase inicial e que a Revolução Francesa abriu grandes perspectivas pela frente. Suas esperanças se ancoravam em três pilares: 1) destruição da desigualdade entre as nações; 2) progressos da igualdade em um mesmo povo; 3) aperfeiçoamento real do ser humano via educação e ciência (Alves, 2002).

Condorcet foi presciente, pois visualizou um cenário de progressivos ganhos individuais e sociais da redução das taxas de mortalidade e de fecundidade. A história confirmou que o aumento da expectativa de vida média das pessoas possibilitou a incorporação de conhecimentos e potencializou a existência de uma força de trabalho mais madura, mais experiente e mais produtiva. Os dados históricos mostraram também que famílias menores favorecem a mobilidade social ascendente, uma vez que os pais podem investir mais na qualidade de vida de um menor número de filhos, além de ganhar mais tempo e mais liberdade em relação aos afazeres domésticos.

Deveras, a transição demográfica e o desenvolvimento econômico são dois fenômenos sincrônicos da modernidade, pois a queda das taxas de mortalidade e fecundidade provoca uma mudança da estrutura etária e gera um bônus demográfico que favorece o desenvolvimento econômico e social. Os ganhos individuais passam a ser também benefícios coletivos, com incremento do bem-estar simultâneo das pessoas, das famílias, das nações e da comunidade internacional. Desta forma, a transição demográfica é um pré-requisito para o aumento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

O gráfico abaixo mostra a relação entre a taxa de fecundidade total (TFT) e o IDH para 187 países, em 2021. Todos os países com IDH acima de 0,500 possuem menos de 3 filhos por mulher e todos os países com mais de 6 filhos por mulher possuem IDH abaixo de 0,500. Nota-se que existe uma correlação de 71,3% entre a redução da TFT e o aumento do IDH.

A Coreia do Sul, que era um país pobre e com baixo grau de desenvolvimento em meados do século passado, iniciou um processo de transição demográfica e de desenvolvimento econômico a partir da década de 1960 e chegou em 2021 com a menor TFT do mundo (0,9 filho por mulher) e com um IDH acima de 0,900. A Coreia do Sul é um dos melhores exemplos da sinergia que existe entre a transição demográfica e o desenvolvimento econômico e social.

O gráfico também mostra que todos os países com IDH acima de 0,900 possuem TFT abaixo de 2 filhos por mulher. A única exceção é Israel (que por razões geopolíticas e religiosas) tem TFT de 2,9 filhos por mulher. Os países com menor IDH (abaixo de 0,400) possuem alta fecundidade, por exemplo, Níger e Chad apresentam mais de 6 filhos por mulher e o Sudão do Sul apresenta TFT de 4,5 filhos por mulher. A República Democrática do Congo apresenta IDH de 0,479 e TFT de 6,2 filhos por mulher.

Quando um país avança com o processo de desenvolvimento das forças produtivas, em geral, avança também com o processo de urbanização e passa pela reversão do fluxo intergeracional de riqueza, pois acontece um aumento dos custos e uma diminuição dos benefícios dos filhos. As famílias deixam para trás o grande número de crianças e passam a investir na qualidade de vida de uma prole menor, ou seja, menor quantidade de filhos, porém, filhos com maiores direitos de cidadania.

Uma população mais urbanizada, mais educada e com mais acesso ao conhecimento se torna mais produtiva e, quase sempre, produz mais com menos. A menor fecundidade está relacionada com a maior produtividade e menores impactos ambientais. Sem dúvida, a transição demográfica é essencial para o desenvolvimento e para a sustentabilidade ambiental.

Transição demográfica, educação e desenvolvimento sustentável

Na relação de longo prazo entre população e desenvolvimento, a educação joga um papel chave. Exatamente por conta disto, a 56ª sessão da Comissão de População e Desenvolvimento (CPD) da ONU foi focada na análise das novas oportunidades demográficas para o avanço da Educação de Qualidade, tal qual estabelecido no ODS-4.

O mundo passa por uma conjuntura demográfica inédita e muito favorável ao avanço da educação. A população global de 0 a 23 anos, que compreende os diversos ciclos da educação (creche e pré-escola, primário, secundário e terciário), chegou ao seu patamar mais alto e deve decrescer ao longo do atual século. Isso vai oferecer uma oportunidade para os países investirem em educação de qualidade e aumentar os gastos por aluno sem necessariamente aumentar o gasto total com a população em idade escolar.

A mortalidade na infância (de 0 a 5 anos) era de 43% em 1800, caiu para 20% em meados do século passado e chegou a cerca de 4% atualmente. Como sonhou o Marquês de Condorcet, a redução dos níveis de mortalidade foi extraordinária e representou uma grande conquista da humanidade. Adicionalmente, a queda da mortalidade viabilizou a queda da fecundidade.

O gráfico abaixo, com dados da Divisão de População da ONU, mostra que a taxa global de fecundidade total (TFT) estava em torno de 5 filhos por mulher entre 1950 e 1970 e começou uma trajetória de queda a partir dos anos 70. Em 2000, a TFT chegou a 2,7 filhos por mulher e, em 2023, ficou em 2,3 filhos por mulher. Na segunda metade do século XXI, a TFT deve ficar abaixo do nível de reposição (abaixo de 2,1 filhos por mulher).

Enquanto a taxa de fecundidade era alta a população de 0 a 23 anos crescia muito rapidamente, mas após a queda da TFT, essa população em idade escolar parou de crescer, deve atingir o pico populacional em breve e, em seguida, iniciará a fase de decrescimento. A população mundial de 0 a 23 anos era de 1,28 bilhão de pessoas em 1950, passou para 2,85 bilhões no ano 2000 e chegou a 3,14 bilhões em 2023. O pico de 3,17 bilhões de pessoas ocorrerá em 2032, quando o grupo etário que congrega a maior parte das pessoas em idade escolar deixará de crescer. Nas sete décadas seguintes haverá um decrescimento e a população de 0 a 23 anos deve cair para 2,78 bilhões de crianças e jovens em 2100.

A CPD constata que uma população em idade escolar numericamente em declínio facilitará o investimento em educação de qualidade. Como proporção da população total, os grupos etários pré-escolar e em idade escolar de 6 a 23 anos, correspondendo a níveis primário, secundário e terciário, deverá diminuir em todas as regiões nas próximas décadas.

O gráfico abaixo mostra os diversos grupos etários em idade escolar entre 1950 e 2100. O grupo de 0 a 5 anos, que abarca a educação infantil (creches para crianças de até 3 anos e pré-escola para as crianças de 4 a 5 anos), tinha 397 milhões de crianças em 1950, chegou ao pico de 827 milhões em 2017 e deve diminuir para 670 milhões em 2100. O grupo etário 6 a 11 anos, que abarca o ensino primário ou de primeiro grau, tinha 316 milhões de pessoas em 1950, chegou ao pico de 819 milhões em 2023 e deve cair para 686 milhões em 2100.

O grupo etário 12 a 17 anos, que abrange o ensino secundário ou de segundo grau, tinha 299 milhões de adolescentes em 1950, deve atingir o pico de 816 milhões em 2029, devendo decrescer para 705 milhões em 2100. O grupo etário 18 a 23 anos, que abarca o ensino superior, tinha 717 milhões de jovens em 1950, deve atingir o pico de 811 milhões em 2035 e vai cair para 722 milhões em 2100. Portanto, os quatro grupos etários ou já começaram a diminuir ou vão diminuir a partir da próxima década, o que favorece o investimento na educação de qualidade.

De modo geral, o cenário demográfico favorece a ampliação dos avanços educacionais. Mas a CPD chama a atenção para o fato de que o progresso em direção à universalização da educação primária e secundária tem sido desigual. Em 2020, a taxa de conclusão da educação primária foi de 87% globalmente, mas de apenas 63% na região da África Subsaariana. Nos níveis do ensino fundamental e médio, as taxas de conclusão em todo o mundo foram de 77% e 58%, respectivamente.

Assim sendo, os países de baixa renda possuem taxas de conclusão muito mais baixas. Para esses países, persistem as desigualdades de gênero e o cumprimento da meta 4.1 dos ODS permanece uma realidade distante. Em 2020, menos da metade dos alunos matriculados em todo o mundo atingiram a proficiência mínima em leitura no nível secundário inferior. Na África subsaariana, apenas cerca de 10% das crianças que concluíram o ensino fundamental atingiram proficiência mínima em leitura.

A pandemia de Covid-19 aprofundou a crise global de aprendizagem. O fechamento escolar prolongado e as interrupções no ensino presencial durante a pandemia afetaram negativamente a aprendizagem, especialmente em comunidades vulneráveis e desfavorecidas, exacerbando as desigualdades no acesso e na qualidade da educação. A pandemia também revelou desigualdades no acesso às tecnologias digitais, com 27% da população nos países menos desenvolvidos usando a Internet em 2021, em comparação com cerca de 90% em países desenvolvidos.

A CPD constata que a inclusão da educação sexual integral (“Comprehensive sexuality education” – CSE) nos currículos ajuda os jovens a adotar comportamentos saudáveis e reduz o abandono escolar. A educação sexual integral pode ajudar a atingir os objetivos de desenvolvimento nas áreas da saúde, educação e igualdade de gênero. A CSE ajuda os jovens a adotarem comportamentos seguros e saudáveis, nomeadamente evitando a atividade sexual desprotegida e incentivando o uso de contraceptivos. A educação sexual aumenta o conhecimento sobre os riscos associados às infecções sexualmente transmissíveis, incluindo o HIV. Também ajuda a reduzir a incidência de gravidez precoce, além de reduzir as taxas de evasão escolar.

A CPD considera que mulheres com maiores níveis de escolaridade tendem a casar e ter filhos mais tarde. A expansão do ensino primário e secundário nos países em desenvolvimento, juntamente com o aumento da disponibilidade dos serviços de planejamento familiar, tem sido intimamente associada ao declínio global da gravidez indesejada. Mulheres com maiores níveis de escolaridade geram menos filhos, pois, em geral, possuem maior autonomia na decisão reprodutiva. Menores taxas de fecundidade são fundamentais para a redução da pobreza, assim com a aprendizagem ao longo da vida e a requalificação profissional que abrem novas oportunidades no mercado de trabalho, especialmente para as mulheres, contribuindo para a geração de renda e o bem-estar das pessoas e das famílias.

Por fim, a Comissão de População e Desenvolvimento (CPD) da ONU alertou para o fato de que o planejamento eficaz dos serviços educacionais requer dados desagregados por idade, sexo e distribuição geográfica. Os censos nacionais são essenciais. No caso brasileiro, o censo demográfico que estava previsto para 2020 foi adiado por conta da pandemia e, no ano seguinte, foi adiado novamente por falta de recursos financeiros. Mas a despeito de todas as dificuldades na realização do recenseamento, a divulgação dos dados do censo demográfico de 2022 é indispensável para o conhecimento da dinâmica demográfica, das condições educacionais, dos demais indicadores sociais e para o conhecimento geral da realidade brasileira.

A literatura demográfica mostra que existe uma relação inversa entre educação e fecundidade e uma relação direta entre a queda da fecundidade e o aumento do Índice de Desenvolvimento Humano. A educação é um direito humano básico, mas é também um poderoso instrumento de empoderamento das pessoas, possibilitando uma maior e melhor inserção no mercado de trabalho, sendo que o trabalho também é um direito humano básico, além de ser a fonte da riqueza das nações.

Portanto, a transição demográfica, a educação universal e de qualidade, o pleno emprego, o trabalho decente, os direitos sexuais e reprodutivos, a justiça social, a paz e a cooperação entre as nações e o desenvolvimento realmente sustentável são fatores de progresso que podem materializar os maiores e melhores ideais iluministas no século XXI.

Referências:

ALVES, J. E. D.  A polêmica Malthus versus Condorcet reavaliada à luz da transição demográfica. Textos para Discussão. IBGE, Escola Nacional de Ciências Estatísticas, Rio de Janeiro, v. 4, p. 1-56, 2002.

https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv1642.pdf

ALVES, José Eustáquio Diniz. Os 70 anos da ONU e a agenda global para o segundo quindênio (2015-2030) do século XXI. Rev. bras. estud. popul. [online]. 2015, vol.32, n.3, pp. 587-598. ISSN 0102-3098. http://www.scielo.br/pdf/rbepop/v32n3/0102-3098-rbepop-32-03-0587.pdf

CPD. Population, education and sustainable development. Commission on Population and Development, fifty-sixth session, New York, 10-14 april 2023

https://www.un.org/development/desa/pd/sites/www.un.org.development.desa.pd/files/undesa_pd_2023_cpd56_keymessages.pdf

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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