O Enem da desigualdade: as diferentes preparações de alunas de rede pública e particular durante a pandemia

Especialista afirma que o exame será um desafio para todos os estudantes por conta do ensino remoto improvisado, mas, principalmente, para aqueles sem bom acesso à internet

Por Bibiana Maia | ODS 10ODS 4 • Publicada em 15 de janeiro de 2021 - 15:57 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 16:26

Diante dos desafios impostos pela pandemia, campanha pelo adiamento do Enem tomou as redes (Foto: Ubes)

Carolina Spektor, de 18 anos, demonstra confiança para o Enem deste ano, que começa neste fim de semana. Ela é estudante da rede particular, no Colégio Eleva, em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, e diz que conseguiu conciliar as aulas online com horas adicionais de estudo por conta própria. Com a mesma idade, Paula Castro, enfrenta uma realidade diferente. Estudante do Colégio Estadual Carlos Arnoldo Abruzzini Da Fonseca, em Sepetiba, zona oeste, ela não conseguiu acompanhar as atividades online por causa da má qualidade da internet. E a rotina de estudo é limitada, pois o único espaço que tem para se concentrar é a cozinha. As duas vão disputar vagas para universidades públicas no próximo domingo, quando acontece a primeira prova do exame.

O ano atípico com a pandemia da covid-19 acabou criando o chamado ensino remoto, que está longe do que é proposto no Ensino a Distância (EAD). Com a impossibilidade de aulas presenciais desde março de 2020, para manter o distanciamento social, escolas da rede particular e da pública tiveram que adaptar o ano letivo para transmissões online, uso de plataformas digitais como Google Classroom e envio de conteúdo por aplicativos como o WhatsApp. E em uma velocidade recorde. 

[g1_quote author_name=”Carolina Spektor” author_description=”Aluna da Eleva” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”03″]

Eu acho que vai ser diferente, com o uso da máscara, mas eu tô bem otimista com a prova

[/g1_quote]

Carolina estava na aula de química quando soube que as aulas seriam suspensas por 15 dias. Imediatamente pensou em usar as “férias” para organizar sua rotina de estudos. Mal sabia que não voltaria mais para a escola. A escola se organizou rapidamente para fazer transmissões online, mas com uma carga horária mais flexível que o presencial, que normalmente é integral. Além das aulas, ainda encarava quatro horas por conta própria. Para tirar as dúvidas, mandava um e-mail e era prontamente respondida pelos professores. Os colegas que vão fazer Enem – muitos já estão matriculados em faculdades particulares – combinavam simulados e videoconferências para trocar dicas. Assim, apesar da ansiedade normal da vestibulanda, acredita que não sentiu tanta dificuldade: “Eu acho que vai ser diferente, com o uso da máscara, mas eu tô bem otimista com a prova”, relata.

[g1_quote author_name=”Paula Castro” author_description=”Colégio Estadual Carlos Arnoldo Abruzzini Da Fonseca” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”03″]

Tem pessoas, com certeza, com mais oportunidades do que a gente por ter uma condição melhor de internet, um computador. Eu tô estudando pelo telefone e assim me sinto muito… sei lá

[/g1_quote]

Do outro lado da Cidade Maravilhosa, Paula conta que consegue estudar até cinco horas por dia, da tarde até a noite. A casa só tem três cômodos: sala, cozinha e banheiro, e ela precisa esperar a mãe ir com a irmã mais nova para a sala para poder estudar na cozinha. Ficou até agosto sem conseguir acessar o conteúdo online, muito menos entrar em contato com os professores. E só teve acesso a duas apostilas bimestrais. O maior apoio para tirar as dúvidas vem de um pré-vestibular comunitário online, o Educa Sepetiba. Na turma do colégio, apenas quatro colegas vão tentar o Enem. Paula resolveu fazer após conseguir isenção na taxa de inscrição, e torcia pelo adiamento para ter mais tempo para se preparar.

“Tem pessoas, com certeza, com mais oportunidades do que a gente por ter uma condição melhor de internet, um computador. Eu tô estudando pelo telefone e assim me sinto muito… sei lá. É desigual, porque não tem como competir com essas pessoas” desabafa. 

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos
Paula contou apenas com duas apostilas para se preparar para o Enem (Foto: arquivo pessoal)

Também candidato do Enem e à frente da Associação de Estudantes Secundaristas Do Rio de Janeiro (Aerj), Rhuan Vidal, de 23 anos, conta que, mesmo em escolas federais, como o Colégio Pedro II, há estudantes que tiveram muita dificuldade para estudar. Eles realizaram um levantamento para identificar os alunos e articular com a instituição uma “bolsa de equipamento”. “Vai ser o ‘Enem desigual’. Quem teve equipamento o ano todo vai sair na frente”, diz o vestibulando de engenharia. Ele fez parte da campanha para adiar o exame, e conta que a data ideal seria em maio, algo vetado pelo Ministério da Educação. 

[g1_quote author_name=”Rhuan Vidal” author_description=”Associação de Estudantes Secundaristas Do Rio de Janeiro” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”03″]

Vai ser o ‘Enem desigual’. Quem teve equipamento o ano todo vai sair na frente

[/g1_quote]

Para Bruna Werneck, mestre em Ciência Política pela UFF e técnica em educação a distância e divulgação científica na Fundação Cecierj – que oferece graduação EAD pelo Consórcio Cederj – nem mesmo as escolas de elite, com todo o esforço e infraestrutura, conseguiram atingir os níveis buscados na EAD. A pressa foi inimiga da perfeição. Para ela, a tentativa de fazer um modelo sincro presencial, com muitas horas de transmissão de aulas, não estimula a criação de autonomia, e o uso de muitas horas de tela é um problema. “Foi feita entrega de conteúdo e não de educação. Para o último ano do ensino médio é suficiente, mas na educação como um todo, os prejuízos são muitos”. 

[g1_quote author_name=”Bruna Werneck” author_description=”Fundação Cecierj” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”03″]

Foi feita entrega de conteúdo e não de educação. Para o último ano do ensino médio é suficiente, mas na educação como um todo, os prejuízos são muitos

[/g1_quote]

A especialista explica que a solução não vem de “uma bala de prata”, é preciso pensar em uso de várias ferramentas como Google Classrom, mas também rádios comunitárias e as apostilas. A grande diferença é que, na rede particular, houve atendimento e não havia a barreira tecnológica, então o conteúdo chegou aos alunos e os professores ficaram acessíveis. Na pública, mesmo que o professor estivesse de plantão online, muitos alunos, como Paula, não tinham conexão à internet. “São quatro horas de aula por dia, muitas de conexão para os pacotes de dados”, avalia, frisando que na rede particular houve orientação aos professores na transição, o que faltou na pública.

Apesar das grandes diferenças para se preparar para o ENEM, as duas adolescentes se assemelham quando relatam o sonho de cursar uma faculdade pública. A voz muda com o entusiasmo. Carolina fala que desde pequena se vê na UFRJ, e pretende ser uma Engenheira de Produção. Já Paula anseia circular pelos corredores da UERJ, e no futuro se tornar uma psicóloga.

Bibiana Maia

Jornalista formada pela PUC-Rio com MBA em Gestão de Negócios Sustentáveis pela UFF. Trabalhou no Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) e nos jornais O Globo, Extra e Expresso. Atualmente é freelancer e colabora com reportagens para jornais e sites.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile