Na pandemia, mãe e professora de Recife se unem para manter atividades escolares de garoto de 6 anos

Sala de jantar da professora Lili no Recife vira sala de aula: desafios do ensino à distância para crianças da educação infantil (Foto: Arquivo Pessoal)

WhatsApp torna-se principal ferramenta de contato para driblar pacotes de dados limitados para aulas em plataformas online

Por Lição de Casa | ODS 4 • Publicada em 14 de outubro de 2020 - 09:00 • Atualizada em 30 de outubro de 2020 - 19:41

Sala de jantar da professora Lili no Recife vira sala de aula: desafios do ensino à distância para crianças da educação infantil (Foto: Arquivo Pessoal)

*Victória Alvares

Richard e Lili estão há seis meses sem se abraçar. E o abraço era daqueles apertados, que se davam todos os dias na Escola Municipal Prof. Solano Magalhães, no bairro do Pina, Zona Sul de Recife. Ele, aluno do Ensino Infantil, e ela, professora da turma. Em março, quando Lilissani Barbosa recebeu a mensagem no celular de que as aulas estavam suspensas na capital pernambucana, já saiu procurando cursos na internet sobre educação remota para não perder o contato com as 30 crianças das classes dela.

Aprendeu a filmar as aulas pelo celular. “Criei até um tripé, que eu chamo de caixa-pé [um suporte improvisado com caixa e rolo de papelão]”. A sala de jantar de Lili se transformou em sala de aula. Grava sempre de manhã cedo ou à noite para evitar o barulho de trânsito e ambulâncias, pois mora perto de uma unidade de pronto-atendimento.

Com um mapa-mundi colado no muro e pedaços de cartolina colorida arredondados, a educadora explicou aos alunos de 5 e 6 anos o início da pandemia: “Olha o formato desse coronavírus, um círculo cheio de raios… Essa cientista achou que parecia com a coroa de um rei, por isso ela colocou o nome corona”. E, com a atividade impressa em mãos, convida as crianças a circularem as vogais que aparecem na frase “Xô, coronavírus”.

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Acho que a falta que eles me fazem é o que me deu forças

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Do outro lado da tela, Sandra Araújo da Silva, de 36 anos, é quem se desdobra para realizar a tarefa com o filho de 6 anos, em casa, na Comunidade do Bode, no mesmo bairro da escola. Richard Myguel é o caçula de quatro irmãos. “Tem dias que ele está bem conversador, em outros, já não quer papo com ninguém”, conta Sandra, que também é estudante do 3° período de Pedagogia em uma faculdade particular do Recife, agora com aulas a distância.

Experiência curricular em casa

O desafio de ensinar o filho em casa está sendo encarado pela mãe de Richard como uma experiência para o currículo. “Sempre quis ser professora ou enfermeira. Terminei meus estudos tarde e fui ter menino logo, mas quando eles cresceram voltei a estudar”, explica Sandra ao Lição de Casa. Além de estudar e ser mãe de quatro, ela ainda cria um sobrinho, colabora com a creche da igreja e estagiava na escola de Richard.

Richard Myguel, 6 anos: choro e pedidos para desligar a televisão, que só falava do coronavírus (Foto: Arquivo Pessoal)
Richard Myguel, 6 anos: choro e pedidos para desligar a televisão, que só falava do coronavírus (Foto: Arquivo Pessoal)

Se agora demonstra certo otimismo diante da rotina pesada do início da pandemia, no princípio não foi assim: “Era muito estresse, por estar todo mundo em casa, todos os dias”. Richard ficou assustado, lembra Sandra, “chorava, pedia para desligar a televisão que só falava de corona”.

O pai, autônomo, passou uns dias sem trabalhar. O auxílio emergencial e as cestas básicas da escola acudiram no momento difícil. Desde 27 de março, a Prefeitura do Recife distribui kits de alimentação, de higiene e pedagógicos entre as famílias dos estudantes matriculados na rede municipal.

Inicialmente, não houve orientação aos professores sobre como dar continuidade às aulas. Coube aos pais tomarem a frente. “Eu tentava ensinar a ele algumas coisas, como o nome, os números, as vogais. Pedia pra ele refazer tarefas antigas”. Foi complicado contornar quando o caçula dizia que Sandra era a mãe e não a professora dele. “É um desafio ensinar ao próprio filho”.

A professora de Richard também ficou nessa verdadeira corda bamba emocional entre alunos distantes e filho em casa, sem uma diretriz de trabalho. “Eu via meu filho estudando pelo computador, via professores comentando que já estavam trabalhando remotamente e eu ainda não tinha ideia de como seria. Fiquei muito angustiada”, narra Lili.

Emoção no ensino remoto

Isso foi antes dos cursos que fez online sobre como trabalhar com a tecnologia. Em meados de abril, a prefeitura iniciou uma formação virtual para os profissionais e, somente no fim de junho, as aulas da Educação Infantil foram retomadas com vídeos enviados por WhatsApp. É preciso que as famílias tenham pelo menos um celular com rede móvel. Para os que não possuem acesso à banda larga, as atividades são impressas e distribuídas mensalmente junto com os kits do município.

Deve ser lembrado que 85% dos brasileiros conectados das classes D e E utilizam a internet exclusivamente pelo celular com pacote de dados limitados – o que restringe as consultas fora de aplicativos que, muitas vezes, são de livre acesso, como WhatsApp e Facebook. A informação é da pesquisa TIC Domicílios 2018, do departamento do Comitê Gestor da Internet no Brasil.

Professora Lili produz personagens com papel e palito
E cria teatro de sombras da mula-sem-cabeça para alunos

O modelo remoto tem funcionado relativamente bem entre os alunos de Lili: mais da metade têm as lições em dia. Funciona assim: ela e as famílias mantêm o grupo na rede social do celular. A professora explica por vídeo e a criança faz a tarefa no papel. Depois, os pais tiram fotos das atividades e enviam direto para Lili, que também tira dúvidas individuais.

Para aquecer os corações dos pequenos no São João, já que eles não iriam poder dançar quadrilha, como é costume nas escolas pernambucanas, a professora enfrentou a timidez e preparou uma surpresa. Vestida a caráter, Lili cantou versos do forró “Ai que saudade de ocê”, de Elba Ramalho. “Acho que a falta que eles me fazem é o que me deu forças”, conta.

Apesar de a saudade apertar, tanto Lili como Sandra são contra o retorno das aulas presenciais. A mãe é pragmática na análise: “Em 40 minutos que precisei ir ao shopping com Richard, ele puxou a máscara para baixo inúmeras vezes”. Sandra tem certeza que isso não vai ser diferente na escola, onde a professora teria que fiscalizar 20 alunos a manhã toda. “Mesmo se voltarem as aulas este ano, Richard não vai”, conclui.

A professora Lili vai adiante nos questionamentos e aponta que o governo lançou um protocolo que vale tanto para as escolas particulares quantos para as públicas. “Só que a gente sabe que a realidade não é a mesma”. E logo pensa no tamanho grande da unidade em que trabalha e nos brinquedos que tem lá: escorrego, casinha, gira-gira, gangorra. “Vai ter uma pessoa limpando tudo toda hora?”. Também se pergunta se um aluno ou ela contrair a Covid-19: “Ficarão todos que tiveram contato, inclusive a família, em quarentena ?”

As aulas presenciais da Educação Básica (incluindo Educação Infantil) continuavam suspensas em Pernambuco até 14/10, véspera do Dia dos Professores.

Enquanto isso, Sandra e Lili avançam com destreza na tal corda bamba da vida real.

*Lição de Casa

Lição de Casa

Projeto de investigação jornalística (colaborativo e nacional) para acompanhar os impactos da covid-19 na educação brasileira. São 15 jornalistas em dez estados brasileiros. O site http://licaodecasa.org/ foi lançado em dia 15 de setembro de 2020, após seis meses de pandemia.

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