ODS 1
Monumentos de horror e glória

Entre derrubar estátuas de personagens nefastos (como fizeram os ingleses) ou preservá-las, para denunciar a história de quem protagonizou tempos de barbárie

Ao refletir sobre as relações entre História e Memória, o historiador francês Jacques Le Goff (1994) alerta que as memórias do passado são permanentemente construídas, mantidas, alimentadas ou refutadas, a partir da percepção que se tem dessas memórias no presente. Para lançar o debate no campo teórico, é importante ressaltar que memória não é sinônimo de lembrança. Em linhas gerais, a lembrança está ligada a uma experiência individual sobre algum evento. A memória é uma construção que busca compartilhar determinada visão sobre o passado e fazer sentido para as comunidades; ela pode ser passada por gerações, alimentada por algumas e refutada por outras, e opera no campo da elaboração de identidades e tradições.
Nesse sentido, monumentos, estátuas, nomes de ruas, praças, estádios de futebol, etc., fazem parte desse campo de elaboração de memórias. O que está em jogo, naquilo que se afirma e naquilo que é silenciado, é a própria ideia de passado que um determinado grupo tenta construir como pertencimento coletivo.
Já que citei Le Goff, busco agora a referência de Exu. Um oriki iorubá famoso diz que Exu acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje. Não é essa, afinal, a função da história? Pensar o passado a partir da incessante construção de memórias, sentidos, disputas, contradições, silêncios e permanências que, em larga medida, angustiam as mulheres e os homens no tempo presente?
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Veja o que já enviamosTodas essas indagações permeiam o debate sobre a estátua de bronze de Edward Colston, traficante de escravizados, arrancada domingo (7) do pedestal por grupo de manifestantes que, em Bristol, na Inglaterra, protestava contra a morte de George Floyd nos Estados Unidos.
Há os que apoiam a derrubada de estátuas, ato que traz o simbolismo da disputa pela memória e pela narrativa da História. Há os que preferem manter os monumentos, mas ressignificados como testemunhas da barbárie, do horror, de um tempo que não deve se repetir ou, no mínimo, deve ser repensado.
A cidade do Rio de Janeiro é pródiga em estátuas e monumentos que elaboram narrativas sobre o que se quer revelar e o que ser quer esconder. Certo discurso sobre a Guerra do Paraguai, especialmente, está presente em estátuas (como a do General Osório), em nome de bairros (Humaitá e Riachuelo, por exemplo), ruas e praças (Praça Onze de Junho – homenagem ao dia da vitória brasileira na Batalha Naval do Riachuelo; Rua Voluntários da Pátria, Rua Paysandu, etc).
As estátuas equestres do Duque de Caxias, na Central do Brasil, e de Dom Pedro I, na Praça Tiradentes, tentam afirmar a glória de dois personagens de certa História oficial que podem ser facilmente contestados: Caxias foi o implacável militar que esmagou as revoltas populares do período da Regência e Dom Pedro I ordenou o fuzilamento de Frei Caneca, por exemplo.
A estátua de Floriano Peixoto, na Cinelândia, homenageia o militar que consolidou a República nos anos turbulentos da Revolta da Armada. Ao mesmo tempo, glorifica um personagem que ordenou prisões e fuzilamentos de opositores. A estátua de Getúlio Vargas, na Glória, homenageia o líder trabalhista, coisa que certamente causaria asco às vítimas da ditadura do Estado Novo.
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Luiz Antonio Simas
É historiador, professor e escritor. Foi colunista do jornal O Dia e jurado do Estandarte de Ouro, prêmio carnavalesco do jornal O Globo. Tem diversos livros lançados sobre cultura popular, carnaval, samba e Rio de Janeiro. Recebeu, pelo Dicionário da História Social do Samba, escrito com Nei Lopes, o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção/2016.
3 comentários “Monumentos de horror e glória”
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Texto magnífico, estou estudando a respeito pro meu doutorado. Poderia indicar as referências? Parabéns pelo texto tão duro e verdadeiro.
Que prazer ser contemporâneo desse gênio!
Muito bom artigo. Só um pequeno reparo: quem ordenou o fuzilamento (na verdade, enforcamento, pena trocada por ‘arcabuzamento” depois que 3 carrascos se recusaram a cumprir a condenação inicial) foi o general Francisco de Lima e Silva, pai do Duque de Caxias. Ele havia sido enviado a Pernambuco – junto com o Almirante Cochrane – para esmagar a Confederação do Equador.