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Sheylli Caleffi: “Existe um perigo gigantesco na internet que os pais ainda ignoram”

Escritora e ativista analisa impacto da série “Adolescência”, alertando para a ilusão de segurança enquanto menores navegam no mundo digital e os riscos online que vão de desinformação a discursos de ódio

A cena pode parecer comum no cotidiano de muitas famílias: a porta do quarto fechada, o som de vídeos ou músicas ao fundo, e a sensação de que a criança está segura em casa. Mas e se dentro desse espaço, protegido das ameaças da rua, o jovem estiver vulnerável a conteúdos prejudiciais ou criminosos online? Esse questionamento moveu a criação da minissérie “Adolescência”, produção da Netflix que se tornou fenômeno de audiência ao retratar a radicalização online e silenciosa do jovem Jamie Miller, de 13 anos, acusado de assassinar uma colega de escola.
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Em menos de um mês do lançamento, a minissérie britânica já tinha quase 100 milhões de visualizações. Foi a mais vista da Netflix em 71 países, incluindo o Brasil, e é a minissérie com mais audiência em toda a história da plataforma de streaming. A produção causou comoção ao retratar um garoto aparentemente comum, de uma família de classe média, mergulhado em uma rede de influências digitais prejudiciais, até então invisível para a família e a escola. Mais do que apontar culpados, a narrativa planta um questionamento na mente de responsáveis e educadores: será que isso poderia acontecer sem que eu perceba?
O último risco é quando os próprios menores são os criminosos. Por participar dessas culturas, há crianças cometendo cyberbullying, replicando discursos de ódio
Quem tem observado de perto essa realidade é a escritora e ativista Sheylli Caleffi, que atua principalmente pela erradicação da violência sexual e online contra crianças e adolescentes. Além de professora de oratória e palestrante, Sheylli é autora do livro “Respire Fundo: contos proibidos da internet” e do ebook “Famílias e Internet”, onde explica como aumentar a segurança da família no digital.
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Veja o que já enviamosEm entrevista ao #Colabora, ela explica quais são os perigos online que alcançam crianças e adolescentes, decodifica os discursos ocultos por trás de termos que surgem na série e denuncia a ausência de regulação nas redes sociais.

#Colabora: A minissérie “Adolescência” sugere que o protagonista foi radicalizado por meio de ideias misóginas online, mas não mostra exatamente quais eram esses conteúdos que o adolescente teve acesso. Como você visualizou manifestações desses discursos na série?
Sheylli Caleffi: Muitas falas de “Adolescência” copiam discursos da internet. Por exemplo, num dos diálogos, a criança comenta que o policial que investiga o caso deve ter sido popular na época da escola, porque tem um rosto quadrado, e essa é uma fala que parte dessas comunidades que afirmam, dentre tantas coisas, que biologicamente quem tem o rosto mais marcado seria uma pessoa mais apta a conquistar as mulheres.
Sempre falo que não adianta educação digital sem educação sexual. Porque a educação digital vai focar no respeito nas redes e na identificação do que é fake news, por exemplo. Mas também precisamos da educação sexual, porque em sua maioria os crimes são relacionados à dignidade sexual da criança e do adolescente.
O que mais me chama atenção são os discursos da internet na boca dos adolescentes. Como já tenho essa experiência, fiquei surpresa de uma série estar mostrando essas “subculturas digitais”, vamos chamar assim. Uma das cenas mais importantes é quando o pai vai numa loja comprar tinta. Ele é atendido por um rapaz que o reconhece das notícias e diz que o pai pode fazer uma campanha online para arrecadar dinheiro, porque há muitas pessoas apoiando e acreditando que o crime do filho é uma notícia falsa. Ou seja, a cena mostra que esse menino faz parte de subculturas online onde estão disseminando desinformação. Mas a maioria das pessoas não percebe porque não estão acostumadas. Os pais ficaram perdidos, sem entender nada.
#Colabora: O que mais te chamou atenção na repercussão que a minissérie teve?
Sheylli Caleffi: Acredito que a repercussão é grande porque o protagonista não vive uma vulnerabilidade explícita — não tem um pai alcoólatra ou problemas financeiros na família, por exemplo. É uma família aparentemente normal. E os pais, ao assistirem, se perguntaram, ‘será que aqui dentro da minha família comum, pode estar acontecendo isso e eu não estou sabendo? Será que pode estar acontecendo comigo?’ Acho que essa é a grande pergunta que ficou ecoando na cabeça dos pais e que fez com que a série ganhasse tanta audiência assim.
#Colabora: Esse inclusive é um questionamento presente na série. O pai do protagonista, num diálogo onde tenta entender o que aconteceu com seu filho, diz: “às vezes acho que eu tenha sido um pouco omisso. Mas ele estava ali no quarto. Pensamos que ele estivesse seguro. Que mal ele poderia fazer no quarto dele?”.
Sheylli Caleffi: O escritor Jonathan Haidt, no livro “Geração Ansiosa”, explica exatamente isso: as pessoas pararam de deixar as crianças e os adolescentes saírem na rua e terem desafios no mundo real, por medo de sofrerem alguma violência. Então, criou-se um mito de que em casa a criança está segura porque a rua é perigosa, porém existe um perigo gigantesco na internet que os pais ainda ignoram.
#Colabora: Para além da série, quais são esses perigos online que impactam os jovens atualmente?
Sheylli Caleffi: Primeiramente os conteúdos inadequados para a idade. Informações que eles ainda não vão entender, e estou falando de: pornografia, violência, autolesão, suicídio, desafios inadequados, conteúdos que influenciam o consumismo…
Comparação física e de padrões de beleza, de adequação, também estão nessa lista. Como a estética clean girl que, na verdade, é uma estética branca, higienista. Tem até trends (publicações populares) de adolescentes grávidas mostrando o cotidiano como se fosse uma coisa legal. Dá para incluir desinformação, como uma série de publicações que tenho acompanhado sobre não usar anticoncepcional porque faria mal.
Tem que falar dos malefícios da pornografia, autolesão e suicídio, sobre essas sub-comunidades que pregam a misoginia e outros preconceitos. Todos os riscos têm que ser explicados, porque na hora que aparecer, a criança sabe do que se trata e saberá como pedir ajuda.
Até a educação também é afetada, como a atual tendência de coachs mirins dizendo que estudar é ruim, que o melhor seria empreender. Inclusive, no final de março, tivemos o caso de um menino negro de nove anos que sofreu racismo numa escola particular de São Luís (MA). Apelidaram ele de CLT, fizeram uma carteira de trabalho fake e estava escrito que ele ganhava R$ 50 por ano, ou seja, que ele era um escravo.
Há também o risco de uma pessoa estranha entrar em contato. Do mesmo jeito que nós, adultos, somos encontrados por criminosos, a criança também é, porque o criminoso digital não fica selecionando. Se não consegue tirar dinheiro da criança, transforma ela em dinheiro. Ele faz isso conseguindo imagens dela, de exploração sexual infantil, vídeos ou a própria criança em pessoa. O último risco é quando os próprios menores são os criminosos. Por participar dessas culturas, há crianças cometendo cyberbullying, replicando discursos de ódio.
#Colabora: Há diferença entre conteúdos recebidos por meninas e meninos online?
Sheylli Caleffi: Há muita diferença. Eles são bombardeados com conteúdos de violência, status social como carros e dinheiro, contra as mulheres com publicações misóginas, tendências suicidas. Já as meninas são atacadas na autoestima, sempre.
As plataformas têm mecanismos para identificar menores de idade vulneráveis, por exemplo, quando publicam uma foto, enchem de filtros e depois excluem. É muito comum acontecer isso com as adolescentes, porque ficam inseguras com seus corpos. O algoritmo consegue rastrear e saber quando desistem e direcionam esse perfil para empresas de beleza. Os conteúdos que recebem são sobre o jeito certo de se maquiarem para ir à escola, como devem vestir e combinar as roupas… elas tem a autoestima destruída rapidamente.
#Colabora: Então as plataformas conseguem identificar a vulnerabilidade dessas crianças na internet para determinar esses conteúdos direcionados.
Sheylli Caleffi: Sim, e as crianças e adolescentes não têm a menor noção do que é algoritmo, e uma pesquisa nacional da Tick Kids Online comprova essa informação. Eles serem “nativos digitais”, termo inclusive questionado por alguns pesquisadores, não significa que entendem a internet porque eles usam. Não significa que estão aprendendo porque estão online. Essas coisas não são intrinsecamente relacionadas. Eles não entendem o ambiente onde estão.
#Colabora: Qual você diria que é o primeiro passo para tornar o ambiente online mais seguro para menores?
Sheylli Caleffi: O primeiro passo verdadeiramente eficiente é regulação. A família é super importante, mas a tecnologia que criou o problema precisa atuar na solução. Como o “desafio do desodorante” — “brincadeira” que incentiva os usuários a inalar o spray pelo máximo de tempo possível — acaba de matar mais uma criança por inalação de aerossol? Como esses vídeos não são identificados? Na minha visão, não faz sentido as plataformas não serem reguladas.
O que podemos fazer enquanto isso não acontece?
1. Retardar a chegada das crianças nas redes sociais
2. Pesquisar a classificação indicativa de todos os aplicativos e sites
3. Acompanhar a navegação
4. Firmar acordos de geladeira: fazer combinados em casa sobre como vai ser a utilização saudável da internet. O diálogo é o que salva, e é preciso falar sobre todos os riscos.
5. Conversar sobre os assuntos difíceis: se permitir o acesso às redes sociais, tem que falar dos malefícios da pornografia, autolesão e suicídio, sobre essas sub-comunidades que pregam a misoginia e outros preconceitos. Todos os riscos têm que ser explicados, porque na hora que aparecer, a criança sabe do que se trata e saberá como pedir ajuda.

#Colabora: Esse diálogo seria educação digital e midiática?
Sheylli Caleffi: É uma educação digital, sim, mas no caso de crianças e adolescentes, sempre falo que não adianta educação digital sem educação sexual. Porque a educação digital vai focar no respeito nas redes e na identificação do que é fake news, por exemplo. Mas também precisamos da educação sexual, porque em sua maioria os crimes são relacionados à dignidade sexual da criança e do adolescente. A gente tem que trazer os próprios jovens para a discussão, porque talvez eles sejam mais capazes de enfrentar esse problema do que nós. Acredito na capacidade deles de resiliência e de transformação, e essa é a minha esperança
As pessoas adoram quando a gente faz dinâmicas para ensinar a criança pequena quais são as partes íntimas, quem pode ou não mexer. Mas é só um professor falar sobre camisinha, Infecções Sexualmente Transmissíveis, gravidez, desejo, consentimento… vira um tabu. Ninguém tá abordando esses assuntos. E essa criança vai buscar a resposta onde? Na internet, porque eles não vão deixar de ter curiosidade. Todos esses riscos são evitados se a gente não deixa o adolescente sozinho, e não me refiro à navegação nas redes, mas à solidão emocional. Sozinho ao ponto de não confiar nos responsáveis para tirar uma dúvida.
Supondo que um menino cheio de hormônios está se interessando por outra pessoa. Ninguém nunca conversou com ele sobre isso e, de repente, na internet, aparecem homens adultos e aparentemente bem-sucedidos falando que as mulheres são a causa de sua tristeza, ou que são interesseiras, metidas e não tem a mesma capacidade de raciocínio que os homens. Essa criança pode acreditar nisso. Então, a questão toda é um buraco emocional e de autoestima que vem antes.
#Colabora: A série também mostrou algumas termos e signos da internet que muitos não entenderam e se alinham com essa situação hipotética. Você pode explicar?
Sheylli Caleffi: Antes, preciso dizer que sempre vão existir termos que não vamos entender. Se estudarmos os emojis que apareceram na série, eles vão trocar, porque agora todo mundo já sabe. Acho que a gente não pode ter a expectativa de entender tudo que os jovens usam para se comunicar. Por isso é tão importante investir numa relação de confiança, que garanta que os valores deles sejam sólidos. Quanto aos termos que apareceram na série:
Incel: significa celibatário involuntário e na minissérie é uma ofensa. Seriam meninos que querem fazer sexo, mas não conseguem porque as meninas não os escolhem — porque elas apenas se interessariam pelos meninos mais bonitos e que vem de famílias com mais dinheiro.
Teoria 80/20: 80% das mulheres se interessaria somente por esses 20% de homens (os ricos e bonitos). Para um jovem pode fazer sentido, mas essa teoria não existe; é inventada na tentativa de “justificar” o discurso de que os meninos indesejados têm que resolver seus problemas com a violência.
Red Pill: acho ainda mais perigosa a comunidade Red Pill no Brasil, porque eles têm esse discurso liberado em podcasts que todo mundo ouve. Eles pregam, por exemplo, que não podem gostar de mulheres que têm filhos, pela proteção do patrimônio. O movimento tem muitos adeptos e agem de maneira menos explícita — disfarçam esse discurso misógino de ódio e depreciação às mulheres como proteção aos homens.
MGTOW (Men Going Their Own Way): significa o “homem seguindo seu próprio caminho”, e são comunidades online que defendem o rompimento de relações com mulheres, pois consideram ser uma perda de tempo.
Todas essas ideias são de um mesmo universo — a “machosfera” ou “manosfera” — que envolvem esses e outros conceitos.
#Colabora: Como você vê o futuro da segurança online para os jovens?
Sheylli Caleffi: Eu confio muito nos jovens. O Reino Unido, onde a série foi gravada, tem um parlamento juvenil, com idades entre 14 e 19 anos, que inclusive fez um documento que trata da segurança nas redes — e afirma que deve ser regulada. A gente tem que trazer os próprios jovens para a discussão, porque talvez eles sejam mais capazes de enfrentar esse problema do que nós. Acredito na capacidade deles de resiliência e de transformação, e essa é a minha esperança.
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Ana Carolina Ferreira
Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.