Aulas em escola indígena seguiram mesmo com comunidade isolada por chuvas no Sul

Comunidade Kaingang foi afetada pelas enchentes no estado. Relação próxima com a natureza facilita diálogo sobre a crise climática com crianças e adolescentes

Por Micael Olegário | ODS 4 • Publicada em 13 de novembro de 2024 - 09:18 • Atualizada em 17 de novembro de 2024 - 08:13

Em abril, escola foi palco de atividades voltadas para a valorização da cultura indígena (Foto: Divulgação/Escola Augusto Ope da Silva)

Santa Maria (RS) – O caminho até a escola estadual indígena Augusto Ope da Silva não é simples. Em dias de chuva, a estrada de terra em forma de serpente que leva até a aldeia Kaingang Três Soitas se torna um lamaçal, o que dificulta a subida até a encosta onde vivem as cerca de 16 famílias da comunidade. O local chegou a ficar 11 dias isolado durante o desastre climático que atingiu o Rio Grande do Sul. Mesmo assim, as aulas na escola seguiram, em meio à incerteza e o medo das chuvas históricas.

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Nascido na Terra Indígena Guarita, localizada no norte do estado, Joceli Sales é professor de História e de Língua Kaingang na Augusto Ope da Silva. Ele conta que a comunidade já tinha sido afetada por um vendaval em março. Com as chuvas históricas de abril e maio, a ponte que liga a comunidade com a cidade sofreu danos na estrutura e o caminho até a aldeia ficou bloqueado.

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Dados da Metsul Meteorologia, mostram que entre 27 de abril, quando se iniciaram as chuvas, e 31 de maio, choveram 782,3 milímetros em Santa Maria (a média histórica para o mês de maio é de 136,6 mm). O contexto não poderia deixar de ser assunto nas aulas, inclusive, por conta dos danos causados em parte da estrutura de madeira do chão da escola.

Joceli revela que foram dias difíceis, tanto pelo temor de danos maiores na escola, como pelo impacto visual e emocional do desastre. “As crianças saíam da aula e desciam lá para baixo olhar a água cheia na ponte. Então, não tinha outra coisa que era discutida dentro da sala de aula”, acrescenta o docente. No período, Joceli e outra professora que mora no território ficaram responsáveis por seguir com as atividades da escola.

Como elas (crianças) já vêm de casa com esse pensamento mais junto com a natureza, é bem fácil para entenderem (as mudanças climáticas)

Joceli Sales
Professor de História e Língua Kaingang

Atualmente, a Augusto Ope da Silva atende 21 estudantes, com turmas da educação infantil ao 9° ano do ensino fundamental, mais uma aluna da Educação e de Jovens e Adultos (EJA). A instituição também funciona como um elo que fundamenta a coletividade característica da cosmologia Kaingang. Pais e mães fazem do local um ponto de encontro e integração.

Fernanda Claudino, 34 anos, é a funcionária responsável pela limpeza na Augusto Ope da Silva. Ela também é mãe de três das crianças que estudam na escola: Raíssa, 7 anos, Willi, 15 anos e Kelison, 12 anos. Durante o desastre climático, a casa dela sofreu vários danos causados por uma chuva de granizo que atingiu a aldeia.

Quando a reportagem visitou a comunidade, telhas doadas pelo governo estadual estavam depositadas na frente da escola – os materias foram disponibilizados para serem utilizadas pelas famílias que foram afetadas pelos temporais. A casa de Fernanda foi uma das recuperadas com esse apoio. Ao ser questionada sobre o papel que a escola possui, ela destaca a capacidade de preparar os jovens em diferentes dimensões. ”Para mim a escola é importante para os meus filhos, para eles aprenderem e terem um futuro”.

Foto colorida da fachada da escola Augusto Ope da Silva, em Santa Maria. A escola é de madeira, com duas construções interligadas por um telhado coberto. As paredes estão desbotadas e apresentam tons de verde. Ao fundo, encosta de morro.
Escola também foi atingida por fortes chuvas; comunidade sonha com construção de nova estrutura (Foto: Micael Olegário)

Desafios antes e depois das chuvas

Como ocorre na maioria das escolas rurais e indígenas, o cotidiano na Augusto Ope da Silva é atravessado por diferentes desafios estruturais. Quando foi criada em 2012, a instituição funcionava em um prédio próximo da rodoviária da cidade, fora da aldeia. A mudança ocorreu em 2018 e, no primeiro ano no novo local, as aulas eram ministradas sem que o prédio tivesse energia elétrica. 

Com verbas recebidas através do programa Agiliza RS, do governo estadual, foram feitas algumas reformas no piso da biblioteca e na instalação elétrica, após as fortes chuvas. A reforma do prédio, com a construção de uma nova estrutura de alvenaria, é uma das principais demandas da comunidade Kaingang. 

Até hoje, o local também ainda não possui água encanada e a Defesa Civil faz visitas regualares para abastecer a caixa d’água da escola. No período das enchentes, a merenda escolar que estava guardada na instituição foi distribuída para as famílias da aldeia.

De acordo com dados da Secretaria de Educação do RS, o estado possui 102 escolas indígenas, com 6.410 estudantes, sendo as principais etnias: Guarani, Kaingang, Xokleng e Charrua. No município de Santa Maria, além da Augusto Ope da Silva, também funciona a Escola Estadual Guarani Yvyra Ija Tenonde Vera Mir.

Relação com a natureza e cultura Kaingang

Diferente de outros contextos, sobretudo os urbanos, a vida na aldeia Três Soitas segue um outro ritmo e as famílias uma conexão ecológica próxima da natureza. Joceli atribui a essas relações com os humanos e não humanos (rios, árvores, plantas e animais), um diferencial para se abordar as mudanças climáticas em sala de aula. “Como elas já vêm de casa com esse pensamento mais junto com a natureza, é bem fácil para entenderem”, afirma. 

Segundo Joceli, o papel da escola indígena é ser uma porta para o mundo que prepare os jovens para a sociedade não indígena, sem perder de vista os saberes ancestrais dos Kaingang. “É na escola que a gente tem contato com tudo que aconteceu fora (da aldeia) até hoje. Então, a gente tenta passar isso para as crianças, mesclando, com a nossa própria história”, complementa ele.

Formado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Joceli começou a dar aulas em 2019. “A gente tem tentado trabalhar com as crianças para entenderem a cultura e identidade, e a partir disso se entenderem como ser humano”, explica Joceli, sobre a metodologia adotada na escola.

Para aproximar os conteúdos de História do universo dos jovens, Joceli conta que ao trabalhar sobre a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, procura estimular que os alunos pensem na onda de migrações do período e em como isso impactou as comunidades indígenas do Brasil e do Rio Grande do Sul. Outra das preocupações do docente é com a alfabetização das crianças primeiro em Kaingang, como forma de evitar que o contato intenso com o português afaste as futuras gerações da língua materna. 

Além de Joceli, a escola possui outros sete professores e mais duas servidoras, sendo apenas duas pessoas não indígenas. A maioria é contratada do governo estadual, apenas a diretora Priscilla Kieling é concursada. Ativa e solícita, Priscilla ajuda a organizar o trabalho feito na instituição de ensino, mas enfatiza a autonomia e protagonismo da comunidade. “A escola é deles, eu sou meramente a gestora que faz as coisas burocráticas”.

Alunos da escola Augusto Ope da Silva; formação considera a valorização da língua e cultura Kaingang (Foto: Micael Olegário)

História e formação da comunidade

A relação diferente com a terra ajuda a compreender a história de formação aldeia Três Soitas. Isso começa desde a cosmogonia da criação Kaingang, a partir de buracos no solo de onde saíram os irmãos Kayrú e Kamé – e a partir deles foram criados todos os entes da natureza. No Rio Grande do Sul, o povo Kaingang sempre foi reconhecido por sua itinerância. Porém, com a invasão europeia e a colonização, seguida das políticas de incentivo à imigração do estado brasileiro, muitos grupos acabaram sendo cercados em áreas demarcadas.

Em sua dissertação de mestrado intitulada “Aldeia Três Soitas: Memória, Identidade e Territorialidade Kaingang em Santa Maria”, Eduardo Perius descreve o processo de formação da Ẽmã Kẽtỹjug Tẽgtũ (nome da aldeia Três Soitas em Kaingang). Na temporalidade ocidental, esse movimento iniciou em 1999, quando os indígenas passaram a se fixar na região, como forma de buscar melhores condições para venda do seu artesanato.

Joceli Sales ressalta que Santa Maria sempre esteve na rota de itinerância dos Kaingang. “Até que, a partir do ano 2000, as famílias permanecem em Santa Maria e vão ser reconhecidas como comunidade mais tarde”, explica. Conforme o professor, a fundação da escola Augusto Ope da Silva representou um marco para a comunidade na busca pela retomada da ancestralidade junto ao território. 

O nome da instituição de ensino foi escolhido em homenagem ao líder Kaingang Augusto Ope da Silva, responsável por defender os direitos das etnias indígenas no RS. “Ele ajudou bastante também esse pensamento tradicional Kaingang da comunidade, sempre orientando a valorização da língua, a valorização do pensamento e do ser Kaingang dentro de um centro urbano”, pontua Joceli, ao frisar a importância da homenagem ter sido feita enquanto o líder ainda estava vivo (Augusto Ope da Silva faleceu em 2014).

Estudantes indígenas da UFSM fazem atividades artísticas com crianças da comunidade; oficinas envolvem artesanato e pintura (Foto: Micael Olegário)

Atividades culturais e artísticas

No mesmo dia da visita do #Colabora ao local, um grupo do Centro de Artes e Letras (CAL) da UFSM estava realizando oficinas com as crianças da aldeia. A ação conta com o protagonismo de estudantes indígenas da UFSM, como a mestranda em artes visuais, Geneci Fidelis André, Kaingang da Terra Indígena do Rio dos Índios, e Alessandra Krénrá da Silva, estudante de Letras, nascida na Terra Indígena de Nonoai.

Professor responsável por acompanhar as atividades, Vitor Schneider explica que a iniciativa surgiu com o objetivo de oferecer a oportunidade de estudantes da universidade trabalharem junto com suas comunidades. As oficinas criativas ocorrem uma vez por semana na Augusto Ope da Silva e na escola Guarani de Santa Maria.

“A intenção é apresentar diferentes questões de artesanato, sempre pensando na comunidade Kaingang”, explica Geneci. As atividades interdisciplinares buscam envolver também as famílias, mas a participação varia de semana em semana. Na última atividade, as crianças foram incentivadas a fazer colagens e pinturas.

Em abril deste ano, a Augusto Ope da Silva foi sede das programações do “Abril Indígena”, com apresentações culturais e jogos tradicionais indígenas. Emanuel Claudino, 12 anos, é filho do cacique da aldeia, Natanael Claudino, e sobrinho de Fernanda. Na escola sua matéria preferida é matemática, mas ele também gosta das atividades esportivas, como a competição de canoagem que a instituição participou no final do último ano. “Eu gosto das atividades que fazem… daí me faz querer vir de novo”, conta ele.

Esse sentimento e desejo de voltar também afeta este repórter. Mais que conhecer uma escola, a visita até a Augusto Ope da Silva foi uma aula. Da parte mais alta da aldeia, é possível visualizar parte da cidade de Santa Maria, mas o que mais chama atenção não está no horizonte, mas sim bem mais perto e ao redor. O barulho dos bichos e o verde que domina o cenário nos morros em volta da aldeia mostra a potência de uma educação com a natureza – que considera esta para além de um conteúdo de ciências.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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