Medo de fechamento e da pandemia ronda escolas rurais gaúchas

Quase 70 unidades foram fechadas nos últimos anos no Rio Grande do Sul aumentando dificuldade de acesso à educação por famílias de produtores rurais

Por Larissa Burchard | ODS 3ODS 4 • Publicada em 22 de dezembro de 2020 - 09:07 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 16:20

A professora Simone Stefanello entrega apostila com atividades escolares para aluna na zona rural de Bossoroca, no oeste gaúcho: dificuldade de acesso à internet e distribuição de material com o próprio carro (Foto: Zelir Oliva Nimett dos Santos)

São Borja (RS) – Morando no campo desde que nasceu e há 14 anos como alfabetizadora, o maior medo de Simone Stefanello, 44, não é a pandemia, mas o fechamento das escolas rurais. A professora compõe o quadro docente de uma das mais de 500 escolas rurais do Rio Grande do Sul, que enfrentam problemas como a falta de sinal de internet, a ameaça de fechamento e o difícil acesso às comunidades.

Simone dá aulas na Escola Estadual Piratini, na área rural de Bossoroca (município no oeste gaúcho, a quase 400 km de Porto Alegre, para alunos do 1º e 2º anos do Ensino Fundamental. A turma multisseriada tem seis integrantes. A quantidade pequena de estudantes nas escolas rurais é algo comum, já que cada vez há menos famílias e jovens no campo. E é justamente por causa desses números que a gestão das escolas sofre pressão e luta para manter as portas abertas.

No período de 2015 a 2019, 68 escolas estaduais rurais foram fechadas no Rio Grande do Sul, segundo o Censo de Educação Básica de 2019. São 68 comunidades que perderam qualidade de vida e a oportunidade de ter acesso a um ensino pautado no território para crianças e adolescentes não urbanos brasileiros.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

Para a professora Simone, o fechamento de uma escola na comunidade representa a perda de um local de encontro entre vizinhos que moram distantes e jovens que só têm aquele momento para encontrar os amigos. É um espaço de aprendizado e também de socialização. “Estamos sempre com o coração angustiado porque a pergunta que a gente mais faz entre as trocas de governos é: será que vão querer fechar a escola?”. E a covid-19 piorou esse sentimento.

A professora Simone na escola antes da pandemia: divisão das tarefas da turma multisseriada e entrega das apostilas com atividades na casa das famílias dos alunos (Foto: Maristela Oliveira)
A professora Simone na escola antes da pandemia: divisão das tarefas da turma multisseriada e entrega das apostilas com atividades na casa das famílias dos alunos (Foto: Maristela Oliveira)

Olho na tela

Simone se lembra da primeira formação de professores para o ensino remoto, depois da suspensão das aulas por causa da pandemia do coronavírus. Acordou às 4h da manhã, juntou o notebook, os cadernos e seguiu de carro pela estrada de chão da Esquina do Ivaí, localidade rural do município de Bossoroca. Subiu o trajeto até encontrar o ponto mais alto que pudesse ter sinal de internet no celular.

Ali, no meio de uma lavoura de soja, ela permaneceu por mais de duas horas para conseguir fazer o curso fornecido pela Secretaria Estadual de Educação (Seduc/RS). Não são só os alunos que precisam buscar sinal de conexão para manter algum contato com a escola, mas também os professores do campo brasileiro. Depois desse dia, ela decidiu investir em melhorar a internet onde mora, mesmo sabendo que seria mais caro por estar no interior.

A dinâmica encontrada pelos educadores da zona rural para conseguir manter a educação dos estudantes foi a de muitas escolas isoladas pelo país: levar o material impresso para as famílias. No próprio carro ou no transporte escolar do município, os profissionais marcam um ponto para o recolhimento das atividades realizadas e a entrega de novas.

Na turma de seis alunos, Simone tem que passar atividades que contemplem os dois anos para os quais leciona. “Quando eu digo que tenho seis alunos, a primeira coisa que passa na cabeça das pessoas é ‘Bah é uma profe privilegiada’”, comenta. Mas dar aula para alunos em anos diferentes em uma mesma turma é mais difícil. Em um mesmo período de tempo, ela precisa contemplar uma quantidade igual de aulas para os dois grupos.

Agora, sem o acompanhamento olho no olho, a professora se vê sobrecarregada. Planejar as atividades, preencher a planilha das turmas, comprovar o que está fazendo, conversar com as famílias e tirar dúvidas. Mas o esforço vai além de cumprir o papel de educadora. Para ela, a escola no campo é vida.

Ao lado da mãe, Adriana, a estudante Sara Helen espera na estrada pelas atividades da escola: ajuda na produção familiar e saudades dos colegas (Foto: Larissa Burchard)

Mais do que uma escola

Cada uma em sua casa, Nadine Floriano, 11 anos, e Sara Helen Fagundes, de 13, só veem os pais e os irmãos. O vizinho mais próximo de Sara fica a 1 km de distância. Desde que a pandemia teve início, não viu mais os colegas e a rotina se tornou ajudar a mãe, Adriana Lencina, 38, com os cuidados da casa e dos animais. Nadine também acabou por passar mais tempo com as ovelhas do que estudando.

Os sítios das duas famílias ficam em Banhado Grande, na zona rural de São Borja, município que faz divisa com a Argentina. Quem é do interior sabe que o acesso às propriedades rurais é difícil. Separadas por lavouras, mato e pastagem, às vezes é preciso pedalar quilômetros para encontrar alguma casa ou galpão.

Para ir à Escola Municipal de Ensino Fundamental Ivaí, Sara, estudante do 8º ano, e Nadine, do 5º, precisavam pegar o ônibus na estrada principal da região. Se chovia, o transporte escolar atolava ou nem conseguia chegar. Por isso, muitas vezes, nem iam à aula.

A escola, para além de local de ensino, era um dos poucos lugares onde poderiam se encontrar. Também era lá o ponto de encontro das famílias, de festas e reuniões. Com a pandemia, toda a comunidade de Banhado Grande só se vê entre cruzadas, quando um ou outro vai para a cidade e acabam se esbarrando pelo caminho.

Fora as aulas online, as famílias de Banhado Grande recebem os materiais impressos que vêm no transporte escolar ou no carro da prefeitura de São Borja, uma vez por semana. Quando a bandeira da região está vermelha – de acordo com o Mapa de Distanciamento Controlado para Prevenção da Covid-19 no Rio Grande do Sul –, a entrega das tarefas chega a demorar mais de 15 dias.

Em casa, Sara cuida das ovelhas, dá comida para as galinhas e tira leite das vacas. Apesar de não ter problemas para fazer as lições, ela sente saudade dos colegas, de jogar futebol e de ver os professores. “A gente sempre se ajudava muito e estudava tudo junto”, lembra.

Nadine (atrás), de 11 anos, com os pais e os irmãos na zona rural de São Borja: dificuldades com a matemática (Foto: Larissa Burchard)

Atividades em branco

Ao contrário de Sara Helen, Nadine sente dificuldades na hora de realizar as atividades, principalmente as de Matemática. A mãe, Camila dos Santos, 29, tenta ajudar perguntando para os professores no WhatsApp ou pesquisando no Google. Quando não consegue, espera pelo dia da chegada dos materiais para conversar com a professora pessoalmente, ou entrega as atividades em branco.

A preocupação maior de Camila é a dificuldade da filha em seguir nos estudos e conseguir aprender as matérias. A mãe conta que Nadine tem conteúdos novos que nunca viu em sala de aula e que, pelo ensino remoto, se tornam mais difíceis. “Eu era a favor de anular tudo e começar um ano novo. Ela passou para o 6º ano, mas vai com dificuldades, e assim vai indo”, admite a mãe Camila, que tem outros dois filhos, Jorge, de 6 anos, e Maria, de 4.

A caçula tem Síndrome de Down e exige mais atenção. Jorge recebe do Albergue Criança Feliz (creche de São Borja) folhinhas com atividades em números, letras e desenhos. Enquanto o marido trabalha, Camila criou horários para os filhos fazerem as atividades e brincarem e, dessa forma, ela dar conta da rotina. Nadine é quem ajuda a mãe com os cuidados do irmão e dos animais.

Diferente do pequeno Jorge, que está agitado pela falta das aulas, a mais novinha, Maria, é calma. Ela está matriculada na Escola Municipal Quero-Quero, em São Borja, e a mãe consegue conversar com os professores e outros pais em um grupo do Whatsapp. Mais uma mãe no país em pandemia que há meses precisa se dividir entre casa, filhos, telas, professores, atividades e grupos virtuais. E, no fim, nada substitui o tempo que tinham na escola.

Ler, escrever e ter acesso à cultura são instrumentos fundamentais para uma vida em sociedade, mas que não são garantidos para as populações do campo, como explica Guilherme Gonzaga, professor do curso de Educação do Campo, na Universidade Federal do Pampa (Unipampa). “Para mim não é uma questão de número. Independentemente de onde um estudante mora, ele tem direito à escola”, defende Guilherme.

Escolas distantes das comunidades, falta de transporte, de sinal, problemas na infraestrutura e carência de políticas públicas voltadas para as famílias do campo não atingem apenas as crianças e os adolescentes, mas os adultos também. De acordo com Guilherme, muitos adultos do campo têm pouca formação e precisam das escolas.

Agora, nesse novo normal da Covid-19, muitos pais sentem dificuldade na hora de ajudar, sozinhos, os filhos nas atividades. O momento que recebem apoio é com a chegada dos professores para entrega de material ou quando um dos familiares vai para a cidade e consegue sinal de internet.

Mas isso pode ocorrer uma vez por semana ou por mês. Sem a escola, a Educação não é um direito pleno no campo

Larissa Burchard

Larissa Burchard é jornalista gaúcha e mestranda de Comunicação e Indústria Criativa (PPGCIC/Unipampa). Já ganhou prêmios regionais e nacionais, como o Jovem Jornalista do Instituto Vladimir Herzog. Atualmente, é bolsista do mestrado e pesquisa sobre jornalismo, inovação e podcast. Além disso, também produz o podcast narrativo Além da Terra Vermelha, no qual conta histórias do interior do Rio Grande do Sul.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile