Da infância em abrigos à conclusão da Faculdade de Enfermagem

Diploma do ensino superior e apoio de padrinhos tornam Cristina exceção entre as 32 mil crianças e adolescentes no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento

Por André Giusti | ODS 10ODS 4 • Publicada em 15 de maio de 2023 - 09:30 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 13:26

Cristina em sua formatura na Faculdade de Enfermagem: exceção para quem vive infância e adolescência em abrigos (Foto: Arquivo Pessoal)

No último dia cinco de abril, a estudante Cristina Pereira dos Santos, de 22 anos, formou-se em enfermagem por uma faculdade particular de Brasília. Ter um diploma de curso superior a iguala a milhares de moças e rapazes Brasil afora, que talvez tenham se formado inclusive no mesmo dia. O que faz com que Cristina se diferencie é sua história de vida: ela fugiu de casa com cinco anos de idade, levada pela irmã, apenas quatro anos mais velha. Depois da fuga, as duas moraram em abrigos e jamais voltaram para a família. Desde o dia em que saiu de casa, Cristina viu a mãe apenas uma vez. Com o pai, que já morreu, e os outros oito irmãos nunca mais se encontrou.

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Mas por que a hoje enfermeira saiu de casa quando ainda nem entendia o que era o mundo? “A gente apanhava bastante e tinha que trabalhar. A gente não tinha o que comer, não tinha onde dormir direito, não tinha onde tomar banho. A gente tomava banho nuns laguinhos que tinham por ali. Não tinha chuveiro, banheiro, não tinha o que vestir” – Cristina discorre rapidamente sobre aqueles primeiros anos de vida em uma fazenda em Planaltina de Goiás, na divisa com o Distrito Federal, onde o pai trabalhava e a família morava de favor, um relato em vários aspectos semelhante ao que hoje se conhece como condições análogas ao trabalho escravo.

Todo jovem tem que se apegar aos estudos, é a melhor forma de vencer. Pra gente, que morou em abrigo, não tem muito o que buscar. A única saída é o estudo

Cristina Pereira dos Santos
Enfermeira

Como agravante havia as constantes bebedeiras do pai, que culminavam em surras nos filhos. “Minha mãe tentava defender a gente, mas sempre sem sucesso; ela acabava apanhando também” – Cristina lembra e admite que este foi o principal motivo que fez com que a irmã a pegasse pela mão e ordenasse “Vamos embora! Vamos fugir!”. Foram parar em um bar, onde os donos deixaram que passassem a noite e, no dia seguinte, levadas por eles à Vara de Infância e Juventude, quando tomaram o destino dos abrigos onde viveram a infância e adolescência, o que, isto sim, igualou Cristina às mais de 32 mil crianças e adolescentes na mesma situação, de acordo com o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

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No universo dos abrigos, conseguir um diploma universitário, como Cristina conseguiu, não é regra, é exceção. “A maioria dos adolescentes acolhidos mal consegue chegar ao ensino médio ou completar quando chega. E a maioria que consegue completar não consegue entrar numa faculdade”, resume a psicóloga Maria da Penha Oliveira Silva, do Projeto Aconchego, entidade de apoio a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, ou risco dentro da própria família, e àquelas que aguardam em instituições.

As pessoas têm uma ideia de uma ação bonita, uma visão romântica do que são a adoção e apadrinhamento e o curso trabalha essa visão para mostrar que iremos lidar com crianças e adolescentes com histórias de traumas, de violência em família

Getsemani Silva
Cineasta

Penha diz que o problema social da evasão escolar é muito maior para os adolescentes acolhidos, porque, segundo ela, o modelo familiar é o maior motivador para a frequência escolar. “A maioria nunca ou quase nunca foi à escola. Vêm de famílias disfuncionais, com problemas psiquiátricos, usuários de drogas, alcoolistas, com pouca instrução e sem um trabalho fixo. Também sofrem bulliyng pela condição de abrigado, e quando alguém supera tudo isso, vibramos com sua vitória”, ilustra a psicóloga. Egressa desse universo de dificuldades, Cristina não enxerga outro caminho para quem, nessa situação, quiser mudar de vida. “Todo jovem tem que se apegar aos estudos, é a melhor forma de vencer. Pra gente, que morou em abrigo, não tem muito o que buscar. A única saída é o estudo”, sentencia.

Em uma situação tão adversa, dois fatores parecem ter ajudado a recém-formada enfermeira a ser uma exceção na dura realidade dos abrigos. O primeiro é que ela era estudiosa e nunca repetiu de ano na escola. O segundo fator foi o apadrinhamento. De acordo com o que está escrito no site do Projeto Aconchego, Apadrinhamento Afetivo é um programa para crianças e adolescentes acolhidos em instituições e que têm poucas chances de retorno à família de origem ou de serem adotados. “O apadrinhamento é afetivo, não envolve o lado financeiro. A ideia é que o adolescente conviva com alguém que seja sua referência afetiva, porque a maioria deles sai de famílias chamadas disfuncionais, desestruturadas”, explica Penha. “Com o tempo, os padrinhos podem financiar algumas coisas, como cursos ou mesmo a faculdade, mas é preciso que já haja vínculo afetivo”, adverte a psicóloga.

Cristina entre Gustavo e Getsimani em encontro entre afilhados e padrinhos no ONG Aconchego: apoio e atenção para superar desafios (Foto: Arquivo Pessoal)
Cristina entre Gustavo e Getsimani em encontro entre afilhados e padrinhos no ONG Aconchego: apoio e atenção para superar desafios (Foto: Arquivo Pessoal)

A força dos padrinhos

E foi este exatamente o caso de Cristina com o casal Gustavo Nepomuceno e Getsemani Silva. Eles chegaram a pensar em adoção, mas o apadrinhamento coube melhor no que os dois almejavam. “Porque permite uma flexibilidade, não é uma pessoa (o afilhado) que irá morar com a gente, permite uma aproximação aos poucos, gradual”, explica Gustavo, psicólogo, de 44 anos. Construído o afeto, veio a ajuda material. Além de uma mesada, Gustavo e Getsemani bancarão a pós-graduação que Cristina fará em enfermagem de urgência e emergência.

Eles também ajudaram a afilhada a mobiliar o apartamento em que mora com a irmã (a mesma com quem fugiu de casa), no Guará, uma das cidades melhor estruturadas do DF. “Sem eles seria muito difícil. Eu não iria ter apoio nenhum”, agradece Cristina, que conheceu os padrinhos pouco antes de fazer 18 anos, idade em que, pela lei, o jovem precisa deixar o abrigo e cuidar da própria vida. Tudo o que os dois fizeram e fazem movem a moça num esforço particular: “Eu sempre quis deixá-los orgulhosos, porque eles me apoiam. E que o esforço deles para cuidar de mim possa valer a pena”.

Getsemani e Gustavo, casados há 17 anos e sem filhos biológicos, fizeram um curso de apadrinhamento no Aconchego, em que aprenderam algo fundamental para quem pensa em apadrinhar uma criança ou adolescente. “As pessoas têm uma ideia de uma ação bonita, uma visão romântica do que são a adoção e apadrinhamento e o curso trabalha essa visão para mostrar que iremos lidar com crianças e adolescentes com histórias de traumas, de violência em família”, explica Getsemani, que tem 51 anos e uma outra experiência bem-sucedida de apadrinhamento, o de um menino que conheceu quando filmava no interior do Maranhão (ele é cineasta).

A relação de padrinhos e afilhada cultivou a confiança e a intimidade. Cristina passa fins de semana com os dois de 15 em 15 dias e já até ficou no apartamento deles tomando conta da cachorra, enquanto o casal viajava. Os três se consideram uma família, mas Getsemani procura deixar claro para Cristina: “A relação é de padrinhos e afilhada”. Eles contam que, às vezes, Cristina chama um dos dois de pai no zap. Gustavo deixa passar, não corrige tanto; até achou graça quando ela chamou o pai dele de vô. E o casal ri da afilhada.

Cristina admite o que é de se esperar por alguém que passou o que ela passou. “Eu senti falta de uma figura materna, de uma figura paterna, de alguém para chamar de mãe, e receber o carinho de uma família, né?”. A moça conta que os padrinhos atenuaram essa falta, mas nunca irão preencher o vazio que ficou. “Não tenho mãe, né? Mas tudo bem”, só que ela não diz isso se lamentando ou culpando a mãe por só ter ido atrás dela e da irmã uma única vez. “Acho que ela não tinha inteligência suficiente. Era analfabeta, só capinava. Não justifica, mas explica. Na minha cabeça, foi isso”.

Dos cinco aos dezoito anos, Cristina passou por três abrigos. Do primeiro, aonde chegou bem criança, guarda a lembrança de que “Era bem legalzinho. A gente tinha o que comer e onde dormir”, o que fez a diferença na vida da menina. O problema é que a irmã presenciou o assassinato de um garoto nas redondezas, afogado por um grupo de internos do abrigo. A irmã contou para a Polícia e passou a ser ameaçada. Por decisão da Justiça, as duas meninas foram transferidas para outra instituição. “Lá, se a gente não quisesse comer, apanhava. Não vou dizer que era ruim, mas não era essas maravilhas”, conta sobre o segundo abrigo.

Quando perguntamos se no primeiro era melhor, Cristina titubeia e diz que era igual. “Mas, no primeiro, vocês não apanhavam”, observamos, e só aí ela conta que não apanhavam, mas ficavam de castigo ajoelhadas no milho, uma prática do Brasil colonial ainda empregada na capital do país ao menos 15 anos atrás. Sorrindo, outra vez sem mágoas e traumas aparentes, conta que no segundo abrigo “Tinham passeios legais. A gente ia ao cinema, ia na Água Mineral (Parque dentro da Floresta Nacional de Brasília). Nesse segundo, tirando o fato de a gente apanhar, também era legal. A gente era bem tratada, bem cuidada, bem alimentada”. “Mesmo apanhando, Cristina, vocês eram bem tratadas? ”, indagamos diante de sua naturalidade ao falar do lugar. Ela sorri e confessa: “Mesmo apanhando. Não sei se porque eu me acostumei na minha infância toda a apanhar…e eu nem apanhava tanto assim”, explica –  porque era estudiosa e procurava fazer tudo dentro das regras da casa. “Quando eu apanhava era de mangueira…”, completa a recordação.

Cristina acha possível que sua história de vida tenha influenciado sua escolha profissional. Ela chegou a pensar em estudar medicina, mas queria mesmo uma profissão que a aproximasse ainda mais dos pacientes, que proporcionasse mais contato com os doentes e com a qual que ela pudesse cuidar mais das pessoas. “Enfermeiro é quem cuida, é quem conversa, é quem está ali atento aos pequenos detalhes”, resume. Cristina diz que quer trabalhar em hospitais infantis para cuidar de crianças, brincar e estar perto delas, como se agradecesse por não ter tido o destino da maioria dos menores criados em abrigos e quisesse dar tudo aquilo que nunca teve quando era pequena.

André Giusti

Jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. É pós-graduado em Gestão da Comunicação das Organizações pelo UniCeub. É carioca e mora em Brasília há 20 anos. Também é escritor e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br

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