Cotas para pessoas trans em universidades públicas avançam no Brasil

Instituições federais e estaduais adotam políticas afirmativas para estimular o ingresso de trans no ensino superior. Movimento ajuda a quebrar ciclos de violência e marginalização

Por Micael Olegário | ODS 10ODS 4 • Publicada em 4 de novembro de 2024 - 09:12 • Atualizada em 4 de novembro de 2024 - 12:58

Na Unicamp, estudantes fizeram manifestações e greve em busca da criação de cotas para pessoas trans (Foto: Júlia Moretzsohn – @jumoretzfoto/Núcleo de Consciência Trans de Campinas – 29/06/24)

“Um resgate do direito à cidadania”. Essa é a visão da assistente social Lins Robalo sobre a criação de cotas para pessoas trans em universidades públicas. Desde setembro, quatro instituições federais brasileiras aprovaram a reserva de vagas para o ingresso desse grupo. A mais recente foi a Universidade de Brasília (UnB) em outubro. Antes, a política afirmativa já havia sido aprovada na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), na Federal Fluminense (UFF) e na Federal de São Paulo (Unifesp).

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O contexto é totalmente diferente da época em que Lins, mulher travesti e preta, entrou na primeira turma do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), em 2006. “Estar graduada e ter um diploma não é a garantia de ter um emprego, mas já é um instrumento que possibilita com que as pessoas trans, sobretudo as mulheres travestis e os homens trans, possam inverter a lógica que os empurra para a marginalização e à prostituição”, destaca a assistente social, servidora concursada há 11 anos, na área de saúde no município de Itaqui (RS).

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De acordo com dados levantados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) com diferentes estados brasileiros, cerca de 70% das pessoas trans e travestis abandonam as aulas no ensino médio. Entre os principais motivos estão a violência e o preconceito familiar que força essas pessoas a terem de sobreviver nas ruas. Sem redes de apoio, esse grupo social acaba privado de direitos básicos, como acesso à saúde e fontes de renda.

Esse movimento das instituições federais – que estão aprovando cotas trans – é a implementação daquilo que nós já vínhamos apontando há bastante tempo, de que há um processo de exclusão das pessoas trans do ambiente educacional

Bruna Benevides
Presidenta da Antra

Em nota técnica sobre as ações afirmativas na educação superior, a Antra aponta que menos de 0,3% da população de trans e travestis está presente nas Universidades. “As cotas para pessoas trans são uma medida essencial para promover a inclusão e a equidade dessa população em diversos setores da sociedade, especialmente na educação, em concursos públicos e no mercado de trabalho”, afirma trecho da nota.

A primeira instituição a adotar cotas para pessoas trans foi a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), em 2018. Também fazem parte da lista a Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e as federais de Lavras (Ufla), de Santa Catarina (UFSC), de Santa Maria (UFSM), do ABC (UFABC), da Bahia (UFBA) do Rio Grande (Furg), de Rondônia (Unir) e de Goiás (UFG). Completam o quadro as estaduais do Amapá (Ueap), da Bahia (Uneb), de Feira de Santana (Uefs), e de Campinas (Unicamp). 

Foto colorida de Lins Robalo. Ela é uma mulher travesti preta, com cabelos pretos. Ela está vestida com uma camiseta preta e segura um microfone com uma das mãos, enquanto gesticula com a outra
Lins Robalo foi a primeira vereadora trans eleita para a Câmara Municipal de São Borja (Foto:Divulgação/Facebook)

Combate à transfobia na educação

Após concluir a graduação, Lins Robalo fez duas especializações e mestrado em Ciências Sociais. Atualmente, ela está na segunda pós-graduação – em Serviço Social e Proteção Social – e cursa Direito, ambos na Unipampa. Ao descrever os desafios que permeiam o cotidiano de pessoas trans, Lins recorda a baixa expectativa de vida dessa população. “Se estamos mais marginalizadas, subalternizadas e comercializadas enquanto seres humanos, obviamente temos menos chance de avançar em idade, porque este corpo cansa. Esse corpo está em risco”, afirma. 

A compreensão dos riscos e dos contextos social, econômico e histórico dos sujeitos está na base da criação da Lei de Cotas, em 2012. A legislação prevê a reserva de vagas para pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência, estudantes de escolas públicas e em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Em novembro do último ano, a norma foi atualizada para incluir o grupo dos quilombolas, porém, as pessoas trans seguem excluídas. 

Eu decidi fazer faculdade por questões de empregabilidade, porque seria mais fácil conseguir um emprego na minha área se eu tivesse ensino superior

Duane Castro
Estudante de Licenciatura em Teatro na UFSM

Para a presidenta da Antra, Bruna Benevides, as falhas no reconhecimento das violências e do preconceito contra pessoas trans estão entre os principais desafios a serem encarados no combate à transfobia na educação. “Nós temos um ambiente escolar ainda muito hostil – que não tem políticas específicas para enfrentar o bullying transfóbico, para enfrentar a violência institucional, além da falta de capacitação e qualificação do próprio corpo docente e administrativo das escolas ao lidar com a diversidade”, descreve. Como exemplo, ela cita a dificuldade em obter o respeito ao nome social nas salas de aula.

Diante desse contexto, Bruna defende a adoção de cotas e políticas afirmativas no ensino superior como uma medida urgente e necessária. A presidenta também salienta que a educação tem sido um dos principais campos de luta e reivindicação da Antra. “Esse movimento das instituições federais – que estão aprovando cotas trans – é a implementação daquilo que nós já vínhamos apontando há bastante tempo, de que há um processo de exclusão das pessoas trans do ambiente educacional”. complementa.

(Trans)formar a produção do conhecimento e a sociedade

Lins Robalo conta que, quando entrou na graduação, praticamente inexistiam debates sobre diversidade e gênero. Por isso, ela destaca que ao abrir o espaço acadêmico para as pessoas trans, as Universidades também se beneficiam, ao permitir a entrada de pessoas capazes de trazer um novo olhar para pesquisas e práticas profissionais.

Bruna Benevides destaca a ampliação na diversidade da produção do conhecimento como outro aspecto que reforça a adoção de cotas para pessoas trans, junto da abertura de espaços de poder e do acesso a oportunidades de formação e colocação no mercado de trabalho. “Garantir que as vozes trans se tornem pesquisadoras e contribuam para a produção de uma ciência trans-inclusiva – uma ciência que contribua para a erradicação da transfobia”, enfatiza ela.

A expectativa é de que esse movimento também reverbere na sociedade, por exemplo, com o crescimento do número de concursos com vagas destinadas para pessoas trans. “Quando a gente tem uma um conjunto de pessoas formadas reivindicando a sua inserção, trazendo essa discussão à tona, só fortalece para que a gente possa produzir mais ações”, explica Lins Robalo, ao citar a reserva de vagas para trans em concursos do governo do Rio Grande do Sul, medida criada em 2021.

Duane Castro em apresentação de sua perfomance que denuncia a transfobia na sociedade (Foto: Bruna Muller Santos- @brusnasantos)

Desafios à permanência de trans nas universidades

Estudante do curso de licenciatura em Teatro da UFSM, Duane Castro, 22 anos, se identifica como travesti e não-binária. Natural de São Vicente do Sul, cidade distante cerca de 90 km de Santa Maria, ela ingressou na Universidade por meio de um processo de vagas remanescentes em 2020, após ter tentado cursar Artes Visuais. “Eu decidi fazer faculdade por questões de empregabilidade, porque seria mais fácil conseguir um emprego na minha área se eu tivesse ensino superior”, explica ela, que desde o ensino básico atua com artes cênicas. 

Duane revela ter compreendido melhor sua identidade como pessoa trans já no ensino superior, estimulada pelo ambiente acolhedor que encontrou no curso e em espaços como a Casa Verônica. Apesar disso, ela descreve violências institucionais enfrentadas por pessoas trans, como o desrespeito do nome social. “Eu tenho meu nome retificado, então já não passo mais por essa questão, mas quem não tem o nome retificado passa muito por isso ainda”. Isso também ocorre, acrescenta ela, no contato com determinados professores e grupos mais conservadores. 

Diferente de outras universidades que aprovaram cotas para pessoas trans nos processos de ingresso tradicionais, a UFSM criou um processo seletivo específico. Neste ano, o edital oferece 120 vagas em 77 cursos de graduação. Na visão de Duane, apesar de ser um avanço importante, o método adotado não é o ideal. “Eu entendo que ele responde a uma demanda, sim. Mas eu acredito que precisaria ser cota, porque tem cursos em que o processo seletivo não é contemplado”, aponta a estudante.

Segundo o Pró-reitor de graduação da UFSM, Jerônimo Siqueira Tybusch, a criação de processos híbridos em separado se deu como uma alternativa para atender demandas de grupos ainda não contemplados na lei de cotas. “A ideia da universidade pública é ampliar cada vez mais o acesso e ingresso, para atender a comunidade e toda a diversidade existente no nosso país”, afirma Jerônimo.

Além do ingresso, outros desafios surgem para garantir a permanência de pessoas trans no ensino superior. Duane cita o atravessamento das questões de gênero e identidade com demandas cotidianas, como o acesso à moradia e alimentação de qualidade durante a graduação. Sobre esse aspecto, a nota técnica da Antra destaca a importância de políticas afirmativas, como bolsas de estudo e respeito à identidade e ao nome social nos ambientes universitários. “Assegurar a continuidade dos estudos é vital para combater as taxas de evasão causadas pela violência e discriminação”, acrescenta o texto.

Em seu trabalho de conclusão de curso (TCC), Duane executa uma perfomance chamada “4POC4L1PTIC4”, em que procura demonstrar a presença da transfobia na sociedade. “Em um dos momentos, eu perguntava para as pessoas se havia uma pessoa trans que ela admirava. E houveram muitas pessoas cis que não souberam dizer que pessoa trans que admiravam. E eu acho que isso é bem sintomático da nossa cultura”, reflete ela.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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