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Celular nas escolas: estudantes, pais e professores tentam se adaptar à proibição

Impactos na saúde mental e no aprendizado motivaram veto aos telefones móveis; uso consciente fora das salas ainda é um desafio

A adolescente Ana Beatriz Souza ganhou um celular quando tinha 7 anos. O aparelho, mais que um presente, era uma necessidade: filha de pais separados, Ana precisava se comunicar com seus responsáveis constantemente. Assim como acontece no cotidiano de outras famílias, os smartphones são ferramentas que sanam muitas dúvidas dos adultos: Já chegou em casa? Conseguiu almoçar? Você está bem? Mas ,para além dessa comunicação, o uso excessivo do aparelho por menores levou à proibição nas escolas, e neste início de ano letivo, pais, estudantes e professores tentam se adaptar à mudança.
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“Ela tem celular desde cedo, e eu nunca fiquei vigiando”, conta a mãe da adolescente Ana Beatriz, Sonia Araújo. Segundo ela, a relação da filha com o celular é à base do diálogo e da confiança. “Sempre disse que ela tinha que me contar tudo o que aparecesse de diferente — fotos com conteúdo sexual, mensagens de desconhecidos… desde sempre tivemos isso como contrato, porque eu precisava deixar o celular com ela. Mas, como qualquer adolescente, ela é muito viciada em celular, e por isso aprovo a proibição nas escolas”.
Sonia se refere à lei nº 15.100/2025, que a partir deste ano é implementada em escolas públicas e particulares do país. O texto proíbe o uso de aparelhos eletrônicos portáteis para todas as etapas da educação básica. Neste período de adaptação, estudantes sentem falta do celular, como Ana Beatriz, hoje com 16 anos, aluna do ensino médio de escola particular no município de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio. “Crescemos habituados com o celular na mão o tempo inteiro, então é difícil. Vejo uma situação equiparável à abstinência em sala, muita gente em desespero pela falta de acesso à internet. Não é o meu caso, mas entendo como é ruim ter uma grande mudança na rotina”, afirma a estudante.
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Veja o que já enviamosA palavra “nomofobia” se refere ao medo irracional de ficar sem celular, caracterizando uma dependência digital, que pôde ser percebida por Ana Beatriz com seus colegas. “O acesso limitado ao celular foi uma boa medida, porque antes via grupos com a cabeça baixa, mexendo no celular nos intervalos, sem trocar uma palavra entre si. Alguns dias, eu e meus amigos éramos assim. Agora, virou mais um momento de brincar e conversar; há quem quebre as regras, mas são exceções”, comenta.
Em colégio estadual na mesma cidade, estudantes também deixam de seguir a regra. Mateus do Nascimento, 16 anos e aluno do primeiro ano do ensino médio, conta que, em sua turma, os colegas continuam utilizando o celular em sala, burlando a restrição. “A regra é aplicada, mas as pessoas continuam usando o aparelho”, diz o adolescente com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Ele também cita a dificuldade de concentração, porque, em anos anteriore,s os colegas ficavam mais quietos. “Tem sido mais difícil me concentrar nas aulas, agora ficam conversando alto e inventando outras coisas além dos estudos para compensar a falta do celular”.
Vera Lúcia, mãe de Mateus, aprova a lei, mas se preocupa com a aplicação dela nas escolas: “a questão é saber se será cumprida”. Na escola do filho, por exemplo, são mais de três mil alunos, e ela acredita que a direção e a coordenação, bem como os professores, não conseguirão dar conta. “Neste período inicial, o colégio está cobrando, mas depois será esquecido. Acho que o ideal seria criarem mais jogos ou dinâmicas que tirassem os alunos dos celulares. Hoje, as novas gerações podem até ter uma inteligência a mais, mas não tiveram a infância que a gente teve, muito por conta do medo de nós pais em relação à segurança, e isso faz muita falta no desenvolvimento”, afirma.

“Na escola pública, o problema é crônico”, explica professor
Luiz Eduardo de Oliveira, 63 anos, é professor de biologia e tem um vasto histórico de atuação em diferentes escolas do município de Niterói, no Rio de Janeiro. Segundo Luiz, que hoje leciona apenas no colégio estadual Liceu Nilo Peçanha, antes dessa lei que restringe o uso do aparelho, havia grande diferença entre as escolas públicas e particulares. “Nas instituições privadas, não tínhamos muitos problemas em sala de aula, porque tem inspetores nos andares e é comum a retirada do aluno da turma por conta do uso indevido do celular. Depois que ele é encaminhado para a coordenação, o responsável é comunicado”, explica.
Já nas escolas públicas, assim como relatado pelo estudante Mateus e sua mãe Vera Lúcia, não há profissionais suficientes para a escola frear o uso excessivo dos celulares. Por isso, o professor de biologia afirma que, nas escolas públicas, o problema é crônico. “Antes da lei, era um desespero, porque enquanto o professor escrevia no quadro, havia pelo menos 30 alunos no celular. Após a lei, a escola pública não está cumprindo a restrição como deveria, porque o aluno não poderia estar utilizando o telefone celular nas dependências da escola no recreio e intervalos, mas não tem fiscalização, então eles usam. Já em sala de aula, está um pouco melhor”.
O professor de biologia percebe os impactos do uso excessivo do aparelho durante e após as aulas. Em sala, o momento de copiar matérias e exercícios nos cadernos foram substituídos por fotos da lousa – um aluno fotografa e envia para todos os outros da turma — e os conteúdos facilmente se perdem em meio a tantos arquivos digitais, conta. Nos recreios, alunos se isolavam com os olhos fixos nas telas, mesmo em grupos, e a interação entre eles passava a ser mediada por um celular.
Um episódio em específico o marcou em relação ao vício nas telas. “Lembro que um menino autista de escola particular jogava no celular o tempo inteiro. A escola e os psicólogos atestaram a necessidade dele estar jogando em sala de aula. Ele não teve rendimento o ano inteiro: não apresentava os trabalhos, não fazia as provas. Qualquer lição dos professores para o aluno teria que ser com o uso do celular; foi uma situação muito complicada. O menino acabou saindo da escola”, lembra.
O diretor pedagógico do Centro Educacional de Niterói, Luiz Antonio Franco, compartilha da percepção do professor de biologia sobre o papel central que o celular já possuía na rotina dos alunos antes da lei. Ele relata que, embora houvesse uma iniciativa da instituição em que trabalha para utilizar o celular como ferramenta pedagógica — como materiais escolares que direcionavam para aplicativos educativos em celulares ou tablets —, percebeu um excesso nessa utilização. “Os alunos acabavam desviando o foco para redes sociais e jogos, o que comprometia a concentração, a participação nas atividades e a interação entre os colegas”, conta o educador.
Ele também observou a dificuldade dos alunos em se desligarem dos aparelhos e estabelecerem limites quando o uso de celulares era permitido. Essa dificuldade demonstrava, para a equipe pedagógica, um sinal de dependência. “Se deixarmos, a aula não existe, é só celular”, afirma Luiz Antônio, que aponta ainda para a dificuldade dos próprios pais em relação ao uso dos celulares pelos filhos durante o horário escolar, com alguns responsáveis enviando mensagens aos estudantes no período das aulas. Essa realidade, segundo ele, era muito presente antes da aplicação da lei.
Atualmente, apesar de alguns questionamentos iniciais dos alunos, a adaptação no Centro Educacional de Niterói não foi tão difícil quanto o diretor esperava. Alguns alunos consideraram a mudança positiva, relatando maior facilidade em se concentrar e mais conversas e socialização durante os intervalos. Ele ressalta que a instituição busca oferecer suporte aos alunos nesse período de desligamento do celular, utilizando os questionamentos sobre a proibição como uma oportunidade para conversas e esclarecimentos.

Impactos do uso excessivo do celular
Assim como explicado no início da reportagem, o mesmo aparelho que era usado por pais para garantir a segurança e o bem-estar dos filhos, hoje causa outras preocupações, como impactos negativos na saúde mental e no aprendizado de crianças e adolescentes. Segundo mostra pesquisa da Faculdade de Medicina da UFMG, o uso excessivo de celular está associado a problemas de comportamento, emocionais e de socialização. Além disso, a partir da revisão de estudos já publicados sobre o assunto, 72% deles encontraram aumento da depressão associado ao uso excessivo de telas.
É o caso de Manuela Melo, 16 anos, que estuda na mesma escola da adolescente Ana Beatriz, em São Gonçalo. Em conversa com a reportagem, ela compartilhou que é “viciada” no celular; no último ano usava o tempo inteiro, mas por conta da lei, reduziu o tempo de tela durante as aulas. “Não acho que impactou no aprendizado, mas mudou positivamente a socialização; em momentos em que estaria no celular, agora falo com os meus amigos, e isso me ajudou bastante”, conta. Mas ela também admite que, quando sente muita vontade de usar o aparelho, burla a regra indo ao banheiro ou o utilizando escondido na sala de aula.
Márcia Pimenta, mãe da adolescente, também relata a dificuldade em limitar o uso do celular pela filha, que usa o celular desde os 10 anos. A mãe conta que a jovem desenvolveu depressão e ansiedade desde a pandemia, que prefere ficar em casa nas telas a sair de casa para passear, e que o aparelho interfere no sono e no humor da jovem. “Quando ela está em casa, passa o tempo inteiro no celular. A procrastinação é exacerbada e não tem nada que eu faça ou converse que resolva. Não adianta colocar regra rígida com adolescente que não dá certo. Já tentei tirar o celular dela e o quadro de ansiedade piorou”, desabafa Márcia. A jovem Manuela não é a única; 44% dos jovens do Brasil se declaram viciados em celular, segundo levantamento do Instituto Papo de Homem (PDH), em parceria com a Natura e com o Pacto Global da ONU no Brasil.
Essa associação entre o uso excessivo de telas e problemas de saúde mental é constante, na percepção do psicólogo Sérgio Pasquarelli e da psicopedagoga Flávia de Souza, que atuam em conjunto na área clínica e educacional. Sérgio aponta que a dependência do celular pode ser vista como um vício, semelhante à adicção por substâncias psicoativas, com prejuízos como irritabilidade e ansiedade quando o acesso é restrito. “Quando se tira rápida e abruptamente algo que é muito valioso para a pessoa que está acostumada num momento de adicção, ela adoece, entra na fissura”, explica.
Flávia complementa que o excesso de uso do celular ocupa o tempo que seria destinado a brincar, conversar e atividades físicas, essenciais para o desenvolvimento social e físico saudável de crianças e adolescentes. “A tecnologia tem que somar, não nos ocupar o tempo todo. O excesso foi o que prejudicou, e não necessariamente o uso do celular”, reflete Flávia. Segundo a psicopedagoga, a proibição de celulares nas escolas é necessária devido aos comprovados prejuízos que o acesso livre a esses aparelhos e à internet causam. Ela aponta para o prejuízo social, onde as crianças deixam de brincar e interagir pessoalmente; o prejuízo físico, devido ao sedentarismo e posturas inadequadas; e o prejuízo psicológico, pela exposição a conteúdos inapropriados para a idade, como pornografia.
Adicionalmente, a especialista em neuroeducação pela Universidade Estácio de Sá aponta que há o prejuízo educacional, pois a facilidade e o prazer momentâneo proporcionado pelos celulares reduzem a capacidade de concentração e a dedicação necessárias para a aprendizagem escolar sistematizada. “Tudo no celular é fácil, manipulável e responde a todo o prazer da criança. A aprendizagem sistematizada escolar exige da criança um tempo maior; exige uma dedicação e habilidade que não está sendo adquirida por conta dos vídeos de 15 segundos de plataformas como o TikTok”, diz Flávia. Além disso, há prejuízos na alimentação e no sono, além do impacto na dinâmica familiar, onde o celular pode substituir a interação e a atenção dos pais. “O celular é a nova babá”, complementa.
Movimento de mães pede controle
A preocupação com os efeitos do uso excessivo de celulares em crianças e adolescentes motivou a criação do Movimento Desconecta, idealizado por mães preocupadas com essa questão. O movimento defende um acordo coletivo entre famílias para adiar a entrega do primeiro celular para os filhos até, pelo menos, os 14 anos, e o acesso às redes sociais até os 16. “Os pais de crianças mais velhas não queriam expor seus filhos aos riscos desse uso, mas também não queriam excluí-los do seu grupo de amigos no virtual. Foi aí que pensamos: e se combinássemos que ninguém vai ter um aparelho até que sejam maduros suficientes? Se ninguém na turma tiver, venceremos a pressão social”, conta a mãe de três e uma das fundadoras do movimento, Mariana Uchoa.
A iniciativa visa diminuir a pressão social para que as crianças tenham celulares cada vez mais cedo e também apoia a proibição do uso de celulares nas escolas, por acreditar que contribui para a proteção dos jovens durante o período escolar, reduzindo a exposição aos riscos das plataformas digitais e incentivando a interação entre os colegas. Contudo, frear o vício em celular dentro e fora das escolas ainda é um desafio. O Movimento Desconecta reforça que, embora a proibição seja um passo importante, é fundamental a conscientização das famílias sobre os riscos do acesso precoce e excessivo aos celulares, buscando alternativas para um desenvolvimento mais saudável e equilibrado. Afinal, como prega o movimento, “a infância e a adolescência são muito curtas para serem vividas em um smartphone”.
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Ana Carolina Ferreira
Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.