Diário da Covid-19: os misteriosos números da Venezuela

Em Caracas, um homem usa uma máscara com o rosto do ex-presidente Hugo Chaves, após a flexibilização da quarentena no país. Foto Federico Parra/AFP

País registra falta de água, sabão, álcool gel, luvas, máscaras e dados confiáveis

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 13 de junho de 2020 - 09:26 • Atualizada em 19 de dezembro de 2021 - 11:53

Em Caracas, um homem usa uma máscara com o rosto do ex-presidente Hugo Chaves, após a flexibilização da quarentena no país. Foto Federico Parra/AFP

A Venezuela está passando por um momento dramático da sua história. O libertador Simon Bolívar (1783-1830) – que foi “aluno” e amigo de Alexander von Humboldt (1769-1859) e  imaginou uma América do Sul livre, próspera e sustentável – deve estar se revirando no túmulo, desesperado com a crise atual do país que não só é a maior da história venezuelana, mas também latino-americana e, quiçá, até mundial.

Desde 2015, o Produto Interno Bruto (PIB) da Venezuela caiu mais de 50%, cerca de 5 milhões de venezuelanos emigraram e a pobreza e as carências sociais atingiram níveis estratosféricos. O país enfrenta um pandemônio econômico, social, ambiental e político. Para complicar ainda mais a situação, a pandemia do novo coronavírus acrescentou uma crise sanitária à marcante crise humanitária pré-existente.

No dia 12 de junho, a Venezuela registrou 2.814 pessoas infectadas e 23 mortes pela covid-19. O coeficiente de incidência foi de 99 casos por milhão de habitantes e o coeficiente de mortalidade foi de 1 óbito por milhão de habitantes. Para efeito de comparação, o Brasil, mesmo com todos os problemas de subnotificação existentes por aqui, respectivamente, tem coeficientes de 4.047 casos por milhão e 203 óbitos por milhão. As diferenças são marcantes.

O primeiro registro oficial de uma pessoa infectada pelo novo coronavírus na Venezuela ocorreu no dia 13 de março e a primeira morte no dia 26 de março. Hoje (13/06) faz 3 meses desde a confirmação do primeiro caso venezuelano, mas a evolução dos números apresentados nestes 90 dias, geraram os coeficientes mais baixos de todo o continente. Evidentemente, parece estranho haver um impacto tão reduzido da pandemia em um país que vive uma barafunda no sistema de saúde e nas condições de sobrevivência do dia a dia. De fato, os números estatais estão sendo muito questionados por entidades da sociedade civil.

Em uma pesquisa realizada pela organização “Médicos Unidos de Venezuela (MUV)” e divulgada no dia 08 de março, constatou-se que o sistema de saúde venezuelano não estava preparado para enfrentar os desafios da pandemia do novo coronavírus. Os prestadores de serviços de saúde relataram que “Um terço dos hospitais não tinha abastecimento de água e dois terços apenas um abastecimento intermitente. Cerca de 60% dos hospitais relataram escassez de luvas e máscaras faciais. Em torno de 76% dos hospitais sofreram escassez de sabão e 90% de gel desinfetante”.

Migrantes venezuelanos improvisam um acampamento em Bogotá, na Colômbia. Foto Raul Arboleda/AFP
Migrantes venezuelanos improvisam um acampamento em Bogotá, na Colômbia. Foto Raul Arboleda/AFP

Diante de todas as dificuldades pelas quais passa o país de Simon Bolívar, o grupo internacional de direitos humanos, “Human Rights Watch”, considera que as cifras da pandemia do governo venezuelano provavelmente subestimam drasticamente a gravidade da situação no país, conforme expresso na seguinte passagem:

A resposta das autoridades venezuelanas é severamente prejudicada pela falta de transparência dos dados epidemiológicos, o que é essencial para resolver uma pandemia. Existe um assédio e perseguição a jornalistas, profissionais de saúde e outras pessoas que falam sobre a deterioração das condições dos hospitais, escassez de gás e a disseminação da Covid-19. O governo não assume qualquer responsabilidade por deixar de resolver o colapso do sistema de saúde, que eles jogam a culpa inteiramente às sanções dos EUA, mesmo que o colapso anteceda as sanções” (Human Rights Watch, 26/05/2020).

Repercutindo o relatório da Human Rights Watch, matéria de Tom Phillips, no jornal The Guardian (26/05/2020) diz: “A covid-19 tem sido a desculpa perfeita para o regime venezuelano reprimir … O que estamos vendo é a detenção e assédio de médicos, enfermeiros, jornalistas … algo como um estado policial”.

Artigo de Annette Idler e Markus Hochmüller, no site The Conversation (05/06/2020) – tratando da questão da migração de retorno – mostra que muitos dos milhões de venezuelanos que fugiram de seu país depois da crise econômica e política, agora tentam voltar, mas enfrentam dificuldades na viagem de retorno, falta de comida, transporte e abrigo, além de serem vítimas das ações dos grupos criminosos que atuam nas zonas de fronteira com o contrabando de mercadorias e pessoas.

Estes alertas são necessários para ressaltar a dificuldade de lidar com uma realidade complexa. Existem muitas controvérsias sobre a situação econômica e política da Venezuela. Sem querer ser apenas opinativo ou fazer ilações infundadas, vamos tratar os dados tal como apresentados por fontes oficiais e instituições internacionais e consultar quem vive o cotidiano do país.

Enfim, para conhecer melhor os dramas e os desafios enfrentados pelo povo venezuelano ouvimos uma testemunha ocular da luta travada no país contra o novo coronavírus. Entrevistamos a demógrafa Venezuela María Di Brienza, que é professora e pesquisadora do Instituto de Investigaciones Económicas y Sociales (IIES) de la Universidad Católica Andrés Bello (UCAB-sede Caracas) e, também, participante da Associação Latino Americana de População (ALAP). Porém, como de costume, vamos iniciar este diário com uma breve caracterização sociodemográfica e econômica do país.

Breve panorama demográfico e socioeconômico da Venezuela

A Venezuela tem uma área de 916.455 km2 e uma densidade demográfica de 30 habitantes por km2. Segundo a Divisão de População da ONU, o nosso vizinho do norte tinha uma população de 5,5 milhões de habitantes em 1950 e chegou a 30 milhões em 2015. Mas com a grande crise venezuelana, houve uma enorme emigração que gerou uma redução da população no último quinquênio, como mostra o gráfico (da esquerda) abaixo. Mas as projeções indicam que a população venezuelana chegará, na hipótese média, a 34,2 milhões de habitantes em 2100.

As mulheres venezuelanas tinham em média 6,5 filhos no quinquênio 1950-55, acima da média da América Latina e Caribe (ALC), mas embora a fecundidade tenha caído, o valor de 2,3 filhos, no quinquênio 2015-20, continua  acima da média da região. Os indicadores de mortalidade infantil e de esperança de vida ao nascer estavam abaixo da média da ALC em meados do século passado. Mas com a crise socioeconômica, as condições de saúde pioraram e, depois de 2015, a taxa de mortalidade infantil subiu e a esperança de vida ao nascer caiu e o valor de 72 anos está abaixo da média da região.

O Índice de Envelhecimento (IE) era de 8 idosos (60 anos e mais) para cada 100 jovens de 0 a 14 anos e está em 45 idosos por 100 jovens atualmente. Em consequência, a Venezuela possui uma estrutura etária rejuvenescida e a grande queda no grupo etária de 0-4 anos, na pirâmide etária de 2020, reflete a saída de muitas pessoas jovens (em idade reprodutiva) que ocorreu com a crise dos refugiados, o que fez cair a natalidade.

Em 1980, a Venezuela era o país mais rico da América Latina (ALC). A renda per capita era de cerca de US$ 8 mil, 70% mais do que a média da região e mais do dobro da renda média mundial (de US$ 3 mil). A situação se agravou na virada do milênio, mas com o aumento do preço do petróleo, a renda per capita da Venezuela se elevou e chegou a US$ 18 mil em 2014. Todavia, o inimaginável aconteceu e a renda per capita venezuelana caiu para pouco mais de US$ 7 mil em 2019, cerca de 40% da renda da ALC e pouco mais de um terço da renda média mundial, conforme mostra o gráfico abaixo, com base nos dados do FMI, a preços correntes, em poder de paridade de compra (ppp na sigla em inglês). O país com as maiores reservas internacionais de petróleo do mundo vive carências nunca vistas.

Se a situação já estava ruim, piorou muito com a pandemia do novo coronavírus. O estudo da Cepal, “Dimensionar los efectos del COVID-19 para pensar en la reactivación” (21/04/2020), mostra que a pandemia da covid-19 pegou a ALC em um momento de debilidade macroeconômica, pois, no decênio posterior à crise financeira de 2008/09, o continente apresentou em média o menor crescimento desde a década de 1950. A Cepal projeta um aumento do desemprego e da pobreza e uma redução da renda per capita de todos os países da região e estima uma queda do PIB, em 2020, de 5,3% na ALC, de -5,2% no Brasil e de impressionantes 18% na Venezuela.

Dados sobre a Covid-19 no mundo, na América do Sul, no Brasil e na Venezuela

A América do Sul tem se consolidado como o novo epicentro global da pandemia do novo coronavírus. Na América do Sul o Brasil é o país que apresenta o maior número de casos e mortes, mas o Equador é o país que apresenta o maior coeficiente da mortalidade. O Brasil tem 2,7% da população mundial, mas tem 11,1% dos casos acumulados e 10,1% dos óbitos acumulados globais. A América do Sul tem 5,5% da população mundial, mas tem 17,9% dos casos e 13,8% dos óbitos, conforme mostra a tabela abaixo. A Venezuela, segundo o governo, tem os menores coeficientes de incidência e mortalidade e, embora, tenha feito muitos testes, a qualidade dos testes e das informações precisam ser melhor avaliadas.

Entrevista com a demógrafa venezuelana Maria Di Brienza sobre a pandemia da covid-19

Depois do breve panorama sobre o nosso vizinho do norte (de total responsabilidade nossa), apresentamos um depoimento e uma análise do acontece na Venezuela, a partir de uma visão de uma estudiosa das questões populacionais e moradora da cidade de Caracas.

Quando a Venezuela percebeu a gravidade da pandemia?

Maria Di Brienza – A Venezuela é um país vulnerável aos efeitos da covid-19. Está passando por uma emergência humanitária complexa, uma parte significativa de sua população é pobre, padece de insegurança alimentar e possui serviços básicos muito deficientes. O sistema de saúde apresenta grandes fragilidades, enquanto persiste uma profunda crise econômica, política e institucional. Esse quadro é acentuado pela diminuição das receitas do petróleo (baixa produção e colapso dos preços) e pela imposição de sanções internacionais.

Nesse contexto, e com a existência de casos positivos de covid-19 nos países vizinhos, a melhor decisão a cumprir foi seguir as recomendações da OPAS-OMS e tomar medidas extraordinárias em tempo hábil. Assim, o governo nacional decretou o “Estado de Alarme” em todo o território nacional em 13 de março e, no dia 17 desse mês, a obrigação de cumprir a “quarentena social” foi estabelecida. Naquela época, foram notificados 36 casos confirmados, de maneira que a epidemia e a quarentena começaram ao mesmo tempo.

A demógrafa venezuelana Maria Di Brienza. Foto Arquivo Pessoal

Como se sabe, a situação do país levou muitos venezuelanos a emigrar (estima-se em 5 milhões). Atualmente, existe um processo de retorno como consequência do impacto da pandemia nos países onde residiam. Até o momento, cerca de 60.000 compatriotas retornaram, alguns em condições inseguras e por caminhos irregulares, com maior risco de serem infectados e menor possibilidade de serem avaliados.

O governo expressou claramente sua preocupação com essa situação e, talvez, este fato não tenha sido adequadamente comunicado à população. Eles argumentam que a epidemia está controlada e explicam que o aumento de casos observados em 16 de maio responde em mais de 80% aos casos “importados”, isto é, da nossa população retornada que foi infectada no exterior. Em outras palavras, a epidemia estaria sendo agravada pela situação na Colômbia, Peru, Equador e Brasil e não pelas falhas das medidas tomadas em nosso país. Esse discurso poderia propiciar a rejeição de migrantes pelo restante da população e menos prevenção, dado o baixo número de casos relatados pela transmissão comunitária pelas autoridades. Em 9 de junho, um total de 2.632 casos acumulados foram notificados e, destes, apenas 357 são “comunitários”.

Que medidas sanitárias foram tomadas pelo governo e pela sociedade civil para conter as infecções e as mortes?

Maria Di Brienza – No âmbito do decreto do “Estado de alarme”, foi ordenado o fechamento de fronteiras e a circulação entre entidades federais. A população só pode sair de casa para comprar comida e remédios. O uso obrigatório de máscaras foi ordenado, além de insistir no “distanciamento social” e na manutenção dos padrões de higiene. A escola presencial e as atividades acadêmicas foram suspensas, restaurantes (apenas para levar a domicílio), bares e todo o entretenimento, esportes e locais religiosos foram fechados. Somente atividades econômicas relacionadas à produção, distribuição e venda de alimentos e medicamentos e à prestação de serviços públicos foram permitidas.

O sistema de saúde foi declarado em emergência permanente e foram designados 47 hospitais sentinelas. O governo realizou uma pesquisa maciça para a triagem da covid-19 por meio do Sistema Pátria (plataforma governamental para registro e gerenciamento dos diferentes programas de proteção social) e, com base em seus resultados, foi lançada uma campanha de visita de casa em casa, a cargo dos médicos do Programa Missão Bairro Adentro, com o apoio da Missão Médica Cubana e de organizações em nível comunitário. Também foi iniciado um Plano Nacional de Desinfecção, enquanto no nível institucional foi criada a Comissão Presidencial para Prevenção e Controle de Coronavírus (Covid-19), como órgão governamental para implementar o Estado de Alarme.

As medidas destinadas à população que retorna ao país têm variado nos diferentes estados fronteiriços e ao longo do tempo. Atualmente, as pessoas que entram por terra ou por ar (plano de voos humanitários) são avaliadas aplicando testes de triagem; aqueles que testam positivo são isolados de acordo com os protocolos, enquanto aqueles que testam negativo devem ser mantidos no local de chegada para cumprir as medidas de isolamento.

Dada sua condição de vulnerabilidade, a Venezuela está incluída no “Plano Global de Resposta Humanitária” das Nações Unidas para combater o coronavírus. O plano contempla a entrega de equipamentos e suprimentos médicos e o estabelecimento de pontes aéreas para o transporte de trabalhadores e suprimentos humanitários, entre outras ações. Com base nesse plano, o Sistema das Nações Unidas no país está executando, juntamente com organizações nacionais, um Plano Intersetorial com ênfase em saúde, água, saneamento e higiene e comunicação, que agora também foi ampliado para os migrantes. Nesse contexto, destaca-se a ajuda humanitária recebida da cooperação com a China, a Rússia e Cuba, com um importante suprimento de insumos médicos e assessoria.

No entanto, as dificuldades que surgem são enormes. A Pesquisa de Impacto Nacional Covid-19, realizada a pedido da Assembleia Nacional, revela que mais da metade dos centros de saúde apresentam falhas nos insumos higiênicos básicos e deficiências no fornecimento de água, eletricidade e gás. Os especialistas insistem em alertar sobre a fraqueza do nosso sistema de saúde em relação ao número de leitos, respiradores e equipamentos de proteção. Outro problema a destacar é a significativa perda de recursos humanos na área que hoje faz parte da diáspora venezuelana.

Como tem funcionado a quarentena ou o isolamento social na Venezuela?

Maria Di Brienza – No início, a “quarentena social”, foi acatada pela maioria da população, mas também pela presença de um destacamento policial e militar significativo. De manhã, as pessoas podiam se locomover para fazer compras de alimentos, remédios etc., mas depois das 13h. havia, praticamente, um “toque de recolher”. Após a segunda semana de quarentena, a situação começou a mudar, devido à incapacidade da população de se sustentar sem realizar nenhuma atividade econômica que gere renda.

No país, como em grande parte da região, uma fração significativa de sua força de trabalho faz parte do setor informal da economia, cerca da metade, e muitos ocupam empregos precários. A população tem sofrido fortemente com os efeitos da depressão econômica e da hiperinflação, de modo que a capacidade de poupança também é muito limitada. A mencionada Pesquisa de Impacto Covid-19 relatou que 89% dos venezuelanos não possuíam reserva financeira ou renda suficientes para resistir ao estágio de confinamento por um longo tempo.

Assim, os setores com menos recursos, que vivem do que produzem durante o dia, começam a sair para vender suas mercadorias ou prestar seus serviços nas primeiras horas da manhã, o que era muito evidente nos setores populares e na indústria, nos locais mais centrais das cidades. As mudanças também são frequentemente observadas em pequenas empresas, uma vez que apenas produtos essenciais (alimentos, itens de limpeza e higiene) podem ser abertos para venda.

Na realidade, a rigidez na exigência do cumprimento da quarentena não tem sido constante nesses quase três meses. Porém, deve-se esclarecer que a intensificação da escassez de gasolina em todo o país durante esse período teve algum efeito em favor do cumprimento dessa regra, limitando a mobilidade da população além de sua área de residência.

Na 11ª semana da “quarentena social”, em 1º de junho, o governo nacional anunciou um Plano de Flexibilização que foi finalmente definido com um esquema “7 mais 7”, ou seja, 7 dias de trabalho em atividades econômicas permitidas e 7 dias de “quarentena radical”. Outros setores econômicos estão incorporados em diferentes faixas de horários, entre eles: o bancário, a construção civil, a indústria têxtil e os relacionados ao agronegócio e determinados serviços pessoais. Este plano não se aplica aos municípios limítrofes da Colômbia e do Brasil. Resta avaliar nas próximas semanas os resultados desse tipo de confinamento.

Sabemos que a Venezuela passou por uma crise hídrica e uma grande escassez de água. Como os venezuelanos enfrentam essa situação em meio à pandemia?

Maria Di Brienza – O país observou uma deterioração progressiva da situação dos serviços de abastecimento de água e eletricidade, devido à falta de investimento e manutenção adequada da infraestrutura existente. Em relação ao abastecimento de água, os governos regionais e locais tentam aliviar essa situação nas comunidades mais afetadas, fornecendo água por meio de caminhões-tanque e fornecendo meios para seu armazenamento. Recentemente, o governo nacional destacou a aquisição de um grande número de caminhões tanque com o apoio da cooperação com a China, a fim de reforçar o sistema de distribuição enquanto se realiza a manutenção dos sistemas hídricos. Por outro lado, no âmbito do “Plano Intersetorial”, com o apoio da ONU, são realizadas intervenções para acessar água, saneamento e higiene nas comunidades mais vulneráveis.

No entanto, sabe-se que essas medidas podem ser insuficientes para atender aos padrões de higiene exigidos pela prevenção da epidemia, situação também agravada porque as pessoas são forçadas a deixar suas casas e até sua área de residência para se abastecer desse recurso vital.

O Brasil está passando por uma situação muito difícil, com altos índices de infecção e mortalidade por covid-19, mas, mesmo assim sabemos que há muita subnotificação de dados oficiais devido a vários problemas, como em todo o mundo. Como foram divulgadas as estatísticas sobre casos e mortes por covid-19 na Venezuela? Até que ponto você acha que os dados refletem a gravidade da pandemia no país?

Maria Di Brienza – No país temos sérios problemas de acesso às estatísticas públicas. Em particular na área da saúde, o Ministério do Poder Popular para a Saúde (MPPS) parou de publicar os dados de mortalidade e morbidade com a frequência necessária. Como exemplo, o último Anuário de Morbidade foi publicado em 2013, o último Anuário de Mortalidade em 2014 e o relatório semanal de informação epidemiológica foi suspenso desde 2016. Por sua vez, o Instituto Nacional de Estatística não registra mortes via Registro Civil desde 2013.

Com relação à epidemia, a Comissão Presidencial de Prevenção e Controle do Coronavírus (covid-19) é o órgão responsável pela publicação diária das estatísticas e por rede nacional, que pode ser consultada no portal do MPPS. Entretanto, infectologistas e epidemiologistas levantaram sérias dúvidas quanto ao número de casos notificados, considerando o tipo e a quantidade de exames realizados no país para o diagnóstico.

Até o momento, mais de um milhão de testes foram realizados, conforme relatado pelas autoridades, o que representaria uma taxa alta por habitante, mas o problema é que os chamados “testes rápidos” (produzidos na China) não são distinguidos dos Testes de PCR (testes de biologia molecular recomendados pela OPAS). Os “testes rápidos” são considerados menos eficazes (65%), no entanto, esses são os que estão sendo realizados no país em maior proporção. Além disso, há um diagnóstico lento, pois até agora a única entidade autorizada a realizar os testes de PCR é o Instituto Nacional de Higiene, com sede em Caracas, e uma unidade móvel em Táchira (estado na fronteira com a Colômbia).

Portanto, para identificar o número de casos da covid-19, os especialistas, o mesmo Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários-ONCHA e OPAS, enfatizaram claramente nos relatórios e declarações a importância de expandir a cobertura do diagnóstico da doença com testes de PCR e melhorar a capacidade dos laboratórios. Em resumo, avaliar a incidência da doença requer o uso dos melhores testes para detectá-la e mais rapidamente.

Qual é a sua visão (ou a de outros especialistas locais) em relação à trajetória futura da pandemia na Venezuela? Quando, por exemplo, você acha que o país alcançará o valor mais alto e o contágio da covid-19 começará a diminuir?

Maria Di Brienza – Em um relatório amplamente divulgado preparado pela Academia de Ciências Físicas, Matemáticas e Naturais da Venezuela (ACFIMAN), reitera-se que os testes realizados até o momento no país são insuficientes para estimar adequadamente o tamanho real da epidemia da covid-19, assim como ressaltam que não se conta com todas as informações necessárias para a sua vigilância e análise. Segundo esses especialistas, o nível de subnotificação de casos sintomáticos pode variar entre 63% e 95%. De acordo com as projeções dos modelos epidemiológicos realizados, o número de novos casos diários pode representar entre 1.000 e 4.000 durante o pico da epidemia, que poderia ocorrer entre junho e setembro deste ano.

Como um ex-ministro da Saúde disse, estamos neste momento diante da “ponta do iceberg”. Estamos iniciando a fase do aumento exponencial. Logo veremos a pior face da pandemia na Venezuela, se as medidas necessárias não forem reforçadas.

Existem medidas econômicas tomadas pelo governo para garantir que as pessoas mantenham sua sobrevivência durante a pandemia? Existem medidas que os especialistas consideram necessárias, mas não estão sendo implementadas?

Maria Di Brienza – Desde que o Estado de Alarme foi decretado para atender à emergência sanitária, o governo anunciou um conjunto de medidas de proteção econômica, incluindo: extensão do decreto de imobilidade trabalhista em favor dos trabalhadores do setor público e privado (até 31 de dezembro); auxílio oficial para a folha de pagamento de pequenas e médias empresas por um período de seis meses; suspensão de pagamento de aluguel de moradia principal e de lojas (até 1º de setembro); suspensão do pagamento de capital por créditos no sistema financeiro.

Da mesma forma, por meio do Sistema Pátria, mencionado anteriormente, foram entregues bônus especiais à população. No entanto, os valores desses bônus são insuficientes para adquirir produtos da cesta básica. O fortalecimento do programa de distribuição de bolsas/cestas de alimentos também foi anunciado com um subsídio significativo por meio dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP). Este programa está implementado desde 2016, possui ampla cobertura, mas com falhas na frequência de entregas.

Manter uma fase prolongada de quarentena não é possível em um país imerso em uma profunda crise econômica e social. Além disso, se tem destacado o impacto que terá para muitas famílias não receber remessas de seus parentes do exterior, afetadas igualmente pela pandemia no novo país de residência (estima-se que as remessas estejam atingindo mais de 2 milhões de famílias). Os vários setores econômicos estão, por outro lado, defendendo uma maior abertura, acompanhada de medidas para prevenir a infecção por coronavírus. As propostas serão avaliadas nos próximos dias, segundo porta-vozes do governo.

Como você e sua família estão enfrentando esses meses de quarentena?

Maria Di Brienza – Com este quadro descrito posso me considerar “privilegiada”. Trabalho em uma universidade particular e, no momento da matrícula dos alunos para iniciar o semestre, a quarentena foi decretada. Poucas semanas depois, eles pediram novamente o registro com a proposta de aulas a distância e, felizmente, foram realizadas matrículas para manter a folha de pagamento mensal de todos os trabalhadores, funcionários e professores. Resta saber o que acontecerá no próximo semestre. Outros membros da minha família não tiveram a mesma “sorte”. Um deles trabalha no setor de construção, neste momento sem contrato, ele foi forçado a viver com empréstimos. Outro membro da família não pode continuar seu trabalho em uma oficina automotiva e, para obter algum rendimento, ele prepara comida em sua casa para vender e distribuir de casa em casa. Agora tudo o que desejamos é viver a melhor “nova normalidade” possível.

Frase do dia 13 de junho de 2020

“Só um louco pode desejar guerras. A guerra destrói a própria lógica da existência humana”

Pablo Neruda (1904-1973)

 Referências:

Human Rights Watch. Venezuela: Urgent Aid Needed to Combat Covid-19, 26/05/2020

https://www.hrw.org/news/2020/05/26/venezuela-urgent-aid-needed-combat-covid-19

MUV. “Encuesta nacional de la ONG Médicos Unidos de Venezuela sobre capacidades del sistema de salud para afrontar la posible epidemia de covid-19 en nuestro país”, 08/03/2020

https://sfo2.digitaloceanspaces.com/estaticos/var/www/html/wp-content/uploads/2020/03/ENCUESTA-MUV-COVID-19.pdf

Tom Phillips. Venezuela’s Covid-19 death toll claims ‘not credible’, human rights group says, The Guardian, 26/05/2020

https://www.theguardian.com/world/2020/may/26/venezuela-coronavirus-death-toll-human-rights-watch

Annette Idler e Markus Hochmüller. Venezuelan migrants face crime, conflict and coronavirus at Colombia’s closed border, 05/06/2020

https://theconversation.com/venezuelan-migrants-face-crime-conflict-and-coronavirus-at-colombias-closed-border-137743

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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Um comentário em “Diário da Covid-19: os misteriosos números da Venezuela

  1. Alberto Cruz disse:

    Os dados fornecidos sobre o Corona vírus são correctos se tivermos em conta que o regime é comunista. Também os da Corea do Norte, os de Cuba, Nicaragua e afins estarão todos certos segundo a conveniência dos comunas. Na Venezuela foi como um milagre este vírus porque permitiu ao comunista ter um álibi para o colapso da indústria petrolífera. Não há gasolina porque a gente tem que estar em quarentena. Não há gasolina e isso convertesse num trunfo. É admirável como estes comunistas conseguem transformar a miséria em que vivem em pontos a seu favor.

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