“A maioria dos não vacinados é de crianças. Enquanto você não tiver uma cobertura mais ampla para a população, envolvendo as crianças, você não conseguirá bloquear mais efetivamente o vírus. E, com a variante Ômicron, isso se complica, porque ela é altamente transmissível. As crianças pequenas agora são grupo de risco.”
O alerta vem do pediatra e sanitarista Daniel Becker, do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Comitê Especial de Enfrentamento da Covid-19 da Prefeitura do Rio. Ele destaca que a Ômicron vem encontrando uma parcela muito grande da população adulta completamente vacinada, alguns inclusive com dose de reforço, e que isso tende a levar o coronavírus mais diretamente para o público infantil.
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De fato, nos Estados Unidos – onde a Ômicron já se espalhou muito mais rapidamente do que no Brasil – aumentou significativamente a quantidade de internações de crianças e adolescentes. A média móvel de 7 dias de hospitalizações na faixa etária dos 0 aos 17 anos cresceu 66,1% na última semana de dezembro nos EUA, em relação à semana anterior. De acordo com a Academia Americana de Pediatria, quase 199 mil crianças contraíram covid-19 na penúltima semana de dezembro, volume 50% maior do que no início do mês. Na França, a Ômicron disparou também, com a média de novos casos superando a faixa de 200 mil pessoas por dia na última semana de 2021. O governo começou a vacinar as crianças francesas acima dos 5 anos em 22 de dezembro e, na virada para 2022, decretou que as maiores de 6 anos terão que usar máscara em locais fechados, obrigatoriamente.
Por aqui, além da Anvisa, que apresenta argumentos científicos para defender a vacina contra covid-19 para a faixa de 5 a 11 anos, também a Fiocruz, em Nota Técnica divulgada em 28 de dezembro, se posicionou favoravelmente.
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Veja o que já enviamos“A inclusão da vacinação para o grupo etário de 5 a 11 anos (…) é de grande relevância em saúde pública pelas seguintes razões: atuar na mitigação de formas graves e óbitos pela covid-19 na faixa etária; colaborar potencialmente na redução da transmissibilidade da doença; ser uma das mais importantes estratégias para o retorno e manutenção segura das atividades escolares presenciais. (..) Diante da transmissão e avanço atual da variante Ômicron, existe uma preocupação aumentada com seu maior poder de transmissão, especialmente nos indivíduos não vacinados. Isso torna as crianças abaixo de 12 anos um grande alvo dessa e possivelmente de outras variantes de preocupação.”
A vacinação das crianças brasileiras poderia ser ponto pacífico, todas as entidades médicas sérias estão se manifestando favoráveis à medida. Mas o presidente Jair Bolsonaro é contra. Surfando na onda negacionista como se estivesse dirigindo um jet-ski em suas férias no Sul do país (alheio à tragédia das enchentes na Bahia), Bolsonaro determinou a seu ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que ignore a Anvisa e só libere a vacina com prescrição médica e autorização dos pais. Além disso, exigiu a realização de uma consulta à população sobre a vacinação de crianças.
“O governo Bolsonaro se associou ao movimento antivacina para fins políticos, com o objetivo de manter a fidelidade de seus apoiadores com teorias conspiratórias, através de uma campanha maciça de fake news contra as vacinas”, critica Daniel Becker.
Nesta entrevista exclusiva para o #Colabora, o pediatra e sanitarista conta que, mais do que a covid-19, a pandemia de coronavírus causou um mal enorme às crianças e aos adolescentes, porque gerou vários problemas mentais e comportamentais que estão afetando fortemente toda uma geração abaixo dos 20 anos de idade. E adverte que a campanha antivacina do governo Bolsonaro representa outro enorme risco: pode afetar a vacinação contra outras doenças graves, como poliomielite, meningite, catapora e até sarampo.
No início da pandemia, em março, abril e maio de 2020, adolescentes e crianças não eram tão importantes no combate à covid-19. A ocorrência de casos e óbitos nas faixas etárias abaixo dos 20 anos sempre foi muito pequena. Nos dados do Painel Rio Covid-19, da Secretaria Municipal de Saúde do Rio, até hoje apenas 53 crianças de 0 a 9 anos morreram de covid-19, um número ínfimo em relação aos mais de 35 mil óbitos de todas as faixas etárias. O que mudou de lá para cá?
Quando você tem uma epidemia, é preciso focar nos grupos de riscos. E desde o início as crianças eram o grupo de menor risco. Mas isso não quer dizer que as crianças não tenham sido afetadas pela covid-19. Elas foram atingidas de forma leve pela doença, principalmente crianças com algumas comorbidades ou problemas neurológicos, com obesidade e diabetes (cada vez mais comuns em crianças e adolescentes) e, também, com Síndrome de Down. Ou seja, a criança não era completamente isenta de riscos.
E por que as crianças eram um grupo de menor risco?
Hoje sabemos que elas têm uma proteção natural contra a contaminação, porque os receptores das células onde o coronavírus se encaixa são menos frequentes nas crianças. Por isso, elas estão parcialmente protegidas. Mas nunca foi uma proteção absoluta e algumas crianças também ficaram contaminadas e doentes. E agora, com a Ômicron e mais adultos vacinados, esse cenário está tendendo a mudar: as crianças estão mais disponíveis para serem infectadas.
E a vacinação das crianças é realmente a solução?
Quando você decide vacinar ou não contra determinada doença, o critério fundamental é o dano que a doença causa na população. Pegue como exemplo a gripe. Você já ouviu falar de alguém que morreu de gripe? Não, porque a grande maioria dos casos é banal. Então, por que vacinar? Porque há o risco de casos graves. Que não são os mais frequentes, mas você quer evitar, para não deixar as pessoas morrerem. Para isso, tem que vacinar a maioria da população. A varicela (catapora) é uma doença banal para 90% das crianças, mas algumas fazem casos graves, com pneumonia, encefalopatia, septicemia. Por isso, você vacina a população toda, para evitar os poucos casos graves – que mesmo não sendo a maioria, são em número suficiente para justificar a vacinação.
E como esse raciocínio se aplica à covid-19?
O que acontece com a covid-19 é que agora, com a Ômicron, ela é uma doença que está se tornando cada vez mais frequente. E o único grupo não vacinado são as crianças abaixo de 12 anos. Além disso, está aumentando a internação de crianças, principalmente nos Estados Unidos, isso é fato. Quanto mais covid tivermos, mais crianças terão casos graves. Esses casos piores são menos frequentes, em termos relativos, mas quando se tem uma explosão da doença, aí é diferente. Digamos que você tenha 1 caso grave para cada 1 milhão, isso é uma coisa. Mas se tiver 100 milhões de casos, aí teremos 100 crianças doentes e algumas delas vão morrer. Por isso você faz a vacina para a população toda, para reduzir a transmissão e a possibilidade de termos casos graves. Ninguém quer que uma criança morra. E dizer que vacina não reduz a transmissão é uma bobagem, ela reduz de maneira eficiente, isso já está comprovado cientificamente.
Para complicar, temos a epidemia de gripe. E a Ômicron tem sintomas parecidos com a gripe. Uma doença pode mascarar a outra?
Temos duas epidemias simultâneas, gripe e Ômicron. Por isso é importantíssimo testar para a covid-19, que é ainda mais contagiosa. A gente deveria estar testando todos os indivíduos para a covid, que é uma doença mais mortal do que a gripe. As duas causam sintomas similares, é verdade. A Ômicron parece estar causando mais casos de fadiga, mal-estar, dor de garganta, enjoo e muito cansaço. Já o vírus da gripe, ele é mais característico: tosse, espirro, catarro nasal, coriza, febre, um quadro gripal típico mesmo. Mas a covid pode causar exatamente a mesma coisa que a gripe, e aí fica difícil distinguir uma doença da outra só com aspectos clínicos, é preciso fazer o teste de covid. No Brasil, ainda testamos muito pouco para covid-19.
Você acredita que a Ômicron pode causar um novo colapso no sistema de saúde?
É difícil prever. Provavelmente os casos irão aumentar, é possível termos uma explosão de infectados nas próximas semanas. Não acredito que vá causar colapso hospitalar, mas não dá para afirmar com certeza. Apesar de isso não estar acontecendo em muitos lugares, na Inglaterra, por exemplo, já estão se preparando para um novo colapso hospitalar. A Prefeitura do Rio também está preparada para isso. O que acontece é que o número de testes positivos está aumentando, mas ainda não começaram a crescer os diagnósticos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), porque a Ômicron, aparentemente, causa efeitos menos graves.
A campanha do governo Bolsonaro contra as vacinas pode afetar a vacinação contra outras doenças tradicionais?
Antes mesmo da pandemia, já tínhamos uma queda de cobertura vacinal em geral. Provavelmente porque houve um descaso, falta de propaganda e de ênfase. E não se atinge uma boa cobertura vacinal sem campanhas educativas contínuas. Temos uma tradição muito boa de vacinação. Já tivemos 92% de cobertura de poliomielite, mas hoje estamos com 75% – é uma queda importante para uma doença tão grave, se a poliomielite voltar, será um problema seríssimo! Nós temos que refazer essas campanhas, reeducar a população para voltar a vacinar as crianças na rotina da caderneta do SUS, dentro do calendário oficial.
De quem é a responsabilidade pelas campanhas de vacinação?
As campanhas de vacinação são tradicionalmente de responsabilidade do governo federal. Mas, no momento, esse governo faz campanha de desconfiança contra a vacina. O problema é que, quando você fala mal da Pfizer ou da Coronavac, está atingindo indiretamente todas as demais vacinas para outras doenças. Isso é muito grave. A desconfiança da população em relação às vacinas, que é profundamente nociva à saúde pública, aumentou. E nossa tradição sempre foi de muita confiança nas vacinas. Um dos motivos dessa epidemia de gripe que estamos vivendo aqui no Rio se deve justamente à cobertura vacinal mais baixa dos últimos anos. A poliomielite é outra ameaça terrível. O sarampo também é um problema sério, porque é altissimamente transmissível e pode ser muito grave e matar crianças – já temos um caso no Rio e teve há pouco tempo um surto em São Paulo, que exigiu vacinação urgente. Também precisamos de uma boa cobertura vacinal contra a meningite, que é uma doença mortal muito grave.
Essa consulta pública que o Ministério da Saúde está realizando, em relação à vacina contra covid para as crianças, contribui para minar essa confiança?
Essa consulta é um dos maiores golpes criminosos contra a saúde pública no Brasil. Isso não existe em nenhum país, não faz o menor sentido. Você não faz uma consulta pública para saber se constrói um prédio de 20 ou de 50 andares, ou se a estrada tem que passar pelo lugar X ou Y. São decisões eminentemente técnicas. Em nenhum lugar do mundo há consulta pública sobre remédio ou vacina, o que há são consultas técnicas a órgãos técnicos. A Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização da Covid-19 (CTAI Covid-19), que assessora o Plano Nacional de Imunização, se manifestou imediatamente a favor da vacina em crianças, mas o Ministério da Saúde continua a insistir nessa consulta. Que funciona assim: “Você é a favor que a vacina só possa ser feita com receita médica?”. Se você responder “sim”, endossa a posição negacionista do governo. E se responder “não”, é como se estivesse respondendo que não quer a vacina. Não há uma terceira opção, que seria: “Eu quero a vacina sem prescrição médica”. É um absurdo, é manipulação, é perverso, é criminoso, não tem outras palavras para descrever isso. Esse questionário não passou por nenhuma comissão de ética ou de ciência, foi retirado da barriga do Bolsonaro e dos bolsominions antivacinas.
Na prática, como será a vacinação das crianças? Igual à dos adultos, com duas doses e reforço?
A Pfizer está desenvolvendo uma vacina específica para crianças pequenas, com frasco e dosagem diferentes dos utilizados para maiores de 12 anos. Será dada em duas doses, e terá reforço também. E eu espero que, em breve, seja aprovada pela Anvisa a vacina da Coronavac para a faixa de 5 a 11 anos. A Coronavac é uma vacina muito segura e efetiva em crianças, altamente imunogênica. Para idosos, ela realmente não se mostrou tão eficiente quanto as outras, mas, para crianças, ela é perfeita. É de uma tecnologia mais antiga, na qual as pessoas confiam mais. Fiz uma enquete informal no Instagram, 5 mil pessoas responderam: 89% dariam vacinas, e 11%, não. Mas quando esses 11% foram perguntados se dariam vacina caso ela fosse a Coronavac, 80% responderam “sim”. As pessoas têm menos rejeição à Coronavac por ela usar uma tecnologia tradicional. Uma das mentiras antivacinas é a de que a Pfizer é experimental – em verdade, ela é de tecnologia nova, o que não significa que seja experimental. A AstraZeneca também tem uma tecnologia um pouco mais inovadora, de vírus carreador, que é segura também para crianças, ela só dá um pouco mais de efeitos colaterais.
Desde o início da pandemia, você tem alertado a sociedade de que a incidência de problemas psicológicos, mentais e comportamentais nas crianças e adolescentes vem aumentando bastante. O que aconteceu?
Já no primeiro momento da pandemia, tivemos distúrbios emocionais, e alguns bem graves, por causa de confinamento, da falta da escola e da sobrecarga dos pais. Tudo isso somado gerou muitos conflitos domiciliares que, em vários casos, já aconteciam anteriormente à covid-19. A violência contra crianças e contra mulheres aumentou muito em 2020, literalmente explodiu. Isso começou a melhorar com a volta da escola e o retorno ao ar livre e ao contato com a natureza. Eu fiz muita campanha pela volta às aulas, desde que as escolas seguissem rígidos protocolos de segurança.
Mas quais foram os problemas mais comuns?
Alterações comportamentais, agitação, hiperatividade, excesso de “grude” nos pais (ficar solicitando eles o tempo todo), ansiedade, insônia, bruxismo… Uma coisa que explodiu foram os tiques, movimentos súbitos no rosto, das mãos, às vezes acompanhados de algum grunhido, isso deixou muitos pais apavorados. Vimos também terrores noturnos e alterações de apetite – crianças comendo compulsivamente, ou parando de comer. E, entre os mais velhos, houve um problema muito sério (que ocorreu também com alguns mais novos), que foi uma epidemia gravíssima: o excesso de tela. Eu vi crianças de 2 a 3 anos passando 8 horas por dia diante da tela, uma coisa escandalosamente nociva para eles. E os mais velhos, pré-adolescentes e adolescentes, passavam muitas vezes 10, 12, até 15 horas mergulhados na televisão, no celular, no laptop, no tablet ou em videogames. Essas crianças perderam inclusive o desejo de sair de casa, ficaram extremamente sedentárias e irritadiças, porque seu sono foi completamente alterado. E perderam aulas, se recusaram a ir para a escola, se negaram a sair de casa quando já era permitido sair. Ficaram depressivas, introspectivas, introvertidas e com medo de contato social, perdendo habilidades sociais. Essa pandemia foi muito grave para crianças e adolescentes e ainda vamos levar muito tempo para recuperar o que eles sofreram.
O que exatamente causou esse quadro?
Foi estresse tóxico mesmo, com vários fatores. Para começar, o confinamento entre quatro paredes, que já é suficientemente estressante. Teve o convívio forçado com pais sobrecarregados, atabalhoados, cheios de tarefas, tendo que cuidar de casa, comida, criança, home-office. E ainda teve escola dando tarefas para esses pais em casa – o que achei um absurdo, as escolas não tinham que dar nada para os pais fazerem. Houve ainda a distância da escola, que é tão importante para as crianças, especialmente as mais pobres, com a perda do contato com os amigos e da socialização. E há um último fator, na alimentação durante o confinamento, que foi o excesso de alimentos ultraprocessados – comida pronta, congelados, salgadinhos, refrigerantes, tudo extremamente tóxico para as crianças e adolescentes quando em excesso.
Você tem defendido a continuidade dos protocolos básicos – uso de máscara, lavar as mãos, ambientes ventilados – nas escolas e creches. Mas as crianças pequenas conseguem seguir esses protocolos? Não é difícil fazer uma criança de 5 ou 6 anos usar máscara?
Ao contrário, a gente tem percebido isso desde o início da pandemia e ficamos muito surpresos. A recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria era de que crianças acima de 2 anos usassem máscaras. Eu mesmo fui cético: “Isso não vai acontecer nunca, é preciso que a criança tenha pelo menos 4 anos para usar máscaras”. Mas estamos vendo crianças de 2 anos usando máscaras lindamente, melhor do que muitos adultos. A grande maioria consegue, sim, usar máscaras, isso é extraordinário! Claro que algumas não conseguem, crianças que têm distúrbios comportamentais ou problemas emocionais, que são mais ansiosas e agitadas, com problemas neurológicos, autismo, Síndrome de Down etc., essas vão ter que ficar sem máscara mesmo e só serão afastadas do coletivo se tiverem sintomas ou histórico de contatos com contaminados. Mas nas creches e escolas elas usam máscara, e muito bem.
E os professores?
Os professores também estão usando máscaras e muitos deles estão usando PFF2 (N95), que é a mais adequada e que deveria ser exigida para todo o pessoal de escolas e creches. Eu fiz uma campanha junto à Secretaria Municipal de Educação no Rio e eles compraram PFF2 para todos os funcionários, foi excelente. E, ao contrário do que se diz, a PFF2 não é uma máscara mais cara, porque ela pode ser usada diversas vezes – deixando dois a três dias em repouso, ela pode ser reutilizada por até seis, sete, oito vezes. Ela é muito eficaz para prevenir o contágio – tanto quanto uma vacina. É fundamental que escolas e creches usem a PFF2. Além, claro, de todos os demais protocolos, como ventilação, lavagem frequente das mãos, atividades em áreas abertas. Tem uma escola na Tijuca que fechou a sede e dá aulas todo dia na Floresta da Tijuca, o que é maravilhoso, tanto do ponto de vista pedagógico, quanto de saúde e de contágio. As atividades ao ar livre são extremamente seguras, em alguns casos nem precisa de máscara. São uma ótima forma para se recuperar as crianças pequenas de todos os males do confinamento.