Colônia de hanseníase tinha futebol, carnaval e até cadeia

Instituição na Região Metropolitana do Rio - como outras espalhadas pelo país - buscava simular a vida na cidade para os internos

Por Letícia Lopes | ODS 3 • Publicada em 11 de maio de 2021 - 07:55 • Atualizada em 26 de maio de 2021 - 09:44

Sebastião Dutra em sua casa dentro da antiga colônia em ItaboraÍ: lembranças de bailes, blocos de carnaval e torneios de futebol (Foto: Letícia Lopes)

Sebastião Dutra em sua casa dentro da antiga colônia em ItaboraÍ: lembranças de bailes, blocos de carnaval e torneios de futebol (Foto: Letícia Lopes)

Instituição na Região Metropolitana do Rio - como outras espalhadas pelo país - buscava simular a vida na cidade para os internos

Por Letícia Lopes | ODS 3 • Publicada em 11 de maio de 2021 - 07:55 • Atualizada em 26 de maio de 2021 - 09:44

Os trilhos de trem que margeiam a Avenida 22 de Maio, na altura do Hospital Estadual Tavares de Macedo, em Itaboraí, são hoje apenas mais um elemento da paisagem local. Para os estudantes das duas escolas mais próximas e os moradores da região, não há preocupação ao atravessá-los. A linha férrea é parte da Estrada de Ferro Leopoldina, a ferrovia que ligava Minas Gerais até o Espírito Santo e entrou em declínio em meados da década de 1960. Alguns anos antes da sua desativação, no entanto, no dia 20 de agosto de 1938, uma comitiva desembarcou de uma composição especial que vinha da cidade de Campos, no norte do Estado, para a inauguração do “leprosário” Tavares de Macedo, a colônia para pacientes de hanseníase.

Entre os integrantes da comitiva, estavam o então presidente Getúlio Vargas e seu ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema. Assim como outras colônias do país, a Tavares de Macedo era uma espécie de “micro-cidade” dentro da cidade, e foi a única instituição do tipo construída no então estado do Rio de Janeiro. Àquela altura, a capital federal já tinha outras duas colônias — o Hospital Frei Antônio, antigo Hospital dos Lázaros, construído no bairro de São Cristóvão, em 1741, e a Colônia Curupaiti, em Jacarepaguá, erguida em 1929 como a maior do país.

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Os próprios doentes se animavam, esqueciam da doença e iam dançar. No carnaval, também era muito animado, e, além do pessoal aqui de dentro, vinham pessoas sadias das redondezas brincar carnaval com a gente

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Sebastião Dutra é um dos ex-internos que vive há mais tempo dentro dos limites da antiga colônia. A mãe dele chegou à Tavares de Macedo em 1940, apenas dois anos após Vargas hastear a bandeira do Brasil na cerimônia de inauguração. Francisca Dutra era empregada doméstica em uma casa no bairro de Botafogo, na Zona Sul da cidade do Rio, quando os primeiros sinais da hanseníase apareceram em seu corpo. O filho mais velho morava com ela, e outros dois meninos gêmeos ficavam na casa da família em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Ela nunca mais voltou a ver os caçulas; Sebastião nunca mais soube dos irmãos.

 Durante quatro décadas, a política de combate da hanseníase no Brasil consistia em internar os portadores da doença à força e separá-los da família, inclusive de seus filhos recém-nascidos. As colônias de leprosos ou leprosários reforçaram o preconceito contra uma doença que deixa de ser transmissível ao ser tratada e tem cura para a maioria das pessoas. Série de reportagens de Letícia Lopes no #Colabora conta que, os sobreviventes lembram ainda hoje as dores da separação e muitos filhos cobram reparação do Estado na Justiça.   

Leia todas as reportagens da série Hanseníase: internação à força e filhos separados dos pais

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— A patroa dela, Dona Rosa, tinha um irmão que era médico, o Doutor Orlando. Ela pediu que ele olhasse minha mãe, eu tinha oito anos. Examinou as mãos dela, as orelhas, as pernas, e não falou nada. Pegou a caneta, escreveu e aí falou: “Ô Rosa, leva essa senhora nesse posto lá na cidade”. Ele já sabia. Fizeram vários exames, e daí a cinco dias foram buscar minha mãe. Eu fiquei. Ela veio para cá e nunca mais saiu. Naquela época não saía, né? — conta Seu Dutra, aos 89 anos, como é conhecido Sebastião pelos amigos da Colônia.

O menino ficou alguns anos na casa da patroa da mãe, até a hanseníase se manifestar. Depois de Dona Francisca ser internada, o pequeno Sebastião e passou por exames periódicos e foi diagnosticado aos 10 anos. Da Zona Sul da então capital federal, foi levado ao Educandário Vista Alegre, em São Gonçalo, onde permaneceu por cinco anos ao lado de outras seis crianças em uma área reservada àqueles que já estavam doentes ou ainda sob observação. O reencontro com a mãe aconteceu quando foi transferido para a Tavares de Macedo, aos 15 anos.

Praça dentro da área do antiga Colônia Tavares de Macedo: clima de cidade do interior (Foto: Letícia Fernandes)
Praça dentro da área do antiga Colônia Tavares de Macedo: clima de cidade do interior (Foto: Letícia Fernandes)

Cidade com prefeito e delegado

Hoje, apesar da idade já avançada, Seu Dutra lembra de maneira clara os tempos de juventude. Na casa em que mora, próxima ao imóvel que abrigava o cinema da Colônia, ele passa os dias escutando no rádio os sambas e boleros que cantava nos grupos de música que animavam a Tavares de Macedo. Os bailes eram apenas uma das atividades que movimentavam a vida cultural da Colônia — uma necessidade, na visão do ex-interno:

— Tinha que ter essas coisas para o pessoal não ficar triste. A gente não podia sair, mas era animado. Os próprios doentes se animavam, esqueciam da doença e iam dançar. No carnaval também era muito animado, e, além da gente aqui de dentro, vinham pessoas sadias das redondezas brincar carnaval com a gente — recorda Seu Dutra, que era intérprete da escola de samba da colônia, a “Anjos Inocentes”, bicampeã do carnaval de Itaboraí.

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Ninguém podia sair, ir em casa, ver os filhos, a esposa – a não ser os que fugiam e, quando voltavam, pegavam uma “cadeiazinha”. Tinha cadeia aqui, com grade e tudo

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Muitas das atividades, como apresentações e festivais de música e bailes de carnaval, eram promovidas pela Caixa Beneficente, a associação interna que contava com doações de entidades filantrópicas, como a Federação Fluminense de Assistência aos Lázaros e Defesa contra à Lepra, e de mulheres influentes, como a filha do presidente e primeira-dama do estado, Alzira Vargas do Amaral Peixoto. A presença desse tipo de associação era comum nos hospitais-colônia de hanseníase em todo o país.

Assista ao nosso webdocumentário “Dona Santinha”, sobre a política de isolamento compulsório

O futebol era outra atividade que movimentava o dia a dia — e os ânimos — da Tavares. Tal como embates entre Botafogo e Flamengo deixam em clima de tensão os torcedores dos dois grandes clubes cariocas, o mesmo acontecia, segundo Seu Dutra, quando o alvinegro Esporte Clube Modelo e o rubro-negro Ipiranga Futebol Clube, ambos formados por internos da colônia, se enfrentavam no campo de várzea em frente ao cinema.

— Tinha até briga. Ipiranga e Modelo quando se juntavam, no outro dia saía até “faísca” — lembra, rindo, na varanda de sua casa.

Entre um lazer e outro, no entanto, muitos dos internos tinham suas funções dentro da Tavares de Macedo. Sebastião Dutra, por exemplo, trabalhou em diferentes áreas, como a zeladoria e o alto-falante da Colônia, que servia como uma espécie de central de avisos e informações. Outros internos ainda atuavam como “enfermeiros” e até em funções de autoridade, como delegado ou prefeito do “leprosário”.

— Ninguém podia sair, ir em casa, ver os filhos, a esposa – a não ser os que fugiam e, quando voltavam, pegavam uma “cadeiazinha”. Tinha cadeia aqui, com grade e tudo. Eu era zelador. Trabalhei nos pavilhões e na Prefeitura. Tinha uma brincadeira de que isso aqui era uma cidade fora do mapa, porque tinha prefeitura, delegacia, polícia, e todo mundo era interno — explica Seu Dutra, que, hoje curado da doença, teve a perna esquerda amputada por complicações causadas pela doença e tem sequelas também nas mãos.

Campo de futebol na área do hoje Hospital Tavares de Macedo: rivalidade entre times de internos nos tempos da colônia de hanseníase (Foto: Yuri Fernandes)
Campo de futebol na área do hoje Hospital Tavares de Macedo: rivalidade entre times de internos nos tempos da colônia de hanseníase (Foto: Yuri Fernandes)

Em 2013, o então governador do Rio, Sérgio Cabral, assinou uma lei concedendo pensão aos ex-internos que tivessem trabalhado e contribuído de algum modo para o funcionamento das colônias do estado. Para receber a indenização, as pessoas não poderiam ter nenhum benefício previdenciário. No Instituto Estadual de Dermatologia Sanitária (Ieds), a antiga Colônia Curapaiti, 158 pessoas foram beneficiadas, e, no Hospital Estadual Tavares de Macedo, 220 – entre elas, Sebastião Dutra.

O historiador Luiz Maurício de Abreu Arruda, professor da rede municipal de Maricá e Rio Bonito, é autor de “A nova Jericó maldita: um estudo sobre a Colônia de Iguá em Itaboraí/RJ (1935-1953)”, sua dissertação de mestrado. Na obra, ele mostra que o projeto original da colônia para pacientes de hanseníase previa a construção de uma escola, campo de futebol, salão de dança, cinema, sala de jogos e biblioteca, entre outras construções. Algumas não chegaram a sair do papel. O modelo de “leprosário agrícola”, que contava ainda com uma área de cultivo agrário, seguia a lógica de reproduzir nos limites da colônia os aspectos da vida do lado de fora do isolamento. É o que explica a também historiadora Laurinda Rosa Maciel:

— Essa arquitetura hospitalar que privilegia a construção de uma espécie de cidadela tem muito mais a ver com você colocar o doente ali e fazer com que ele não sinta falta de todas as outras coisas que possam ter na cidade, como o cinema, campeonatos de futebol, oficinas de costura, igreja. A ideia é que para essas pessoas bastasse ficar ali.

Em 2013, cerca de mil famílias que ainda viviam na área Hospital Estadual Tavares de Macedo assinaram o título de posse de suas moradias. A regularização fundiária se deu por meio de um convênio entre o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), a prefeitura de Itaboraí e o governo do Rio de Janeiro.

Dez mil pessoas ainda vivem na antiga colônia

O atual Hospital Estadual Tavares de Macedo ainda guarda o clima bucólico que Dona Santinha sentiu ao passar pelos portões ao lado do marido e do filho vindo de Ubá, em Minas Gerais, há mais de cinco décadas. As ruas arborizadas e o vento fresco dão a sensação de se estar em uma cidade do interior. O silêncio só é entrecortado pelo entra e sai de motocicletas dos moradores da colônia, como ainda é chamado o HETM.

Atualmente, cerca de dez mil pessoas vivem na área pertencente à antiga colônia de hanseníase. A estimativa é feita por Rafael Feitosa, diretor da unidade, que admite dificuldade em “mapear” os moradores. De acordo com ele, quando os portões do “leprosário” foram abertos no fim da década de 1980, cerca de 70% dos antigos internos permaneceram morando na Tavares de Macedo.

Hoje, o número de ex-internos gira em torno de 300 pessoas, mas apenas 16 — nove mulheres e sete homens — são pacientes formais da Secretaria Estadual de Saúde, e ficam internados nos pavilhões femininos e masculinos, onde recebem atendimento dos enfermeiros e enfermeiras da unidade. Segundo Feitosa, esses pacientes são idosos em idade avançada com sequelas da doença, como Dona Santinha, que demandam apenas atenção ambulatorial e cuidados básicos, como medicação para doenças crônicas, como o diabetes e hipertensão.

Seu Dutra na varanda de sua casa na área da antiga colônia: título de posse para mil família (Foto: Letícia Fernandes)
Seu Dutra na varanda de sua casa na área da antiga colônia: título de posse para mil família (Foto: Letícia Fernandes)

De acordo com o diretor, as dez mil pessoas seriam fruto dos laços familiares dos cerca de 2,5 mil internos que passaram pela Tavares de Macedo durante a política de isolamento para o combate à hanseníase.

— O hospital só tinha a estrutura: o ambulatório, os pavilhões, o prédio da administração, mas isso aqui virou uma cidade. Foram sendo construídas casas, puxadinhos, a população foi se multiplicando até que chegou a esse ponto de dez mil pessoas. Nós não temos nem um número exato, porque é um trabalho difícil fazer um censo de quem mora aqui, apesar de já termos tentado fazer esse mapeamento — explica Feitosa.

[g1_quote author_name=”Rafael Feitosa” author_description=”Diretor do Hospital Estadual Tavares de Macedo” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

Falta recurso do próprio governo. Com o coronavírus, os hospitais que não estavam envolvidos com atendimento da linha de frente ficaram desassistidos, e o que já estava ruim, piorou. É uma falta de insumos, medicamentos

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Como parte da rede estadual de saúde, toda estrutura do Tavares de Macedo é mantida pelo governo do Rio. Atualmente, as áreas médicas e administrativas são desempenhadas por servidores, enquanto os serviços de limpeza, alimentação, manutenção e segurança patrimonial são terceirizados. Os insumos e medicamentos também são custeados pelo governo, mas há faltas sistemáticas de alguns remédios, como os medicamentos psiquiátricos.

A saída encontrada pela administração são bazares realizados periodicamente no hospital, onde a renda adquirida é revertida para a compra dos remédios. Rafael Feitosa avalia que faltam recursos estruturais do governo e investimentos em políticas públicas com foco na cura da doença, que, enfatiza, não está controlada. Segundo ele, as deficiências se agravaram com a pandemia da Covid-19.

— Falta recurso do próprio governo. Com o coronavírus, os hospitais que não estavam envolvidos com atendimento da linha de frente ficaram desassistidos, e o que já estava ruim, piorou. É uma falta de insumos, medicamentos. Os servidores se aposentam e não há substituição — analisa.

— E ainda tem o estigma da doença, que é o pior de tudo, porque eles não querem investir em nada porque acham que a doença já está tratada, que a atenção básica já é suficiente. Todo investimento só chega aqui por último. “Se der, vai para o Tavares, vai pro Ieds (Instituto Estadual Dermatologia, antiga Colônia Curapaiti, em Jacarepaguá)”. A gente tenta mudar essa visão da Secretaria (Estadual de Saúde) e mostrar que temos uma boa estrutura e que precisamos de investimento, porque a doença não está controlada — acrescenta o diretor do hospital.

Sede do Hospital Tavares de Macedo que ainda trata pacientes com hanseníase e outras doenças: falta de medicamentos e insumos (Foto: Yuri Fernandes)

Por que Itaboraí?

A cidade de Itaboraí foi escolhida para a construção da Colônia Tavares de Macedo por questões estratégicas. O terreno da instituição, com seus 950 mil m² de extensão, era um sítio do governo estadual, e sua topografia favorecia o escoamento de esgoto e evitaria inundações em caso de chuvas fortes. Outro ponto favorável era a logística: a colônia para os doentes de hanseníase ficaria localizada no entroncamento de uma das principais ferrovias do país na época, além de rodovias que àquela altura já serviam como caminho para as regiões Serrana, dos Lagos e para a então capital do estado, a cidade de Niterói, a cerca de 40 km de distância, facilitando a chegada de internos, o transporte de medicamentos e a condução de funcionários.

Uma parcela da população da cidade não ficou satisfeita com a ideia, e criticava a construção da colônia para pacientes de hanseníase em Itaboraí. Um dos principais argumentos era de que a cidade não era uma região endêmica, área em que a doença ocorre com maior frequência. Naquele momento, os maiores índices da doença estavam localizados na Região dos Lagos, mais precisamente nas cidades de Maricá, Araruama e Saquarema, como explica o historiador Luiz Maurício de Abreu Arruda.

— Com o tempo, o hospital não trouxe nenhum tipo de prejuízo para a cidade. Ao contrário daqueles que imaginavam que o hospital seria uma tragédia para o município, pelo contrário, ele acabou trazendo benefícios, como, por exemplo, a questão da vinda da energia elétrica. Nesse período, a ampliação da energia elétrica para os municípios dependia muito de recursos das prefeituras, o que Itaboraí não tinha. A cidade teve seus períodos áureos, mas aquele era um momento de muita dificuldade, principalmente de abastecimento de água e luz — explica.

O nome “Iguá”, no título do trabalho do pesquisador (“A nova Jericó maldita: um estudo sobre a Colônia de Iguá em Itaboraí/RJ (1935-1953)”), se refere ao primeiro nome da Colônia Tavares de Macedo. O “leprosário” foi batizado assim por conta da região em que estava localizado. De acordo com Arruda, historicamente, a região do Iguá abarcava toda a área de Itaboraí, passando pelos bairros de Venda das Pedras, Reta Velha e o local onde a Colônia foi construída. Poucos anos após a inauguração, o nome da instituição foi alterado para Tavares de Macedo.

Perguntas e respostas sobre a hanseníase (ARTE: FERNANDO ALVARUS)
Perguntas e respostas sobre a hanseníase (ARTE: FERNANDO ALVARUS)

Letícia Lopes

Jornalista formada pela UFF, com passagens pelos jornais O Globo e Extra, BandNews FM e O São Gonçalo. Gosta de rua, de gente e de dias de outono

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