Filhos da dor: aborto legal após engravidar do próprio pai

Violentada aos 13 anos e com muito medo, ela se calou por quase uma década, até sofrer novo estupro e descobrir que esperava um filho de seu agressor

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 3ODS 5 • Publicada em 15 de agosto de 2020 - 15:17 • Atualizada em 29 de fevereiro de 2024 - 16:38

4.262 crianças e adolescentes, entre 10 e 19 anos, engravidaram de seus estupradores, entre 2011 e 2016, segundo pesquisa do Ministério da Saúde. Foto: Alys Tomlinson / Image Source/AFP

4.262 crianças e adolescentes, entre 10 e 19 anos, engravidaram de seus estupradores, entre 2011 e 2016, segundo pesquisa do Ministério da Saúde. Foto: Alys Tomlinson / Image Source/AFP

Violentada aos 13 anos e com muito medo, ela se calou por quase uma década, até sofrer novo estupro e descobrir que esperava um filho de seu agressor

Por Yuri Alves Fernandes | ODS 3ODS 5 • Publicada em 15 de agosto de 2020 - 15:17 • Atualizada em 29 de fevereiro de 2024 - 16:38

Publicada originalmente em 22 de abril de 2018 

Carla*, 22 anos, está longe de parecer ter a idade que tem. Seu maior hobby é desenhar e distribuir suas obras de arte para os familiares. Ama histórias em quadrinhos, mesmo sem saber ler muito bem – só cursou até o 4º ano do Ensino Fundamental. Outra paixão, desde pequena, é brincar de futebol com os meninos na rua. Carla nunca teve um namorado e sofre bulliyng diariamente pelo seu jeito de ser. Ela tem disritmia cerebral, patologia capaz de alterar a consciência e a conduta dos pacientes. O mesmo transtorno da mãe.  “O corpo é de mulher, mas a mente é de uma criança de 12 anos”, relata Fátima*, 59 anos, tia de Carla. Carla foi estuprada pelo pai, engravidou e recorreu ao aborto legal. Ela não gosta de falar no assunto, chora. Mas Fátima dá voz ao sofrimento da sobrinha, com um depoimento ao #Colabora. Ela possui a curatela de mãe e filha: encargo conferido pela Justiça a uma pessoa para que ela cuide dos interesses de outra considerada incapaz de reger os atos da vida civil.

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O pai fazia ameaças constantes. Dizia que ia matar as duas, ela e a mãe. Cresceu vendo a mãe sendo espancada pelo pai, então tinha muito medo do que podia acontecer

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Os pais de Carla se separaram há 7 anos e, desde então, ela passou a morar somente com a mãe, que vive de uma pensão deixada pelo pai, ex-policial, na Baixada Fluminense. Em meados de setembro de 2017, a moça pediu para fazer uma visita à casa da avó paterna, onde o pai também morava, em uma cidade próxima. Uma tia havia chegado de longe e ela queria vê-la. Pai e filha dormiram no mesmo quarto. Naquela noite, o homem que devia protegê-la a violentou. E o pesadelo estava longe de acabar. Semanas depois, a jovem descobriu que estava grávida. “Para a família, foi um choque. Estramos em pânico, ainda mais sabendo das circunstâncias em que tudo aconteceu”, conta a tia, indignada.

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A gente não conhecia. Nunca nem tinha ouvido falar em aborto legal. Esse tipo de informação ainda é muito pouco divulgado. Por isso, acho que meu relato é importante. Pode servir para esclarecer a muitas meninas que passam pela mesma situação

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A descoberta da gravidez fez  com que Carla revelasse aos familiares que aquela não tinha sido a primeira vez que o pai a violentava. O primeiro abuso? Aconteceu quando ela tinha apenas 13 anos. Amedrontada, a menina se calou por 9 anos. “Ela contou que o pai fazia ameaças constantes. Dizia que ia matar as duas, a mãe e ela. Cresceu vendo a mãe sendo espancada pelo pai, então tinha muito medo do que podia acontecer diz Fátima. Carla entrara para uma triste estatística: de acordo com pesquisa do Ministério da Saúde, mais de 32 mil meninas entre 10 e 14 anos foram estupradas no país, entre 2011 e 1016 – em 43% dos casos, o estupro foi cometido por uma familiar ou parceiro íntimo.

A irmã de Carla, atualmente com 24 anos, aproveitou o momento para revelar que o pai também já tinha tentado violentá-la. No caso de Carla, imediatamente, a família procurou um hospital, e em seguida, prestou queixa na delegacia. Até o dia do depoimento de Fátima ao #Colabora, o autor do crime continuava livre.

Ainda há muita desinformação sobre o o direito ao aborto. Foto: Sebastian Kahnert
Ainda há muita desinformação sobre o direito ao aborto legal. Foto: Sebastian Kahnert / ZB / DPA

Quando estava prestes a completar a 20ª semana de gestação – depois da realização de exames e idas e vindas a hospitais – Carla foi informada por médicos sobre a possibilidade de fazer o aborto legal. “A gente não conhecia. Nunca nem tinha ouvido falar. Esse tipo de informação ainda é muito pouco divulgado. Por isso, acho que meu relato é importante. Pode servir para esclarecer a muitas meninas que passam pela mesma situação”, explica Fátima.

No Brasil, o aborto é permitido por lei em três situações: quando a gravidez coloca em risco a vida da mulher; quando a gestação é resultado de estupro e, desde 2012, em caso de gravidez de feto anencéfalo.

Carla foi encaminhada para o Hospital Maternidade Fernando Magalhães, na Zona Norte do Rio, onde o procedimento foi feito, em fevereiro deste ano. A instituição é a pioneira na realização do aborto legal na capital fluminense. Embora a Secretaria de Saúde  afirme que todas as maternidades municipais estão aptas para esse tipo de atendimento, o Fernando Magalhães continua sendo responsável pela maioria dos abortos legais na cidade. No primeiro semestre de 2017, foram realizados 51 desses procedimentos no Rio,  26 deles decorrentes de violência sexual.

Carla ficou dois dias no hospital; tudo ocorreu bem. Atualmente, ela segue com a rotina de exames, tratamento psicológico e contra a sífilis, doença sexualmente transmissível que contraiu com o estupro. Está sempre acompanhada pela tia Fátima, que é viúva, aposentada, tem cinco filhos – todos casados, ela faz questão de frisar e comemorar – e 15 netos.  Ela conta que adora a casa que com tanto esforço construiu. Foram anos trabalhando como cozinheira. Mas quer se mudar. Mora no mesmo bairro do autor do estupro da sobrinha.

Carla, apesar de tudo, continua fazendo seus desenhos e jogando bola na rua, mas não gosta de tocar no passado, fica chorosa. A tia conta que ela tem medo de tudo. Apesar da indignação, Fátima se diz aliviada com a interrupção legal da gestação. “Ela não teria condições de criar uma criança. Se fosse um filho gerado em outras circunstâncias, tudo bem, eu pegaria a responsabilidade, ajudaria. Mas nessa situação? Do próprio pai? Foi a melhor saída para mim e para todos da família”.

*Os nomes usados nesta reportagem são fictícios

Yuri Alves Fernandes

Jornalista e roteirista do #Colabora especializado em pautas sobre Diversidade. Autor da série “LGBT+60: Corpos que Resistem”, vencedora do Prêmio Longevidade Bradesco e do Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+. Fez parte da equipe ganhadora do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, com a série “Sem direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. É coordenador de jornalismo do Canal Reload e diretor do podcast "DáUmReload", da Amazon Music. Já passou pelas redações do EGO, Bom Dia Brasil e do Fantástico. Por meio da comunicação humanizada, busca ecoar vozes de minorias sociais, sobretudo, da comunidade LGBT+.

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Um comentário em “Filhos da dor: aborto legal após engravidar do próprio pai

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