Quando a fome aperta, sempre na segunda quinzena do mês, é na Sementeira Esperança que Maria José da Silva, de 34 anos, e os quatro filhos de 7, 12, 14 e 16 anos, encontram uma refeição farta, com uma grande variedade de verduras e legumes. “Às vezes, eu tô sem nada em casa e corro para a horta. Lá tem café da manhã e é um espaço para ocupar a mente”, detalha a agricultora urbana.
A Sementeira é uma horta urbana agroecológica, ou seja, cultiva os alimentos com práticas ambientalmente sustentáveis. Às terças e quintas, Maria, junto com outras dez mulheres da comunidade, se reúnem para cultivar os alimentos e preparar refeições com os ingredientes que saem direto da terra para a panela.
Maria José da Silva, mora na Ocupação 15 de Novembro, no município de Paulista, Região Metropolitana do Recife. Toda a sua renda é de 800 reais do Bolsa Família. O companheiro, embora trabalhe, não pode ajudar em casa porque está comprometido com o pagamento das despesas com a construção da pequena casa onde a família mora.
Já que a renda é pouca, Maria compra só o básico. “Fubá, arroz, macarrão, feijão, salsicha, hambúrguer, ovo e só dá pra uns 15 dias”, detalha. No supermercado, não é difícil escolher o que levar para casa. As verduras e legumes ficam para trás e os enlatados e embutidos têm preferência. Tudo porque o primeiro grupo de alimentos, o dos ultraprocessados, custa mais barato do que o segundo, o das frutas e verduras.
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Veja o que já enviamosCom isso, tem alimentos que Maria e os filhos só consomem na Sementeira Esperança. “Lá tem berinjela refogada, frango, couve, coentro maranhão [variedade de coentro com folhas compridas e talos mais grossos], bolo de cenoura e de capim santo”, informa.
Às vezes, parte da produção que sobra após o consumo, é vendida, gerando renda que apoia as mulheres e o projeto. “A gente vende na faculdade de Paulista, em feiras de Olinda [municípios da Região Metropolitana do Recife] e Recife e divide o lucro para nós e a outra parte, guardamos no caixa”, pontua. Ao lado de Maria, outras dez mulheres negras, com até quatro filhos e idade entre 20 e 68 anos, desempregadas e que contam apenas com programas de transferência de renda comandam a Sementeira.
Ao envolver esse público, o projeto põe o dedo direto na ferida. É que de acordo com o 2º inquérito Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan) mulheres negras, chefes de família, e com filhos com idade até dez anos, são mais impactadas pela fome.
Neste caso, a iniciativa de doação de alimentos se mostra eficiente porque essas mulheres estão longe de conseguirem ter renda para comprar alimentos suficiente para alimentar toda a família. Comprar comida e agroecológica ou orgânica, então, seria ainda mais difícil. Em um supermercado que vende no atacado, em Recife, um pacote de macarrão instantâneo, o famoso miojo, custa R$ 2,35. Enquanto isso, um quilo de tomate orgânico custa R$ 13,45. Não é difícil saber qual será a escolha destas mulheres.
Quem tem fome tem pressa, por isso, além de ações estruturantes, que proporcionem acesso à renda adequada, a doação de refeições e cestas básicas atendem a barriga que ronca agora e não a longo prazo. “A Sementeira Esperança é um lugar de acolher essas mulheres tão sofridas, invisibilizadas e violentadas pelo Estado e pelo capitalismo”, explica a articuladora da Sementeira e integrante da Marcha Mundial das Mulheres, Solange Samico
A ação é organizada pela Marcha Mundial das Mulheres com o apoio da Fundação Casa, Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), Casa da Mulher do Nordeste, Centro Sabiá e Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Outra quebrada alimentada
A mais de 2.600km, em outro ponto do Brasil, o Projeto Quebrada Alimentada promove acesso à alimentos agroecológicos e orgânicos para mulheres com crianças e idosos, na Vila Medeiros, comunidade do extremo norte da capital paulista. As ofertas das refeições e cestas básicas não são realizadas de forma aleatória. As pessoas passam por uma triagem da Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro.
A nutricionista e a assistente social da UBS identificam pessoas com necessidade de reforço alimentar e encaminham para o projeto. “A gente sabe que essa iniciativa não vai resolver todo o problema, pois a fome demanda políticas estruturais, mas enquanto isso não acontece, essas pessoas precisam comer”, explica Adriana Salay, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, que pesquisa sobre a fome, e vice-presidente do Quebrada Alimentada, .
O projeto é mantido com doações físicas dos cidadãos que contribuem com uma caixa solidária, chefes de cozinha, de empresas do ramo de alimento e ONGs. As refeições frescas são produzidas junto com o cardápio da família, nome dado aos colaboradores do restaurante Mocotó, uma casa de comida nordestina tocada pelo chef Rodrigo Oliveira, que também está à frente do Quebrada Alimentada.
O cardápio é diverso. Leva vegetais, legumes orgânicos, diversas variedades de proteína, comenta Adriana. “A gente [no restaurante] tem política para evitar desperdício, mas as refeições doadas são preparadas junto com as refeições dos colaboradores. O nosso lema é ‘a gente divide o que tem e não o que sobra’, enfatiza Salay.
Já as cestas básicas são compostas de alimento não perecível e de comida in natura agroecológica da agricultura familiar, comprados diretamente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “Dessa forma, nós conseguimos fomentar o campo [a agricultura familiar no campo] e contribuir para combater a fome também entre quem vive no meio rural”, observa a historiadora.
Ao longo de três anos e meio, já foram distribuídas mais de 100 mil refeições e 10 mil cestas básicas. Ao longo desse tempo, o projeto foi passando por mudanças para atender às especificidades do público. “Com o tempo, percebemos que idosos preferem as refeições prontas. Já as mulheres, ficaram com as cestas básicas, pois não precisam ir ao restaurante todo dia, ficar na fila esperando, muitas vezes com criança”, esclarece.
Adriana revela que o público atendido é de baixa renda ou de renda irregular. Populações de rua não são atendidas, pois estas se concentram mais próximo do centro da cidade. Embora a cesta não garanta toda a necessidade da família, permite que a mulher possa economizar dinheiro para custear outras despesas da casa, tais como comprar o gás, um produto de higiene. “Por isso, uma das nossas preocupações é a regularidade, entregar todo mês essa cesta, entregar todos os dias essa marmita. Queremos ser um ponto de referência de solidariedade no bairro”, conclui Adriana.