Um café pelos sem-teto

George Clooney faz selfie com funcionários da cafeteria

Herdeiro escocês cria o Social Bite para alimentar e empregar necessitados, com apoio de George Clooney

Por Carla Lencastre | ODS 1ODS 17 • Publicada em 3 de maio de 2016 - 08:00 • Atualizada em 3 de maio de 2016 - 11:20

George Clooney faz selfie com funcionários da cafeteria
Uma das lojas do Social Bite: os sem-teto são bem-vindos como clientes ou funcionários
A primeira loja do Social Bite, em Edimburgo: os sem-teto são bem-vindos como clientes ou funcionários

Um jovem herdeiro procurando um negócio próprio que desse sentido à sua vida. Um chef estrelado em busca de novas experiências gastronômicas. Um famoso ator de Hollywood de olho em promoção para suas causas sociais. Desabrigados vagando pelas ruas de Edimburgo. Refugiados se amontoando em um campo na fronteira entre Sérvia e Croácia. Todos estes personagens fazem parte de uma mesma história. E ela não é de ficção.

O cenário

O denominador comum chama-se Social Bite, uma pequena rede de lojas de café, sanduíches e refeições leves na Escócia. É um negócio social que doa todo o seu lucro para instituições de caridade, com o lema “Good food for a good cause” (“Boa comida para uma boa causa”, em tradução livre). Um em cada quatro funcionários é um ex-sem-teto. Se um atual morador de rua chegar pedindo comida de graça, ele será atendido. E um emprego também vai ser oferecido, ainda que nem sempre seja aceito. Mas se a resposta for sim, o Social Bite ajuda a encontrar uma moradia e a conseguir a documentação necessária a uma vida formal.

O jovem herdeiro

Josh Littlejohn, o dono do Social Bite, na viagem para alimentar refugiados

O economista Josh Littlejohn, de 29 anos, criou o Social Bite junto com a namorada, Alice Thompson, em 2011. O casal se inspirou na missão social de Muhammad Yunus, economista e banqueiro de Bangladesh que ganhou o Nobel da Paz em 2006. O milionário pai de Josh, Simon Littlejohn, empresário escocês do ramo de restaurantes, não achou graça na ideia de negócio social do filho e não o apoiou. Mas Josh já tinha uma bem-sucedida empresa de eventos. Vendou a companhia e o apartamento onde morava em um bairro chique de Edimburgo e abriu a primeira loja do Social Bite (atualmente são cinco, com planos de expansão).

Hoje Josh já recuperou o investimento inicial e comprou outro apartamento, menor e em um bairro mais modesto. O contrato do Social Bite diz que o máximo que ele e Alice podem ganhar por mês é o equivalente a sete vezes o menor salário pago a um empregado da rede. Littlejohn pai passou a frequentar os eventos organizados pelo filho para angariar fundos e até já fez algumas doações. Afinal, na lista de palestrantes das ações promovidas por Littlejohn filho há nomes como Bill Clinton, Bob Geldof e George Clooney. Mas a participação de Clooney nesta história é um pouco maior, logo chegaremos lá. E como Josh Littlejohn convenceu Clinton a ir falar para uma plateia de empresários em Edimburgo, em 2014? “É a economia, estúpido.” Ou melhor, a nova economia. Littlejohn filho entrou em contato com a Clinton Foundation e se comprometeu a arrecadar um mínimo de 210.000 libras (em torno de R$ 1 milhão) para projetos sociais. Missão cumprida.

O chef estrelado

Sanduíches e refeições leves do Social Bite são criados pelo chef Mike Mathieson, que já teve três estrelas Michelin no restaurante do hotel La Côte Saint-Jacques, na Borgonha. Mathieson trabalha como consultor do grupo Chez Roux, do chef francês e lenda da gastronomia Albert Le Roux. Baseados na Grã-Betranha, Albert e seu irmão Michel estão entre os chefs mais importantes do Reino Unido. A dupla estava à frente do Le Gavroche, em Londres, primeira casa inglesa a receber três estrelas Michelin (até hoje nas mãos da família). E o autor dos cardápios do Social Bite está com eles.

Além do Social Bite, Mathieson supervisiona cinco restaurantes do grupo Chez Roux na Escócia. Um deles fica no Cromlix House Hotel. Entre Edimburgo e Glasgow, um pouco mais ao norte, a Cromlix foi comprada pelo tenista escocês Andy Murray, o segundo melhor do mundo pelo ranking da ATP. O restaurante é concorridíssimo, e estava lotado em um domingo à tarde no final do inverno passado. Lá fora nevava, mas o delicioso menu assinado por Mathieson deixava todos confortáveis. Seu cardápio no Social Bite também privilegia produtos frescos e locais e a preparação artesanal. Além de sanduíches, wraps e sopas, há saladas de frutos do mar ou salmão defumado, almôndegas com tempero marroquino e curry tailandês de vegetais.

O ator famoso de Hollywood

George Clooney faz selfie com funcionários da cafeteria

No fim do ano passado, convidado por Josh Littlejohn, o ator George Clooney, que se dedica a várias causas humanitárias, voltou a Edimburgo depois de dez anos. Clooney visitou a loja original do Social Bite, na Rose Street, na área mais comercial e turística da cidade. Causou uma comoção, como pode ser comprovado nos vários vídeos disponíveis no YouTube. Clooney fez tudo o que se esperava dele: apertou mãos, cumprimentou a multidão no frio do lado de fora da loja, posou para fotos, brincou com os funcionários e comeu um wrap de abacate com molho pesto. O ator ainda apareceu no vídeo oficial da campanha de Natal da loja, que pedia uma doação de 5 libras (cerca de R$ 25) para os sem-teto. E está até hoje na foto de capa do Facebook do Social Bite.

“Eu gosto do que eles estão fazendo. A ideia de que podemos ajudar na solução das dificuldades de todos é realmente importante”, diz Clooney em um dos vídeos. O ator é um dos co-fundadores da ONG Not on Our Watch , junto com Brad Pitt e Matt Damon.

Os sem-teto e os refugiados

Na véspera de Natal, o café foi fechado ao público em geral e recebeu só os sem-teto, com comida e presentes

Em 2014, a campanha de Natal do Social Bite havia arrecadado o suficiente para oferecer ao longo de um ano em suas lojas 36 mil refeições para sem-teto em Edimburgo, Glasgow e Aberdeen. Ano passado, a campanha recebeu pela primeira vez doações para refugiados em três campos da Europa (Calais, no norte da França; fronteira servo-croata, e Lesbos, na Grécia). Uma turma do Social Bite partiu de Edimburgo no dia 26 de dezembro do ano passado e viajou durante dez dias. Na fronteira entre Sérvia e Croácia, mostrar uma foto de George Clooney foi fundamental para garantir o acesso ao campo.

“Ainda temos níveis inaceitáveis de falta de moradia e pobreza aqui na nossa porta e somos gratos pelo apoio do público que nos ajuda a fazer a nossa parte. Mas não podemos esquecer as horrendas condições enfrentadas por milhões de homens inocentes, mulheres e crianças de regiões em conflito. Estamos cientes de que a crise dos refugiados é altamente politizada e de que a nossa pequena cadeia de lojas de sanduíche não pode ‘dar uma mordida’ em uma crise continental. Porém não fazer nada não é uma opção”, disse Josh Littlejohn ao jornal escocês “Third Force News”, especializado no terceiro setor, fazendo um trocadilho com o nome Social Bite (Mordida Social, em tradução livre).

A visão de quem mora lá

A brasileira Susana Grillo é jornalista e guia de turismo. Em parceria com o marido escocês criou a empresa Wee Scotia, que oferece tours por todo o país. Em Edimburgo, onde mora, Susana faz deliciosas visitas guiadas pela cidade, repletas de informações e histórias divertidas. Foi ela quem chamou a minha atenção para o Social Bite em meio a um tour histórico e gastronômico pela cidade.

“O projeto é simples, a causa é imensa. Bobo é aquele que não compra o seu sanduíche aqui. O menu foi criado por um chef estrelado e usa produtos locais, frescos e saudáveis. Se esta não é uma receita de sucesso, deveríamos começar a rever os nossos conceitos”, diz Susana. “Há infinitas razões que podem levar alguém a ficar sem um lar. Muitas são as instituições e projetos que lutam para dar apoio e erradicar o problema dos sem-teto aqui na Escócia. Por exemplo, há uma pequena horta de ervas e plantas aromáticas cultivadas pelos sem-teto em um canto do cemitério de Greyfriars. Se você realmente quiser reconstruir a sua vida, você reconstrói. Mas claro que há casos onde há outros problemas em jogo: de saúde, mentais, criminais etc. Há quem não se adapte ao que lhe foi oferecido e acabe voltando para a rua”.

Onde tudo começou

Um dos cartazes na vitrine do café da Rose Street, em Edimburgo

Na vitrine da primeira das duas lojas do Social Bite de Edimburgo, a do número 131 da Rose Street, encravada em uma parede de pedra, há brincadeiras com as grandes redes de cafeterias. Um cartaz anuncia um “Savebucks”, em um trocadilho com o maior grupo de cafeterias do mundo, a americana Starbucks. No Social Bite um café artesanal, com grãos comprados direto do produtor, custa 1,50 libra (cerca de R$ 7,50). O mesmo cartaz diz que o preço “It won’t ‘Costa’ fortune” (“Não vai ‘Costa’ uma fortuna”), em trocadilho com a segunda maior rede do mundo, a britânica Costa Coffee. Nos arredores do Social Bite, há pelo menos dois Starbucks e dois Costa. E há também lojas da rede britânica de sanduíches Pret a Manger.

A Rose Street fica entre a Princess e a George, duas das mais movimentadas ruas da cidade, repletas de comércio e turistas. No verão, há mesinhas do lado de fora para comer apreciando o movimento. Abre de segunda a sexta-feira, das 7h às 15h e tem certificado de excelência do site de resenhas Tripadvisor. A primeira loja de Glasgow chegou há dois anos. Hoje são dois endereços, ambos nos arredores da estação de trem. Um deles está a cinco minutos da bonita George Square, a principal praça da cidade. A mais nova em Aberdeen, ao norte de Edimburgo, abriu há menos de um ano.

O que vem por aí

Josh Littlejohn anunciou que vai ampliar sua rede de lojas na Escócia, e a próxima será em Dundee, entre Edimburgo e Aberdeen. Ele também pretende transformar vinho em água. A ideia é abrir uma loja de vinhos, a Drinking Well. Uma parte dos lucros será doada para projetos africanos que procuram minimizar o problema de falta de água potável no continente. Outra parte irá para os Alcoólicos Anônimos.

Carla Lencastre

Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou por mais de 25 anos na redação do jornal O Globo nas áreas de Comportamento, Cultura, Educação e Turismo. Editou a revista e o site Boa Viagem O Globo por mais de uma década. Anda pelo Brasil e pelo mundo em busca de boas histórias desde sempre. Especializada em Turismo, tem vários prêmios no setor e é colunista do portal Panrotas. Desde 2015 escreve como freelance para diversas publicações, entre elas o #Colabora e O Globo. É carioca e gosta de dias nublados. Ama viajar. Está no Instagram em @CarlaLencastre 

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2 comentários “Um café pelos sem-teto

  1. Rosa Maria Abreu Carvalho Dias disse:

    Adorei esta matéria. Achei um bom exemplo de resposta a este meu questionamento : como ser útil , ajudar a você mesmo/a aos outros e ainda ter o prazer da descoberta, alimentar sua curiosidade, o que é tao saudável para o cérebro?!

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