Carta de empresários, economistas e banqueiros é importante, mas insuficiente

Dá para fazer muito mais. Não sairemos em silêncio dessa tragédia que abandona o país à própria sorte. É hora de transformar discurso em ação

Por Flávia Oliveira | ODS 17ODS 3 • Publicada em 22 de março de 2021 - 18:16 • Atualizada em 30 de março de 2021 - 11:49

Fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo: fechamento por causa da pandemia. Reprodução

A carta dos economistas, banqueiros e empresários, que Merval Pereira antecipou no “Globo” de domingo e já conta com mais de 500 assinaturas, é alerta importante, não só ao presidente Jair Bolsonaro e ao ministro Paulo Guedes, mas também ao empresariado que, sabendo da gravidade da crise sanitária, silencia. Os signatários – ex-ministros Pedro Malan, Mailson da Nóbrega e Pedro Parente; o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga; banqueiros Pedro Moreira Salles e Roberto Setubal; economistas Elena Landau, Monica De Bolle e Laura Carvalho, entre outros – se articularam como pessoas físicas, mas corporações e marcas por trás de muitos deles deveriam também se manifestar. Com atos, além de palavras.

Há instituições de ensino, bancos, gestoras de recursos, grandes exportadoras às quais esses profissionais estão ligados. O exemplo da Volkswagen – que, em acordo com sindicatos de trabalhadores, decidiu suspender a produção e evitar o deslocamento de seus 15 mil funcionários – mostra que é possível ir além. A montadora, marca emblemática do setor, deveria servir como farol para seus pares, e atraí-los para iniciativas semelhantes.

Hoje, foi a vez de a Ambev anunciar a conversão de uma cervejaria em unidade de envasamento de cilindros de oxigênio para São Paulo, onde o total de internações bate recorde. No início do ano, assistimos com perplexidade à morte de brasileiros em Manaus por asfixia, em razão do desabastecimento. Ali, a logística de distribuição enfrentava o desafio da longas distâncias, percorridas em balsas. De Belém a Manaus, de onde partiram cilindros, são sete dias de deslocamento fluvial.

São Paulo é o estado mais rico do país, tem a capital mais estruturada. Ainda assim, não passa incólume pelo salto na demanda por oxigênio por pacientes de covid-19. As novas cepas do coronavírus que têm transmissão mais veloz e, por alcançar a população mais jovem, resultam em temporadas mais longas em hospitais e um consumo individual maior de oxigênio.

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A White Martins, principal fornecedora, quantificou a mudança. Desde a virada do ano, o consumo de oxigênio líquido por hospitais públicos e privados do estado de São Paulo saiu de 151 mil para 313 mil metros cúbicos diários. A demanda em dobro levou ao aumento de 51% na frequência de viagens de entrega. Na capital, foram 63% mais viagens para dar conta de necessidades diárias ampliadas de 75 mil para 166 mil metros cúbicos. Pelo agravamento da pandemia, a empresa informou que está com todas as unidades de produção do Brasil trabalhando 24 horas por dia, sete dias por semana.

O presidente da República já deu sinais suficientes de que não vai decretar ou apoiar lockdown. Pelo contrário, segue atacando governadores e prefeitos que, com o sistema de saúde em colapso, recorrem a medidas restritivas. Avança no radicalismo, faz ameaças, usa o Exército para intimidar Legislativo, Judiciário, opositores. Não perde uma oportunidade de se aglomerar. Domingo, festejou aniversário e entregou fatia de bolo a admiradores reunidos em frente à residência oficial. Cantaram parabéns sem se importar com os quase 30 óbitos por covid-19 registados nas 24 horas anteriores no Distrito Federal.

Governadores, prefeitos, ministros do Supremo Tribunal Federal, presidentes da Câmara (Arthur Lira) e do Senado (Rodrigo Pacheco), em maior ou menor intensidade, têm se articulado para combater a pandemia. Grandes empresas e instituições podem mostrar que têm responsabilidade social apoiando (ou se antecipando) às lideranças locais, tornados protagonistas, ante o desgoverno federal. Parar, como fará a Volks a partir desta quarta, é uma alternativa. Mas também é possível retomar/ampliar teletrabalho, estabelecer rodízios entre equipes para minimizar deslocamentos nas cidades.

É possível manter trabalhadores domésticos e dos condomínios que os servem em casa, com remuneração. É possível aderir às iniciativas de doação de recursos para campanhas humanitárias que mantenham os mais pobres alimentados durante o isolamento. Isso foi feito no ano passado, nos meses iniciais da pandemia. Precisa ser retomado agora, quando a situação é ainda mais grave.

O empresariado comprometido com as recomendações da ciência, sensíveis ao sofrimento do povo – tal como organizações sociais, associações comunitárias, universidades, líderes religiosos -, precisa se mobilizar pelo isolamento social, pela distribuição e uso de máscaras eficientes, pela reposição de medicamentos e insumos nos hospitais, pela vacinação urgente, urgentíssima.

O Brasil virou o país das cartas de alerta e repúdio. Desde 2019, lemos apelos de ex-ministros de Meio Ambiente, Saúde, Educação, Ciência e Tecnologia, Relações Exteriores, Cultura, Fazenda, ex-presidentes do Banco Central, do IBGE. Documentos que carregam simbolismo, mas não são suficientes para a gravidade do que estamos atravessando, um país lançado à própria sorte, em colapso hospitalar e funerário, sem vacinas em quantidade suficiente, com a miséria galopante.

Não sairemos dessa tragédia em silêncio. É hora de transformar discurso em ação.

Flávia Oliveira

Flávia Oliveira é jornalista. Especializou-se na cobertura de economia e indicadores sociais. É colunista do jornal O Globo e comentarista no canal GloboNews. É membro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro.

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