Verão do Apartheid: Deize, negra, mãe, bacharel em Direito e vítima em dobro da violência

Há 17 anos, carioca luta por justiça após perder um filho, num caso de brutalidade que envolve agentes do Degase. E agora o outro sofre com a truculência da Operação Verão

Por Ana Carolina Ferreira | ODS 16 • Publicada em 14 de março de 2024 - 06:16 • Atualizada em 19 de março de 2024 - 13:12

Deize (à direita): ativista que luta por justiça na morte de filhos vítimas da violência. Acervo pessoal

Desde setembro do último ano, a Operação Verão do Rio de Janeiro apreende jovens negros e periféricos sem flagrante de delito ou mandado judicial. Richard Douglas, de 21 anos, foi um deles; voltava do trabalho e pretendia curtir um dia de praia em Copacabana no dia 5 de dezembro do ano passado, quando foi impedido por agentes da segurança pública no transporte e levado para a delegacia.

No mesmo dia, Deize Carvalho, mãe de Richard, estava em encontro de especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU), no Centro do Rio. O evento debatia o uso da força pelo Estado contra a população negra, além de observar o alinhamento da Justiça com as normas internacionais de direitos humanos. Ela estava lá como vítima da violência policial. Naquele momento, o que menos esperava é que, após discursar sobre sua história e as injustiças que já viveu, receberia ligação informando que seu filho estava na delegacia, levado por policiais. 

Enquanto corria para acudir Richard, revisitava sentimento de revolta e injustiça: Deize perdeu um filho de maneira brutal, por ação de agentes públicos. Andreu Luiz, na virada de 2008, foi torturado e assassinado enquanto estava detido no sistema socioeducativo. 

Não acontece apenas em sua família: pessoas negras são 63% das abordadas pela polícia na cidade do Rio, e 74% dos que tiveram um parente ou amigo morto pela polícia. Os dados são da pesquisa “Negro Trauma” de 2022 do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, com levantamento do Datafolha.

Deize vê em seus filhos a materialização das duas estatísticas. Mulher negra, mãe, formada em Direito e vítima da violência policial, teve história desde a infância marcada por dificuldades, negligências e desamparo do Estado. Apesar de tudo, luta e exige justiça por Andreu, Richard e todos os filhos e mães que sofrem pelas violações de seus direitos. 

Com a família, na foto da formatura: bacharel em Direito para lutar contra violência. Acervo pessoal
Com a família, na foto da formatura: bacharel em Direito para lutar contra violência. Acervo pessoal

Uma história de sobrevivência, luta e esperança

Deize nasceu em 18 de fevereiro de 1971, no conjunto de favelas Cantagalo-Pavão-Pavãozinho. Teve infância difícil e, como mais velha de oito irmãos, tornou-se responsável precocemente pela casa. Numa realidade marcada pela pobreza e o desemprego dos pais, saía junto dos irmãos e a avó para o mercado mais próximo e recolhiam o que sobrava. “O que era considerado lixo para sociedade, era nosso alimento do dia a dia”, conta. 

Sem brinquedos e brincadeiras para lembrar, o que mais guardou da infância foram as cicatrizes das violências. A relação com a avó era mais próxima, porque a mãe trabalhava fora como empregada doméstica. O cotidiano com o pai era conturbado, já que, quando ele bebia, a mãe sofria agressões.

Na escola, sempre se manteve focada. Desde nova, tinha certeza de que o caminho da educação poderia abrir portas. Papel de pão e a borracha de conta-gotas dos remédios faziam parte do material escolar. “Sempre gostei de estudar, tinha o desejo de ser juíza, advogada. Uma adolescente cheia de sonhos que estava ali apesar das dificuldades. Sentia que devia fazer algo em relação à violência contra a mulher, porque não era só minha mãe; as vizinhas do bairro também apanhavam de seus companheiros, e nunca achei isso certo”, lembra. 

Mas Deize não conseguiu concluir o Ensino Médio, Aos 20 anos, teve que pausar os estudos para cuidar do primeiro filho, Andreu. Como mãe solteira e sem rede de apoio, fez o possível, mas aos 12 anos, Andreu revelou o desejo de conhecer o pai, que mora nos Estados Unidos e não tinha contato desde que o menino tinha 3 anos. “Essa necessidade acabou desviando o foco dele dos estudos, começou a andar com pessoas que diziam que ele só conseguiria conhecer o pai se juntasse dinheiro furtando”, explica ela.

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A partir da primeira infração, Andreu ficou marcado. “A direção da escola falou que não queria ‘marginal’ com outros alunos, mas independentemente de ele ter cometido o ato infracional, era um direito frequentar o colégio e ter acesso à educação”. A rejeição desenvolveu no menino o constrangimento pela rejeição. Deize queria ajudar seu filho, mas faltavam recursos e conhecimento sobre direitos. Tentou escolas, assistência social, atendimento psicológico, advogados, todos em serviços públicos, mas não encontrou o amparo necessário.

Sonho de Andreu se torna pesadelo

Andreu continuou cometendo infrações e sendo encaminhado para centros socioeducativos durante a adolescência. Mas no fim de 2007, a vida parecia mudar. Acabara de conseguir emprego como garçom e tinha o noivado marcado para os primeiros dias daquele ano. Na véspera da virada foi tomar um banho de mar no Arpoador, mas na saída foi levado por agentes policiais, acusado de ter roubado um turista. Dias depois, outro rapaz foi preso e confessou o crime.

No réveillon daquele ano, saiu sem vida do Centro de Triagem e Recepção (CTR), do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), responsável pela recuperação de jovens em conflito com a lei, na Ilha do Governador. Agentes do local, que já o conheciam de passagens anteriores, o submeteram a torturas por uma hora. Andreu chegou sem vida ao hospital, com traumatismo craniano e perfurações espalhadas pelo corpo.

Segundo Deize, não foi a primeira violência no sistema. “Houve muitas violações no centro socioeducativo até 2008, nas outras três passagens do Andreu. Vi meninos com os tímpanos estourados, e encontrei meu filho num calor de 40 graus usando moletom para esconder hematomas de agressões dos agentes. Certa vez, apanhou por não aceitar fazer sexo oral num deles. Por que outras mães têm medo de denunciar o que realmente acontece? Por medo de seus filhos serem mortos. Até hoje eles usam o que aconteceu com Andreu como ameaça aos outros jovens”.

Em visitas no centro socioeducativo, o garoto começou a incentivar a mãe sobre seu desejo de infância de estudar. “Mãe, por que você não estuda Direito para ajudar a mim e aos outros meninos aqui?” Ele não pôde presenciar, mas Deize ingressou na faculdade em 2014.

Busca por justiça há quase 20 anos

Voz ativa contra violência: Deize não se cala. Reprodução

Levou três anos até Deize conseguir a exumação do corpo do filho. “Já não tinha mais tecido para comprovar as perfurações no corpo, mas ficou evidente, nos restos mortais, o traumatismo craniano, costela quebrada, pescoço e mandíbula deslocadas. Fui em busca da prova do hospital que socorreu meu filho, e o médico concluiu que a causa da morte foi agressão física. Só com isso foram injetando as provas no processo, mas se eu não tivesse corrido atrás, não daria em nada”, relata.

Deize se muniu de conhecimento para enfrentar a jornada árdua por justiça pelo crime brutal dos seis agentes do Degase. Em 2009, formou o Núcleo de Mães Vítimas de Violência, mobilizando essas mães para se organizarem coletivamente e realizarem ações como protesto, oficinas e palestras na pauta. Atualmente, é bacharel em Direito pela Cândido Mendes. 

Entretanto, mesmo depois da formação em 2021, de buscar aparatos jurídicos e apoio popular a partir de movimentos nas ruas, os responsáveis pela morte de Andreu, até hoje, não foram julgados. Em 2011, o Ministério Público denunciou por homicídio doloso — quando há intenção de matar —  os agentes Flávio Renato Alves da Silva Costa, Dorival Correia Teles, Wilson Santos, Walace Crespo Rodrigues, Marcos Cesar dos Santos Cotilha e Arthur Vicente Filho. Entretanto, segundo Deize, os julgamentos são constantemente adiados, e os agentes seguem trabalhando como socioeducadores. 

Deize busca justiça contando sua história e denunciando barbáries que acontecem com pessoas negras, pobres e periféricas no Rio de Janeiro. Foi o que fez no encontro da ONU, no Centro do Rio, dia 5 de dezembro do ano passado. Mães, familiares e vítimas da violência policial estavam presentes para contar a realidade em que vivem para a comunidade internacional, assim como Deize. Só não imaginava que, logo após narrar sua história às autoridades internacionais, reviveria o trauma com seu outro filho, Richard Douglas.

“O próprio Estado empurra a juventude negra para a marginalidade. O sistema que oprime o Richard hoje foi o mesmo que fez isso com Andreu no passado. Para mantê-los cativos nos calabouços dos navios negreiros que são as instituições de sistemas socioeducativos. São sempre filhos de mulheres pretas, oriundas da favela”, atesta ela, que identifica um ciclo vicioso de violência. 

É com o semblante cansado que Deize conta sobre o passado e suas cicatrizes. Vive em busca de respostas numa maratona sem linha de chegada. Teve crise de pânico ao saber que outro filho sofre as mesmas violências por ser preto. Ainda assim, Deize consegue encontrar forças. “Parece que a justiça corre como areia nas nossas mãos, escorrega o tempo todo. Perdi um filho, mas não minha vontade de lutar. Por ele e pelos demais que sofrem as mesmas violações”.

Ana Carolina Ferreira

Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.

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