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Dias Ferreira: 11 negros e muitos privilégios

Noite festiva em rua do Leblon retrata uma sociedade onde o consumo se tornou uma espécie de barômetro da inclusão

ODS 10 • Publicada em 26 de setembro de 2025 - 09:37 • Atualizada em 26 de setembro de 2025 - 11:19

Uma sexta-feira à noite na Dias Ferreira, rua da badalação no Leblon, parte mais rica da Zona Sul do Rio de Janeiro. O ar pesado de perfume e promessas de festa. Um menino, de uns cinco anos, ao lado da mãe, com uma biscoito champanhe nas mãos.. Eles e mais umas nove pessoas. Onze pessoas negras, no máximo. Um número que a gente tenta engolir, mas que se recusa a descer. 

Toda a rua, do começo ao fim, é um mar de rostos brancos. Uma celebração monocromática. Eles riem, brindam, conversam em voz alta, comem, tiram fotos. São corpos que se parecem, que se cumprimentam, que se reconhecem. A rua parece um espelho. Um espelho que só reflete um tipo de gente. E eu me pergunto: será que eles não se questionam? Não estranham essa paisagem? Não sentem falta de uma diversidade, de um Brasil real? A gente se acostuma com o que é familiar, com o que nos é confortável. Mas, quando o conforto se torna a norma, a falta do outro se torna invisível. E a ausência de pessoas negras na Dias Ferreira, seja no consumo, seja na ocupação dos espaços, se tornou invisível. Uma ausência tão presente que a gente já nem a enxerga.

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A gente fala tanto em tráfego e trânsito, em lentidão e congestionamento, mas não pensamos no fluxo de pessoas. Pessoas que poderiam estar ali, usufruindo da beleza da rua, da gastronomia, da noite carioca. Pessoas que poderiam estar gerando consumo, mas que, por uma série de fatores, não se veem, ou não são vistas, ali.

Calçada e asfalto tomados na noite da Dias Ferreira: retrato dos privilégios no consumo e no lazer (Foto: Reprodução / Facebook)

O consumo se tornou uma espécie de barômetro da inclusão. Consumir, em nossa sociedade, é exercer uma forma de poder. É dizer “eu posso, eu estou aqui”. E a ausência de negros nesse cenário de consumo de alta classe não é acidental. É o retrato de um Brasil que ainda insiste em limitar a existência de uns em detrimento de outros. É o reflexo da nossa desigualdade social, que separa as pessoas por classe, cor e CEP.

Precisamos mudar a visão. A rua é de todos. Os espaços de consumo, também. E não podemos limitar a existência das pessoas com base em uma visão seletiva e excludente. O trânsito da Dias Ferreira precisa de mais fluxos de pessoas. E isso só vai acontecer quando o consumo deixar de ser um privilégio e se tornar um direito de todos. Inclusive, e principalmente, dos corpos negros que a nossa sociedade insiste em deixar à margem.

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O que fazer, então? Talvez a revolução tenha que começar na Dias Ferreira. E não estou brincando. Porque se a gente conseguir ocupar esse espaço, com nossas cores, nossas vozes, nossa alegria e nosso dinheiro (afinal, nós também temos), a gente consegue começar a mudar a paisagem do Leblon e da Zona Sul. A gente pode fazer com que o consumo e o lazer deixem de ser um privilégio de brancos. É um começo. A ocupação dos espaços, a apropriação dos lugares que sempre nos foram negados, é um ato político. É um ato de resistência. É um ato de amor próprio.

E aqui me lembro das Camélias do Quilombo do Leblon. Um grupo de mulheres negras, que usavam a flor branca como símbolo de resistência na luta pela abolição da escravidão, um século e meio atrás. Elas caminhavam pelo Leblon e pela Zona Sul para provar que a vida negra existia, que a luta negra era real, que a nossa presença era necessária. E é a isso que me refiro. A nossa presença na Dias Ferreira, em Ipanema, no Baixo Gávea, na Cobal, em qualquer lugar, não é apenas para consumir ou para passear. É para afirmar que a gente existe. E que a gente merece ocupar todos os espaços. Até aqueles que, até agora, se esforçaram para nos negar.

Ou vai continuar sendo normal passar numa sexta-feira à noite e só ver preto servindo?

Em tempo: neste domingo, 28/09, acontece o “Cinema sobe o Morro”, com apresentação de dança afro, roda de rap, além da tradicional exibição de curtas e distribuição de doces pelo dia de São Cosme e Damião. Na Barreira do Poló, na majestade Mangueira. Vá.

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