Terreiros deveriam voltar ao Centro do Rio, defende Instituto dos Pretos Novos

Fundado em 1886, na Pedra do Sal, o Àsé Òpó Afònjá sofreu perseguição policial e transferiu-se para a Baixada Fluminense por falta de segurança

Por Igor Soares | ODS 16 • Publicada em 26 de dezembro de 2024 - 09:54 • Atualizada em 26 de dezembro de 2024 - 12:11

Mãe Regina Lúcia ao fundo; Ana Carolina, sua filha, ao lado; e Jorge dos Santos, de vermelho: uma história de resistência. Foto Bárbara Rachel

(*) Com cerca de 170 mil adeptos no Brasil, o Candomblé recebeu,  no ano passado, um importante reconhecimento, quando o presidente Lula sancionou uma lei que institui o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas, a ser comemorado em 21 de março. São tempos diferentes daqueles em que viveram os candomblecistas quando, em 1886, decidiram criar, no Centro do Rio de Janeiro, onde hoje é a Pedra do Sal, o Ilé (terreiro) Àsé Òpó Afònjá, que significa “Casa da Força sustentada por Xangô”. Naquele fim do século XIX, os praticantes de Candomblé eram perseguidos, precisavam esconder sua dança e sua reza para não serem atacados.

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Por conta disso, o Ilé Àsé Òpó Afònjá , considerado patrimônio histórico do Rio de Janeiro, buscou um lugar onde os fiéis ficassem menos expostos. Passou por alguns endereços até que, na década de 1940, fixou-se em São João do Meriti, na Baixada Fluminese. A equipe de reportagem do #Colabora esteve lá no mês passado.  Mãe Regina Lúcia do Santos, acompanhada de sua filha de santo e braço direito, Ana Carolina dos Santos, além de Jorge Leandro dos Santos, ogã do ilê e marido da ialorixá, o neto Arthur, e a sobrinha Patrícia Batista se reuniram para contar um pouco da história do Ilê.

Regina Lúcia dos Santos tem 83 anos, e é quem cuida do terreiro desde 1989. Mesmo com algumas questões de saúde, é ela quem conduz as principais atividades do centro religioso. “Mãe” Regina, como é chamada, tornou-se candomblecista há mais de 60 anos.

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A história do terreiro que está sob seus cuidados se cruza com a história do Rio de Janeiro. Hoje o Àsé Òpó Afònjá segue acomodado na casa fundada por Eugênia Ana dos Santos na década de 1940. Nascida na Bahia, Eugênia é uma das lideranças mais importantes da comunidade negro-baiana entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Ela se mudou para o Rio com o objetivo de cuidar de alguns parentes, e foi quando fundou a primeira casa, na Pedra do Sal. Ela própria se encarregou de mudar o endereço a fim de proteger os frequentadores.

Mãe Regina Lúcia tem 83 anos, e é quem cuida do terreiro desde 1989. Foto Bárbara Rachel
Mãe Regina Lúcia tem 83 anos, e é quem cuida do terreiro desde 1989. Foto Bárbara Rachel

Quem conta essa história é Ana Carolina, filha de Regina Lúcia, a terceira pessoa na sucessão para ficar responsável por cantar o candomblé no Ilê Àsé Òpó Afònjá.

“Na Baixada Fluminense, e apenas com o passar do tempo, foi possível praticarmos a nossa religião sem tanto cerceamento. Mesmo assim, sofríamos muita perseguição. O que os mais velhos contam é que precisavam bater o tambor e usar atabaques sem fazer muito barulho, porque nós sofríamos também perseguição da polícia. Mas lembro de um relato sobre uma visita do então presidente Getúlio Vargas, que deu um bori (uma oferenda de comida à Ori, uma divindade da cabeça) aqui na casa”, contou Ana Carolina.

Essa história é esmiuçada no livro “Da Pedra do Sal até Coelho da Rocha”, escrito por Ed Machado, que conta a trajetória da fundadora do Ilê Àsé Òpó Afònjá e revela a relação entre Getulio Vargas e Mãe Aninha. Segundo o autor, Mãe Aninha era guia espiritual de Getúlio. O contato com o presidente se deu por meio de seu “filho de Orixá”, o então chefe da casa civil, Osvaldo Aranha.

As mais velhas da casa ainda têm na memória a imagem do dia em que viu o presidente Getúlio Vargas fazendo sua oferenda numa das salas do terreiro. A presença do então presidente, obviamente, reverberou de forma positiva, explica Ana Carolina:

“A questão da perseguição foi diminuindo significativamente depois da visita dele, mas era tudo muito escondido, justamente por conta da repressão que nós sofríamos. Éramos muito oprimidos, e isso ainda não acabou totalmente, sofremos intolerância religiosa por parte de outras religiões. Mas posso dizer que já conseguimos conquistar nosso lugar ao sol”, frisou Ana Carolina.

Embora não tenha registros de pessoas escravizadas que conseguiam frequentar o terreiro, Ana Carolina diz que pode ter ocorrido: “Pode ter acontecido de eles virem como refugiados e terem se transformado em filhos de santo. Acredito que possa ter acontecido isso”.

Mais segurança

Na casa onde estão acomodados atualmente, Ana Carolina conta cerca de 150 frequentadores. Segundo ela, não existe um momento em que todos participem ao mesmo tempo das práticas, e ressalta que a luta pela liberdade é permanente:

“Não somos vítimas só de outras religiões que não aceitam a nossa doutrina e as diretrizes deixadas pelos ancestrais que cultuamos. Existem ainda pessoas que não entendem e atacam. Ou eja: sim, ainda sofremos intolerância religiosa. Vou dar um exemplo: não podemos sair caracterizados porque somos oprimidos em supermercados, em farmácias”, lamentou ela.

Ao menos não há agressão nas ruas, afirma Ana Carolina, embora aponte que há ataques físicos quando estão em lugares onde as pessoas não estão acostumadas com os trajes que a religião de matriz africana usa:

“Temos ainda um longo caminho a percorrer para poder conseguir a tão sonhada liberdade religiosa de fato e de direito. De direito nós já temos, mas de fato mesmo, está demorando. Hoje temos mais autonomia para poder tocar quando quisermos e na hora que quisermos, não é como antigamente, quando precisávamos esconder os nossos rituais. Hoje em dia a gente já dá andamento aos nossos atos litúrgicos sem que haja alguém batendo na nossa porta exingido silêncio”.

IPN defende a volta do Ilê para o Centro

Diretora do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), criado em 2005 com a missão de pesquisar e preservar o patrimônio material e imaterial africano e afro-brasileiro, Merced Guimarães acredita que as casas de santo de candomblé são importantes para a história do Rio e do Brasil. Mas ela aponta uma falha no processo desse reconhecimento: faltam pesquisas, e os registros históricos dos terreiros deveriam estar organizados como política pública.

“Todos esses terreiros deveriam ter museus. O que eles têm de memória, de trabalho social…há acolhimento, ajudam espiritualmente. Os terreiros são os guardiões das coisas sagradas do outro lado. Com a criação de museus, tornaríamos mais pública a história dos terreiros. Eles poderiam fazer parte do turismo religioso, para que os turistas conheçam essa história tão rica”, disse Mercedes.

A pesquisadora lembra que houve uma mistura religiosa no Brasil.

“Havia um tratado em Portugal, decretando que só podiam ter cativos do Norte e do Sul, mas Portugal trouxe também pessoas do povo Banto. No final do século XIX, com a vinda dos baianos, houve uma mistura cultural com o povo que já estava aqui. Estamos falando de uma mistura que sobrepôs a cultura Iorubá à cultura Banto. E aí começam essas mães de santo chegadas da Bahia, com Tia Ciata. E, então, veio essa coisa dos terreiros. A cultura não se perdeu; houve uma mistura religiosa”, ressalta.

Do ponto de vista de política pública para enfrentamento da intolerância religiosa, a diretora do IPN destaca a necessidade de se trabalhar em conjunto.

“Primeiro, todos os terreiros precisam ter uma rede. Nada neste país se consegue com uma frente única. Uma grande rede para reivindicar ações necessárias ao Estado, como proteção. E é  importante retomar o Centro do Rio como espaço para manifestação da fé e da história. Os terreiros saíram da região portuária por perseguição, um apagamento histórico e cultural. É necessário ter espaço para esses terreiros serem erguidos no Centro da cidade outra vez”, completa.

(*) Colaborou Bárbara Rachel

Igor Soares

Igor Soares é jornalista formado pela UFRJ. Atua como repórter do Fala Roça e como freelancer do #Colabora e do Rio On Watch. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos, segurança pública, economia e política, com passagem pelas redações do Estadão, do Portal iG, além de já ter produzido reportagens para a Folha de S. Paulo.

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