Invasões e grilagem ameaçam maior quilombo do Brasil

No Território Quilombola Kalunga, no norte de Goiás, titulação definitiva se arrasta há quase 20 anos, facilita ocupação ilegal e aumenta tensão na região

Por Inglid Martins | ODS 10ODS 16 • Publicada em 9 de janeiro de 2024 - 09:01 • Atualizada em 12 de janeiro de 2024 - 10:34

Território Quilombola Kalunga, no norte de Goiás: falta de titulação definitiva facilita invasões e grilagens e ameaça o maior quilombo do Brasil em extensão territorial (Foto: AQK)

Território Quilombola Kalunga, no norte de Goiás: falta de titulação definitiva facilita invasões e grilagens e ameaça o maior quilombo do Brasil em extensão territorial (Foto: AQK)

No Território Quilombola Kalunga, no norte de Goiás, titulação definitiva se arrasta há quase 20 anos, facilita ocupação ilegal e aumenta tensão na região

Por Inglid Martins | ODS 10ODS 16 • Publicada em 9 de janeiro de 2024 - 09:01 • Atualizada em 12 de janeiro de 2024 - 10:34

(Cavalcante/GO*) – Grilagens, esbulhos, expansões ilegais de fazendas, rios e nascentes cercados, conflitos possessórios, ameaças, intimidações e garimpo ilegal: essa é a realidade da população do Quilombo Kalunga, o maior do Brasil em extensão, localizado ao norte do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, entre as cidades goianas de Monte Alegre, Cavalcante e Teresina de Goiás, na divisa com o Tocantins. São mais de oito mil quilombolas que vivem em um território de 262 mil hectares (2.620 km², área maior do que de capitais como João Pessoa ou Natal) distribuídos por 56 comunidades em quatro agrupamentos – Vão do Moleque, Vão de Almas, Vão da Contenda e Ribeirão dos Bois.

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Foram identificados e mapeados, pelo Ministério Público Federal, 50 pontos de invasões e dois pontos de garimpo ilegal dentro do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Quilombo Kalunga (SHPCQK). Grande parte desses esbulhos está em áreas já desapropriadas, com indenizações pagas pelo Incra aos antigos proprietários para reintegração de posse aos quilombolas, inclusive com titulação e direito real de uso já concedidos aos Kalunga como propriedade coletiva.

A gente vive num ambiente em que a gente sofre ameaças constantes. Pessoas de dentro da lei adentram o território com o fazendeiro para ameaçar Kalunga lá dentro; não podemos fazer nada, temos família

Carlos Pereira
Presidente da Associação Quilombola Kalunga

Para os procuradores, a morosidade do INCRA no processo para emissão desses títulos e a omissão por parte do estado de Goiás – nos autos do processo do MPF, a ausência do reconhecimento do direito de propriedade sobre as glebas devolutas do estado de Goiás, dificultam a titulação definitiva. Num ato recente de 2018 é que algumas dessas terras devolutas foram enfim entregues aos Kalunga – em que contribuem para que essas áreas sejam alvo de constantes conflitos territoriais dentro de suas reservas ambientais, incluindo a exploração predatória dos recursos naturais e do solo, colocando esse santuário ecológico em risco.

Os pontos de invasão foram identificados no contexto de ação civil pública, movida em 2021 pelo MPF, que chegou a resultar em mandado de reintegração de posse, suspenso antes de ser cumprido, agravando a tensão por todo o Quilombo Kalunga. “A gente vive num ambiente em que a gente sofre ameaças constantes. Pessoas de dentro da lei adentram o território com o fazendeiro para ameaçar Kalunga lá dentro; não podemos fazer nada, temos família”, afirma Carlos Pereira, presidente da Associação Quilombo Kalunga (AQK).

Existem muitas ameaças graves que não são denunciadas por medo; gente que aparece aqui fazendo terrorismo, pessoas armadas, apoiadas por forças policiais. Nem precisam dizer nada, basta mostrarem as armas, e fazem isso contra mulheres, idosos e até crianças

Quilombola
Morador da comunidade Engenho II

As ameaças alcançam níveis alarmantes. Em junho, ao chegar à sede da associação na cidade de Cavalcante, Pereira encontrou uma cabeça de porco decepada e transpassada por um objeto de ferro cravado no crânio. “Hoje, eu trago a postura dos meus ancestrais, até os mais próximos – meus avós, meus pais -, de me colocar à frente, de estar no movimento. Eu me coloco na responsabilidade de proteger o meu povo e cuidar do meu território. Eu me coloco sabendo que sou um corpo negro, mas que permeia nesse espaço, que sou alguém que veio cumprir uma missão, então esqueço as ameaças, os medos que são reais e sigo”, desabafa o presidente da AQK, de 28 anos, formado em Bioconstrução e cursando mestrando na área de Sustentabilidade, na UnB (Universidade de Brasília).

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Muitas comunidades do Kalunga ainda estão isoladas pela falta de infraestrutura – são esses moradores os que mais sofrem com as constantes ameaças de grileiros e de pessoas contratadas por fazendeiros. Eles contam que veem suas terras sendo invadidas por policiais armados na companhia de fazendeiros e pecuaristas no intuito de intimidar. “Existem muitas ameaças graves que não são denunciadas por medo; gente que aparece aqui fazendo terrorismo, pessoas armadas, apoiadas por forças policiais. Nem precisam dizer nada, basta mostrarem as armas, e fazem isso contra mulheres, idosos e até crianças”, relata um quilombola Kalunga da comunidade do Engenho II, que, como outros, pede anonimato por temer pela vida. “Existem lugares aqui, que são nossos, mas estão nas mãos de pessoas não Kalunga, como o Complexo do Prata, um dos lugares mais lindos do território quilombola que está sendo explorado para o turismo. A justiça sabe que eles não deveriam estar lá, mas continuam cedendo liminares”, acrescenta.

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Carlos Pereira, presidente da Associação Quilombola Kalunga, cobra atenção ao Cer rado e proteção ao quilombo: 'nossa única arma é acionar a Justiça" (Foto: Divulgação/AQK)
Carlos Pereira, presidente da Associação Quilombo Kalunga, cobra atenção ao Cerrado e proteção ao quilombo: ‘nossa única arma é acionar a Justiça” (Foto: Divulgação/AQK)

O território quilombola fica em área privilegiada – com dezenas de cachoeiras e outras belezas naturais – de Cerrado, bioma considerado como caixa d’água do Brasil, por ser o berço dos principais rios que abastecem oito das doze bacias hidrográficas do país. “Sem o Cerrado, vários biomas estarão em risco, inclusive a Amazônia. Estão ‘comendo’ o Cerrado, e não há providências para coibir isso. A Justiça precisa entender que isso só será resolvido quando eles agirem. Vivemos num território federalizado, que deveria ser protegido. Nossa única arma é acionar a Justiça e aguardar”, protesta Carlos Pereira, que cobra do governo federal maior atenção para o Cerrado.

Casa e roça destruídas em ação de grileiros no território Kalunga: quilombolas sofrem ameaças e temem ataques (Foto: Associação Quilombo Kalunga – 2021)

Invasões de fazendeiros e garimpeiros

Moradores das comunidades do Quilombo Kalunga denunciam que, na época da estiagem, alguns fazendeiros desviam as águas dos rios para o monocultivo da soja dentro do território quilombola. As comunidades da região são proibidas de alcançarem os rios, única fonte de água potável na região, seja por acercamentos indevidos seja por pessoas contratadas para impedir o acesso. Os moradores denunciam casos de roças e casas destruídas por incêndios provocados para expulsá-los do local, em 2020, nas comunidades que ficam na cidade de Cavalcante. E também o uso de tratores e motosserras invadem as colheitas, derrubam casas e cercas.

Os quilombolas também relatam intimidações frequentes por garimpeiros ilegais que descem os rios Paranã e Almas em balsas e tentam se estabelecer na região. As embarcações passam horas ancoradas no meio dos rios, vigiando a população, fingindo ser pescadores e, na distração dos moradores, entrar no SHPCQK para a exploração predatória do solo em busca de minérios e ouro. A população reage e impede que alcancem o território; alguns garimpeiros ilegais desistem, mas tentam voltar depois.

Em 2019, o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Quilombola Kalunga passou por um georreferenciamento, um mapeamento das áreas para controlar toda a extensão territorial, realizado com subsídio do Fundo Internacional de Parcerias de Ecossistemas (CEPF). Mesmo assim, os invasores conseguem entrar e se fixar dentro da área do quilombo. Como as casas das comunidades não são próximas umas das outras, os invasores encontram tempo para cercar a terra invadida e trazer animais de grande porte.

Uma grande parte dessa turma, que está recorrendo no tribunal está nessa situação: eles estão invadindo terras pelas quais a União já pagou. É um absurdo ao extremo eles serem protegidos. Agora vai ter que indenizar de novo? Desapropriar mais uma vez? É um dispêndio absurdo: isso a gente não vai permitir. É ilegal, ilegítima essa situação

José Ricardo Teixeira Alves
Procurador da República

De acordo com a AQK e o MPF, esses grileiros se estabelecem como compradores da terra e apresentam documentos fraudados; alguns são agropecuaristas, vizinhos ao território, que expandem suas fazendas ilegalmente, alcançando rios e nascentes, avançando cercas por territórios de preservação ambiental, desmatando com o uso de ‘correntões’ para formação de pastagem ou para monocultura de soja. “Segundo documentos deles, o mesmo local possui diversos donos. A disputa é na bala”, relata um quilombola.

Búfalos dentro do território quilombola em ação de fazendeiro para ocupar terras ilegalmente: processos na Justiça para a reintegração de posse (Foto: Élcio Miranda / Associação Quilombo Kalunga)

No mesmo período em que acontecia esse mapeamento, um processo de desapropriação de duas fazendas estava em andamento visando a reintegração de posse e a titulação definitiva para os quilombolas Kalunga, em uma iniciativa conduzida pelo Incra, que se arrastou por anos. No entanto, o acordo necessário não foi concretizado, uma vez que os fazendeiros se recusavam a deixar as terras na área do quilombo e insistiam em ser indenizados. A estratégia para impedir a desapropriação inclui soltar búfalos no território, apesar da proibição desses animais na área pelo regimento interno do território, estabelecido pela Associação Quilombo Kalunga.

Essa ação – realizada pelo fazendeiro Marcos Rodrigues da Cunha, mais conhecido como Marcos Búfalo – não apenas causava contaminação das águas e degradação do solo próximo aos rios, mas também resultava em devastação de mata nativa na região de acordo com a AQK que acionou a prefeitura de Cavalcante, e de posse das informações e provas confirmando os estragos, solicitou a presença da SEMAD-GO que multou por das vezes Marcos pela reincidência da ação.

Os búfalos invadiam as residências das comunidades locais e destruíam as plantações dos habitantes. A situação acarretou ao fazendeiro multa de mais de R$ 300 mil e a perda da posse dos animais. As fazendas Fonte das Águas, com área de 6,5 mil hectares, e Fazenda Vista Linda, Gleba 4, com 2,3 mil hectares, foram desapropriadas no primeiro trimestre de 2023, quando finalmente foram celebrados os acordos das indenizações somados no valor total de R$ 6 milhões.

Reunião no Quilombo Kalunga para discutir situação fundiária: operação para expulsar invasores chegou a ser determinada pela Justiça em maio de 2023 mas acabou suspensa (Foto: Associação Quilombo Kalunga)

Titulação tarda, Justiça falha

Para os moradores do Kalunga, a morosidade do Incra para fazer a titulação do quilombo amplia os conflitos e as tensões. “Isso ocorre porque o Incra facilita, demoram tanto para fazer o trabalho deles que vários processos ‘caducam’. Parece proposital. Em 2019, as ações que tramitavam para titulação definitiva, foram arquivadas”, relata um líder quilombola, também temendo se identificar. “Nos anos 90, o Incra desapropriou umas terras, eles sabiam que eram devolutas do estado de Goiás, e se não bastasse isso, ainda indenizou um fazendeiro. Depois, foi lá e assentou 55 famílias, um processo tão bagunçado que gerou um comércio de compra e vendas de terras no local”, acrescenta o morador do Kalunga para quem este foi um dos mais graves erros do instituto no território, uma das principais causas dos constantes conflitos fundiários, desmatamentos e exploração predatória dos recursos naturais dentro do Sítio Histórico Quilombola Kalunga.

Essa área mencionada é o Assentamento Diadema, também citado no processo aberto pelo Ministério Público Federal em 2020, que tem como réus o próprio Incra, a União, o governo de Goiás, a Fundação Palmares, além dos responsáveis pelos 50 pontos invadidos já identificados no SHPCQK. De acordo com laudo emitido em junho de 2023 pelo próprio INCRA, foram encontradas diversas irregularidades no Assentamento Diadema, em Teresina de Goiás. Chama atenção o item V: “a existência de ocupante irregular não Kalunga que negociou parte do lote assentado (Kalunga); são lotes próximos ao rio que estão sendo cercados, impedindo o acesso da comunidade do Projeto e Assentamento, ao rio e, estão fazendo desmatamento até a margem para formar pastagem”.

O MPF vai acompanhar de perto, junto com a Polícia Federal, essa questão das ameaças. Nós estamos em contato com a associação deles para garantir a proteção. A gente não pode permitir violência e ameaça

José Ricardo Teixeira Alves
Procurador da República

O laudo – solicitado pelo juiz federal José Piragibe Afonso e elaborado pela equipe de Supervisão Ocupacional da Superintendência Regional do DF – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, INCRA, que salienta ainda “que proprietário de fazenda está expandindo suas terras adentrando no assentamento, enquanto desmata área preservada”. Além de identificar pelo menos 18 famílias que não têm perfil de trabalhador rural – não seriam, portanto, elegíveis aos critérios do Programa de Reforma Agrária (PNRA), por serem empresários, portadores de CNPJ, donos de comércio, e até um servidor público aposentado da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal.

Atual responsável pela ação civil pública para a reintegração de posse das áreas invadidas no Quilombo Kalunga, o procurador da República José Ricardo Teixeira Alves, afirma que o Incra reconheceu ao emitir o relatório técnico de identificação da região da PA Diadema como sendo quilombola: “Esse assentamento tem que ser desfeito. Então, vai ser necessário retirá-los de lá. Uma coisa são os assentados com concessão do Incra, outra coisa são os que compraram de assentados: comprar lote de assentado é proibido”, explica o procurador em entrevista ao #Colabora. “No momento, nossa ação visa a reintegração de posse e titularização de todo território quilombola aos Kalunga. Então quem está na PA de Diadema, porque comprou de assentado, vai ter que sair de imediato – isso pode caracterizar crime de estelionato, e eles responderão criminalmente. Quanto aos demais, que o Incra assentou naquele momento, legalmente, a gente vai dar um prazo maior, mas terão que sair também. O território não é destinado a reforma agrária”, acrescenta.

No extremo norte de Goiás, o Território Quilombola Kalunga se sobrepõe a áreas dos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás (Reprodução)

Teixeira Alves lamenta que a reintegração de posse no Território Quilombola Kalunga marcada para 11 de julho – com a mobilização de 65 PMs, além de policiais federais, bombeiros, representantes do governo federal e do governo estadual – tenha sido suspensa. “Se tivesse ocorrido o procedimento de reintegração, íamos tirar muitas pessoas que estão irregulares, ali naquele dia. Essa suspensão não fez sentido”, afirma, lembrando que, mesmo com muitas pessoas entrando com recursos, cada caso era um caso e o juízo ia ter que julgar todos eles.

O representante do MPF destaca que a maioria das invasões estão dentro de áreas já desapropriadas e indenizadas pelo Incra com direito de posse aos Kalunga. “Uma grande parte dessa turma, que está recorrendo no tribunal está nessa situação: eles estão invadindo terras pelas quais a União já pagou. É um absurdo ao extremo eles serem protegidos. Agora vai ter que indenizar de novo? Desapropriar mais uma vez? É um dispêndio absurdo: isso a gente não vai permitir. É ilegal, ilegítima essa situação”, desabafa.

O procurador da República disse que pretende fazer uma nova visita ao quilombo e encaminhar o pedido para a retirada imediata pelo menos daqueles invasores que não apresentaram recursos dentro do prazo. Teixeira Alves vai também solicitar audiência com novo juiz relator do processo, juiz federal da 1ª Vara de Subseção Judiciária de Formosa – GO, Eduardo Pereira da Silva, para tentar apressar a reintegração de posse para reduzir os conflitos no Território Quilombola Kalunga. “O MPF vai acompanhar de perto, junto com a Polícia Federal, essa questão das ameaças. Nós estamos em contato com a associação deles para garantir a proteção. A gente não pode permitir violência e ameaça”, afirma o procurador.

*Esta reportagem foi realizada com o apoio do Programa Acelerando a Transformação Digital, parceria do ICFJ (International Center for Journalism) e da Meta, e a mentoria do jornalista Chico Otávio

Inglid Martins

Graduanda em Jornalismo pela Universidade Estácio de Sá em Trindade (GO), é estagiária no Diário da Manhã, de Goiânia e,pesquisadora IC - CNPq/Capes na Unesa. Foi professora de Artes Visuais, Sociologia e Filosofia na rede estadual de ensino de Goiás. Apaixonada por contar histórias, atualmente está descobrindo o Cerrado através do Jornalismo

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