Guerra às drogas: obstáculo à justiça climática

Revista reúne 17 artigos de especialistas de diversas áreas, para provocar e embasar debate sobre políticas de drogas, uso da terra e crise climática no Brasil

Por Oscar Valporto | ODS 16 • Publicada em 23 de abril de 2025 - 08:33 • Atualizada em 23 de abril de 2025 - 08:53

Ato pela legalização da maconha no Rio: revista discute guerra às drogas como entrave à Justiça Climática (Foto: Isabela Vieira / Agência Brasil)

A guerra às drogas, como política de segurança pública, é claramente ineficaz: empregada no Brasil há décadas, consome bilhões em recursos públicos que poderiam ser empregados em bem-estar social, provoca o aumento da violência armada, particularmente em favelas e periferias, alimenta a superlotação carcerária e não consegue reduzir nem a criminalidade relacionada ao tráfico nem o consumo de substâncias ilícitas. Um lado igualmente trágico mas ainda pouco visível dessa fracasso será abordado na edição especial da revista Platô: a guerra às drogas como obstáculo à justiça climática, pelos impactos dessa política no uso da terra no Brasil e países vizinhos.

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“Não haverá justiça climática enquanto persistir o modelo de guerra às drogas”, afirma a ambientalista e jornalista Rebeca Lerer, curadora dessa edição especial da Platô: ‘Intersecção: Uso da Terra, Política de Drogas e Justiça Climática’, parceria entre a Iniciativa Negra, a Plataforma Brasileira de Política de Drogas e a International Coalition on Drug Policy Reform and Environmental Justice, da qual a ativista é coordenadora para a América Latina. Para Rebeca Lerer, as atuais políticas proibicionistas, que criminalizam a produção e mercado de plantas como a coca e a maconha, corrompem as instituições e capitalizam as organizações criminosas.

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A edição especial reúne 17 artigos de especialistas de diversas áreas, para provocar e embasar o debate sobre uso da terra e justiça climática considerando as dinâmicas decorrentes das atuais políticas de drogas no Brasil. Grilagem, narcotráfico, violações de direitos, devastação da biodiversidade, proibicionismo, redução de danos e saúde e racismo ambiental estão entre os temas abordados na Platô Intersecção.

“O Brasil é um elo chave na cadeia produtiva, de consumo e distribuição da cocaína com origem andina e da maconha cultivada no Paraguai e outros países sul americanos. O dinheiro mobilizado por essas commodities ilegais distorce a macroeconomia, financia a grilagem e crimes ambientais e bloqueia medidas de adaptação climática em todo o território nacional”, aponta Rebeca Lerer . “Sem romper esse ciclo, não será possível zerar o desmatamento nem garantir direitos territoriais, fundamentais para controlar a crise climática”.

Carga de toneladas de maconha apreendidas perto da fronteira com o Paraguai: ilegalidade torna predatórias e violentas as cadeias produtivas de plantas com princípios psicoativos (Foto: PRF / Divulgação)
Carga de toneladas de maconha apreendidas perto da fronteira com o Paraguai: ilegalidade torna predatórias e violentas as cadeias produtivas de plantas com princípios psicoativos (Foto: PRF / Divulgação)

Das plantas à violência armada

A jornalista e ambientalista assina um dos artigos (O Afro é Pó – Impactos da proibição das cadeias produtivas de drogas à base de plantas na América do Sul) em parceria com o neurocientista e biólogo Renato Filev, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, onde abordam aspectos da produção de plantas com princípios psicoativos como a cannabis e a coca e da política de guerra às drogas. “Tradicionalmente cultivadas e consumidas em toda a América do Sul, a criminalização da coca e da maconha vem trazendo efeitos devastadores para o continente”, destacam os autores. “Por serem ilegais, as economias desse agro psicoativo estão associadas a cadeias produtivas predatórias e violentas, envolvendo interesses de mercados internacionais que se sobrepõem aos das comunidades locais e da ecologia das próprias plantas”, afirmam no artigo.

Rebeca Lerer e Renato Filev destacam dados sobre a criminalização dos produtos dessas plantas e da própria guerra às drogas. Eles lembram que, no período colonial, as plantas de cannabis no Brasil, trazida por africanos escravizados, eram usadas como medicamentos, alimentos e na indústria de cordas, forragens, tecidos e papel. Hoje, cerca de 58% das prisões por crimes de drogas são por porte de até 150 gramas de maconha. “A perseguição à maconha no Brasil tem como premissa o racismo contra pessoas negras, indígenas e nordestinas, com forte viés psiquiátrico higienista”, apontam os autores, ressaltando ainda o lado do tráfico. “Enquanto o mercado nacional cresce nas zonas cinzentas de uma legislação que muda lentamente, parte significativa da maconha comercializada no País ainda provém de grandes latifúndios do Paraguai. Geralmente associado aos mercados de cocaína e armas, o tráfico de maconha segue provocando conflitos agrários e altos índices de homicídios nas fronteiras e nas periferias brasileiras”.

No seu artigo, Rebeca Lerer e Renato Filev também abordam a questão ambiental. “Do ponto de vista ecológico, além dos efeitos do cultivo ilegal no solo e na água, milhões de pés de maconha são destruídos anualmente sem que esta memória genética seja guardada, protegida e estudada. Há um desperdício agrícola e ambiental das variedades que aqui crescem, perdendo-se a oportunidade de explorar de forma legítima uma economia verde que avança exponencialmente”.

Os autores também lembram que a “coca é uma planta de uso ritual, medicinal e ancestral cultuada e cultivada por povos indígenas andino-amazônicos há milênios”. E mostram como a cocaína foi isolada, usada, comercializada e, finalmente, proibida. “Após um século de proibição e repressão do cultivo ao varejo, a produção e o consumo de cocaína atingiram níveis recordes nos últimos anos, segundo dados oficiais do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC)”, apontam.

O artigo ressalta também que Colômbia, Bolívia e Peru, onde está concentrada a origem quase toda a coca e a pasta-base da cocaína, o cultivo da folha está associado diretamente ao desmatamento, à poluição da água e do solo por agrotóxicos e precursores de refino, a remoções forçadas de comunidades rurais e a conflitos territoriais por áreas de cultivo, fazendas e agroflorestas. Nas áreas de cultivo e nas rotas, o comércio de drogas e a lavagem de dinheiro estão associados à perda de cobertura florestal em larga escala. “Rotuladas de ‘narcodesmatamento’, essas atividades incluem o reinvestimento dos lucros do tráfico de drogas na aquisição e grilagem de terras, desmatamento, garimpo, pastagens, extração de madeira e latifúndios de soja, além do financiamento de pistas de pouso e estradas clandestinas”, alertam os autores.

Após descrever os estragos do tráfico da droga até chegar aos consumidores dos grandes centros e à disputa armada pelos pontos de venda no varejo e também aos portos e aeroportos para o transporte para a Europa e EUA, Rebeca Lerer e Renato Filev criticam a política de drogas do Brasil uma das “mais proibicionistas e brutais das Américas”. Os autores destacam dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), estimando que os homicídios relacionados ao proibicionismo das drogas reduzem a expectativa de vida ao nascer dos brasileiros em 4,2 meses, e criticam a Lei de Drogas (11.343/2006), que “aprofundou estereótipos e agravou a criminalização seletiva da juventude negra, aumentando o encarceramento”.

O artigo ressalta ainda o avanço da violência na Amazônia, com a mesma estratégia de guerra às drogas para combater o crime organizado e seus resultados: em 2022, a taxa de mortes violentas intencionais nos nove estados da Amazônia Legal foi 50% maior do que no resto do Brasil e o número de pessoas mortas pela polícia cresceu 71% na Amazônia entre 2016 e 2021, o dobro do aumento nas outras regiões do país. “Enquanto os mercados ilegais movimentam fortunas sem pagar impostos, apenas propinas, o impacto orçamentário da guerra às drogas desvia do Estado investimentos em moradia, saúde, educação e adaptação climática”.

Rebeca Lerer e Renato Filev concluem defendendo que “é necessário ampliar o conceito de redução de danos para incluir a dimensão territorial e ecológica” e também “reformar as políticas de drogas como estratégia econômica e de governança para combater a corrupção, mitigar impactos socioambientais, garantir direitos territoriais, moradia e reduzir as desigualdades e a violência armada”. Os autores defendem ainda “libertação dessas plantas hoje proibidas por tratados obsoletos que atravancam o progresso da justiça climática”, lembrando que as leis repressivas fracassaram em impedir a produção e também o consumo.

Visões diversas na edição especial da Platô

Questões abordadas por Rebeca Lerer e Renato Filev estão presente em alguns dos outros 16 artigos da edição ‘Intersecção: Uso da Terra, Política de Drogas e Justiça Climática’, da Platô. “Reunimos um grupo de especialistas de diversas áreas, em um movimento que valoriza a inteligência coletiva da sociedade civil brasileira, para nortear o debate da justiça climática considerando os diversos contextos de vida e de sobrevivência nas diferentes regiões do Brasil. A ideia é, a partir daí, pensar o futuro de forma mais integrada e realista”, afirma a socióloga Nathalia Oliveira, diretora geral e cofundadora da Iniciativa Negra.

Entre os articulistas, estão Mariana Belmont, jornalista e assessora de Clima e Racismo Ambiental do Geledés – Instituto da Mulher Negra; Pablo Nunes, doutor em ciência política e coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC); Jetícia Benavalli, bióloga e fundadora e diretora executiva do Instituto Pró-Onça; Adriana Ramos, especialista em política ambiental, da Secretaria Executiva do Instituto Socioambiental (Isa) e da coordenação do Observatório do Clima; Aristênio Gomes dos Santos, cofundador e coordenador da Organização Movimentos e pesquisador em Segurança Pública da Redes da Maré; Walela Soeikigh Paiter Bandeira Suruí, indígena do Povo Paiter Suruí, coordenadora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia; e Érika Santos, advogada e diretora da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Reforma).

A edição especial da Platô faz parte de um movimento coletivo que busca apontar soluções integradas como estratégia para enfrentar duas crises conectadas que comprometem a governança territorial no país: a emergência climática e a violência decorrente da guerra às drogas. Temos uma política de drogas pautada no proibicionismo, que alimenta o narcotráfico e a violência nos territórios. E vemos que o racismo é um fator comum também quando falamos sobre o uso da terra e a queda de braço pela manutenção do poder da branquitude sobre essas propriedades. Não dá pra fazer justiça climática sem considerar essas dissonâncias e a perpetuação do racismo nas tomadas de decisão sobre esses temas”, reforça Nathalia Oliveira.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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