Foi em um vídeo compartilhado em fins de julho, no instagram do Rio Branco Football Club, time da capital do Acre, que o presidente Neto Alencar anunciou a contratação do ex-goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes, campeão brasileiro em 2009, preso em 2010 e condenado em 2013 pelo homicídio triplamente qualificado da amante Eliza Samudio e pelo sequestro e cárcere privado do filho Bruninho, que teve com ela. Um crime enquadrado judicialmente como feminicídio.
“Olá, torcida riobranquina (…) Quero comunicar a vocês a mais nova contratação do Rio Branco. Eu digo, a maior contratação (…) deste ano e uma das maiores de sua história. Trata-se do goleiro Bruno Fernandes, ex-Flamengo, que chega na nossa capital (…) pra vir compor o elenco do Rio Branco nessa temporada.”
O anúncio da contratação do atleta aconteceu pouco mais de três meses depois da divulgação, em março de 2020, de dados do Monitor da Violência – parceria do site jornalístico G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – que apontaram o Acre como o estado da federação com a maior taxa de feminicídios do país. O lugar mais perigoso e violento para uma mulher. Como se esse fato já não bastasse, o estado também é um dos 10 com maior índice de violência contra a mulher durante a pandemia do coronavírus.
Por conta desses números, por si só assustadores, o Instituto de Mulheres da Amazônia (IMA) – ONG feminista que reúne a pluralidade de mulheres dos estados que fazem parte da Amazônia legal – desenvolveu e lançou uma campanha de conscientização, prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher e com foco especial no Acre. Intitulada “Brasil, campeão em feminicídio: esse título eu não quero!” as ações da campanha estavam previstas para se estender, inicialmente, até janeiro de 2021, junto com a última rodada do Campeonato Brasileiro de futebol. Entre o anúncio e a apresentação do goleiro Bruno Fernandes (um dia antes do previsto, para evitar protestos), o IMA organizou uma série de manifestações de repúdio à contratação do atleta condenado por feminicídio. Sob a bandeira e a hashtag “Feminicida não merece torcida” (#feminicidanaomerecetorcida), os protestos aconteceram à porta do Rio Branco e seguiram com a divulgação de uma carta aberta à sociedade acreana nas redes sociais.
Manifestações nas ruas e cartas de repúdio também foram os instrumentos usados pelos coletivos feministas e as torcedoras em Feira de Santana, na Bahia, em São Mateus, no Espírito Santo, e em Várzea Grande, no Mato Grosso, para protestar contra o anúncio da contratação de Bruno pelos respectivos times de futebol: Fluminense de Feira de Santana, Pitbull do Norte capixaba e Esportivo Operário várzea-grandense. Em todas estas cidades os clubes anunciaram a vinda do atleta nos primeiros meses de 2020 e desistiram da contratação em meio às manifestações que levaram torcedores e torcedoras às portas dos clubes, das repercussões negativas e da iminência de perder ou perda efetiva de patrocinadores. A reação mais contundente foi da jornalista e apresentadora do programa Bahia Meio Dia, Jéssica Senra, da TV Bahia. No ar e ao vivo a apresentadora criticou a contratação de Bruno e acrescentou: “Desejamos e precisamos que pessoas que cometem crimes tenham a possibilidade de refazer suas vidas. Mas, diante de um crime tão bárbaro, tão cruel, poderíamos tolerar que o feminicida Bruno voltasse à posição de ídolo? Que mensagem mandaríamos à sociedade? Atletas são referências para crianças, para adultos. São ídolos. Contratar para um time de futebol um assassino (…) é um desrespeito a todas nós mulheres. (…) a todas as crianças – e adultos – que cresceram sem mãe por causa de homens desprezíveis que tiraram a vida de mulheres. (…) E mais, colabora com a ideia de que matar mulheres é permitido, desde que você cumpra a sua pena – ou parte dela – como é o caso de Bruno. Depois pode viver a sua vida normalmente.”
Essa também é a opinião da pedagoga, educadora e ex-secretária estadual de Políticas Para as Mulheres do Acre, Concita Maia, coordenadora do IMA. “O único lugar do país onde o Bruno Fernandes encontrou guarida foi aqui no clube Rio Branco e a contratação dele é um escárnio, um desrespeito com toda a sociedade acreana e com todas as mulheres vítimas de violência”, ela critica. “Ainda mais se levarmos em consideração que esse atleta, com esse histórico, foi contratado por um clube de futebol do estado que mais mata mulheres no país. Que falta de sensibilidade e de noção da realidade é essa?”
O jornalista esportivo Paulo Henrique Nascimento, há quase 20 anos apresentando o programa Globo Esporte no Acre, também questionou no ar a contratação do atleta e criticou a forma como Bruno foi anunciado ao público e aos torcedores. “O Rio Branco é um time centenário, o mais antigo do Acre, e a contratação do Bruno, um cara que já foi campeão brasileiro, foi um fato inédito. O que complicou foi a forma como o presidente Neto Alencar anunciou a contratação dele. Incensou os feitos do goleiro, mas ignorou totalmente o Bruno que ainda cumpre pena por um crime hediondo”, salienta Paulo. “Pegou mal porque parece que o clube quis apagar o passado do cidadão Bruno como se o que ele fez fosse algo que se pudesse ser deixado para trás, sem maiores preocupações ou consequências.”
Porém, as reações aconteceram imediatamente após a divulgação do anúncio, como lembra Concita Maia. “Nós – as mulheres e torcedoras acreanas – nos posicionamos contra, claro! Mobilizamos o apoio de movimentos feministas em mais de 15 estados e
tentamos diálogo com o clube, mas os dirigentes sequer se dignaram a nos responder. Preferiram fingir que não existíamos”. Então, o IMA promoveu uma manifestação, com cerca de 50 pessoas, em frente aos portões do Rio Branco FC. “O clube encheu a porta com seguranças. Parecia que éramos vândalas nos preparando para invadir e pilhar”, ela conclui.
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Veja o que já enviamosPaulo Henrique lembra que o clube se blindou depois da enxurrada de críticas que recebeu. “Agiu dessa forma porque estava amparado pelo apoio de vereadores do município e de deputados e senadores do estado”, revela o jornalista. “Se o presidente do Rio Branco queria chamar a atenção para o Acre, conseguiu, mas da pior forma possível, associando ainda mais o estado com a violência contra a mulher.”
De fato, o presidente Neto Alencar, só fez mais uma declaração pública em vídeo divulgado nas redes sociais do clube, dois dias depois do anúncio da contratação do goleiro. No vídeo, justifica a decisão de apostar no atleta e mistura argumentos jurídicos e religiosos. “Nunca imaginei que ia dar essa repercussão toda aí (…) Penso que o Bruno pagou o que ele devia para a sociedade (…) ele precisa de uma segunda chance porque a mesma justiça que o prendeu e o condenou é a mesma que o soltou e disse que ele está apto para conviver em sociedade. (…) O que esses movimentos feministas e a sociedade em si precisa (sic) fazer é mudar as leis do país e botar leis mais rígidas. (…) Deixa o cara trabalhar, deixa ele viver a vida dele. Aquele que nunca errou que atire a primeira pedra. Isso é bíblico. Essa conta ele vai acertar com Deus.” E cita trechos de Matheus e Romanos, onde Jesus pede a Pedro que perdoe o próximo 70 vezes sete, para questionar “Quem és tu para julgar o teu irmão? (…) Deus perdoa e Jesus perdoa e a gente tem que seguir as duas leis: a lei de Deus e a lei aqui do homem. As duas estão dizendo que ele está apto. (…) Ele vai ser idolatrado se vocês quiserem.” Procurado pelo #Colabora, o Rio Branco não respondeu aos pedidos de entrevista com Neto Alencar.
O vídeo foi gravado depois que o principal patrocinador, há 14 anos apoiando o clube, romper o contrato e de a treinadora do time feminino do Rio Branco, Rose Costa, pedir demissão com um desabafo nas redes sociais: “(…) atletas são figuras públicas, e socializam e influenciam comportamentos, e meu humilde entendimento é que essa oportunidade dada ao goleiro Bruno, em nossa amada equipe, legitima a ineficiência das leis em nosso país, socializa ainda mais a impunidade aos feminicidas e por fim, macula a imagem de nossa equipe, pois o crime orquestrado por ele é reconhecidamente hediondo (…).”
Concita Maia lembra que as argumentações de Rose são as mesmas que ecoaram em vários setores da sociedade acreana, não só entre as mulheres do estado, ligados ou não aos movimentos feministas. “É claro que concordamos com uma parte da argumentação do presidente do Rio Branco, de que o Bruno, como egresso do sistema penal, precisa ser reintegrado à sociedade. Mas ele pode ter essa chance fazendo outros trabalhos, até como treinador de goleiros. Ainda mais porque em nenhum momento ele fez uma reflexão pública se mostrando arrependido pelo crime que cometeu.”
Porém, para o jornalista Paulo Henrique, o processo de idolatria ao goleiro Bruno Fernandes já está acontecendo e o próprio Rio Branco aposta nisso. “No campeonato acreano ele foi o líder do elenco sem ser o capitão. Agora, nos jogos da série D, ele está com a braçadeira e se tornou o batedor de pênaltis do time.” Paulo, que também é sócio do Rio Branco, conta que torcedores têm ido à sede do clube para assistir aos treinos e tirar fotos com o goleiro. “É mais gente do que eu imaginava. Uma prova de que o futebol realmente tem esse poder de ‘apagar’ as manchas no currículo de uma pessoa. Mas, ao mesmo tempo que eu vejo isso acontecer, também testemunho uma reação até maior nas redes sociais, de críticas e ironias, que não deixa o debate esfriar.”
Se depender das ações do IMA nas redes sociais, o debate não vai esfriar mesmo. Há três meses o Instituto vem promovendo – junto com a Associação de Mulheres de Arquibancada, a Defensoria Pública do estado do Acre, a Associação nacional das Ouvidorias das defensorias Públicas, o Movimento Somos Democracia e a Associação Nacional de Torcidas Organizadas (Anatorg) – uma série de debates na página do facebook da Anatorg e também a divulgação de vídeos ligados à campanha “Brasil campeão em feminicídio: esse título eu não quero!” nas páginas do IMA no instagram e no youtube. O objetivo é sensibilizar a sociedade para importância do combate ao machismo, à misoginia e desnaturalizar a violência contra a mulher, que pode levar, em último caso, ao feminicídio.
“O fato de os jogos do campeonato acreano e os da série D do campeonato brasileiro estarem acontecendo sem torcida presente, talvez dê a impressão de que não haja mais tantas manifestações e críticas, por isso a importância de termos essa pauta sempre mobilizada”, afirma o vice-presidente da Associação Nacional de Torcidas Organizadas, Anatorg, Flávio “Frajola” Martins. “Os núcleos femininos e feministas da grande maioria das torcidas organizadas do país estão apoiando o movimento de repulsa pela contratação do goleiro Bruno e, assim que a gente foi contatado pela Ouvidoria da defensoria Pública do Acre, mobilizamos imediatamente o apoio nacional à causa.” Para Frajola, qualquer um e qualquer instituição como a Anatorg, que se empenhe em combater o assédio e o machismo nas arquibancadas vê como um péssimo exemplo a volta do goleiro Bruno ao futebol. “Não dá pra tolerar um cara que fez essa crueldade voltar a jogar e se tornar referência. Imagina uma torcedora do Rio Branco, na arquibancada, e, ao lado dela, um cara gritando “Bruno, Bruno!, torcendo por um cara que cometeu um crime bárbaro com esse.”
Um crime bárbaro que parece ter sido ou esquecido ou propositalmente apagado da memória do goleiro Bruno Fernandes, como sugere Concita Maia. “Ele não fez qualquer declaração pública se dizendo arrependido pelo crime. Muito pelo contrário, ele ainda fez propaganda de um canil nas redes sociais dele. Se fosse piada, seria de muitíssimo mal gosto. Mas é uma aberração.” De acordo com as investigações, Bruno teria autorizado três de seus comparsas a mutilar o corpo da modelo Eliza Samúdio e jogar os restos mortais aos cachorros.
Para a ouvidora da Defensoria Pública do Acre, Solene Costa, também presidente da Associação Nacional das Ouvidorias das Defensorias Públicas, não existe uma “receita” para se lidar com casos de grande repercussão pública como a do Bruno Fernandes. “Sou feminista, defendo as mulheres, entendo toda a opressão que sofremos, sobretudo aqui no Acre, um estado invisível para o resto do Brasil e com o maior número de feminicídios no país. Porém, meu papel como interlocutora entre as demandas da sociedade civil e a Defensoria Pública é de promover a discussão da responsabilização dos clubes, da sociedade e dos jogadores. Contratar o Bruno na condição de ídolo, sem que haja qualquer espaço para reflexão dentro do clube ou de forma ampla pela sociedade, é um risco por causa da representatividade que o atleta pode ter entre jovens, crianças e torcedores”.
Solene, que integra o conselho do Instituto Mulheres da Amazônia e que defende o apoio nacional à campanha contra o feminicídio, também lembra que “legalmente o Bruno pode, e deve, como egresso do sistema carcerário, ter a chance de se reintegrar socialmente, trabalhar e ser produtivo.” Ela, que tem um extenso trabalho com a população carcerária e suas famílias, acredita que uma das ações mais importantes a serem implementadas é o envolvimento do Rio Branco em ações educativas. “Se contratou um atleta envolvido em feminicídio, que faça campanhas de alerta sobre a violência contra a mulher e outros grupos vítimas de atos de violência como negros, indígenas e LGBTs. Tome a responsabilidade pra si e apresente com coragem essas discussões à sociedade, que está questionando, com razão, o fato de se querer apagar o passado do Bruno sem que haja qualquer tipo de reflexão junto à sociedade.” Solene lembra que, por insistência do movimento organizado de mulheres do Acre, o Ministério Público entrou com pedido para que o goleiro sempre use a tornozeleira eletrônica quando não estiver treinando ou jogando. O uso faz parte do monitoramento e da privação de liberdade, já que ele ainda está cumprindo parte da pena em regime semi-aberto.
A advogada Maysa Carvalhal, especialista em violência doméstica e abolicionismo penal, formada na Universidade Estadual de Feira de Santana (cidade baiana que pressionou o clube local a desistir da contratação do goleiro Bruno), concorda com Solene. Ela acredita que mesmo o caso sendo tão complexo, é preciso separar os fatos e observar que juridicamente “é preciso defender as prerrogativas mínimas do nosso marco civilizatório, as garantias do processo penal, para que a pena não se estenda para além do crime”. Ela também defende uma ação de reciclagem entre atletas e funcionários do clube porque “não podemos cair no canto da sereia de que punir é a solução pra todo os males. Já temos as cadeias repletas de pessoas que, ao sair, viverão o dilema de serem rejeitados pela sociedade, seja qual for o crime que tenham cometido. Não podemos continuar condenando depois de cumprida a pena. É a regra do jogo. O Bruno, por exemplo, ainda está pagando pelo crime, mas socialmente ele jamais será esquecido”. Para Maysa, o clube e o atleta deveriam assumir um compromisso público de adesão às ações de conscientização contra o machismo, a misoginia, o assédio e o feminicídio. “Um sujeito criado numa sociedade machista e patriarcal, como é a realidade de muitas cidades brasileiras, é autorizado a tomar posse e fazer o que quiser com o corpo feminino. O feminicídio é o ápice da violência contra a mulher. Um ato abominável e inaceitável. Por isso, reconhecer o erro publicamente, se mostrar arrependido é parte importante do processo de reintegração.”
Mas, como lembra o jornalista Paulo Henrique Nascimento, independentemente da polêmica a respeito do direito de o atleta Bruno Fernandes voltar aos campos, os deuses do futebol têm lá suas próprias agendas e caprichos. “O presidente do Rio Branco trouxe o Bruno para ser campeão estadual. Não deu certo. O Estrelão perdeu a final para o Galvez, que venceu pela primeira vez o campeonato acreano. Por causa disso, o Rio Branco ainda ficou de fora da Copa do Brasil e da Copa Verde. Então, tirando o estadual do ano que vem, o time está sem agenda para 2021. Só vai conseguir participar de algum campeonato regional ou nacional se chegar entre os quatro primeiros na série D. Uma tarefa difícil.”
Excelente reportagem