Erika Morhy*
Belém (PA) – Policiais militares atuando como milícia privada para fazendeiros que invadem terras indígenas. A grave denúncia foi feita publicamente pela Associação Indígena Tembé das Aldeias Tawari e Zawaruhu, dois dias depois do professor Isac Tembé, de 24 anos, ter sido baleado e morto por PMs, na Terra Indígena Alto Rio Guamá, em Paragominas, no nordeste do Pará, na noite do último dia 12.
A súbita retirada do corpo de Isac, a falta de perícia na cena do crime e a forma como se deu a entrada dele no hospital, fatos confirmados pela Secretaria de Segurança Pública (Segup) do Pará, revoltam o povo Tembé-Tenetehara, que vive na TI Alto Rio Guamá. “Perguntamos: por que esses agentes da segurança pública servem de milícia privada para fazendeiros que invadem terra indígenas?”, questionam os indígenas em nota emitida no domingo (14/01).
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Veja o que já enviamosPor telefone, em voz forte e emocionada, a presidente da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), Puir Tembé, alerta que “nunca houve esse tipo de fato com a polícia dentro do nosso território, que já vive outros conflitos. Está sendo um choque por isso e também porque se trata de um jovem que trabalha conosco pela cultura, pela educação, pelas políticas sociais. Vamos lutar para que não fique impune”.
O povo Tembé-Tenetehara voltou a questionar o Estado na segunda-feira (15): “Isac Tembé caçava dentro da terra indígena e foi executado. Por que a Polícia Militar entrou na Terra Indígena, território federal, para executar nosso jovem?”, afirma nota da associação.
Isac Tembé, que levou um tiro no peito, vivia na Aldeia Jacaré, era professor de História e deixou a mulher grávida de cinco meses, três filhos adotivos e uma casa em construção. O corpo do guerreiro foi sepultado às 10 horas de domingo, dentro dos costumes tradicionais dos Tembé. “Permaneceremos em luto e cumprindo com os rituais de passagem”, diz a nova nota.
Também por meio de nota, a Segup confirmou a morte do indígena durante a operação dos policiais militares. “No local, foi encontrado um gado desossado e um revólver calibre 38 ao lado de uma pessoa que havia sido alvejada. A equipe conduziu o homem até uma unidade de saúde, que não resistiu ao ferimento e evoluiu a óbito. Se tratava do indígena Isac Tembé. A Polícia Civil investiga o caso”, descreve a nota.
De acordo com a secretaria, “os policiais militares foram acionados para averiguar um suposto furto de gado em uma fazenda no município de Capitão Poço, localizado no nordeste do Estado, na noite desta sexta-feira (12), em uma área escura e de difícil acesso”. E a nota acrescenta que os policiais, “ao chegar ao local, foram surpreendidos por disparos de arma de fogo, sendo necessário agir em legítima defesa. O grupo fugiu da área”.
Procurada pela reportagem da Amazônia Real, a Segup se restringiu a emitir uma nota em que dá conta de que “policiais da Delegacia de Polícia Civil do município de Capitão Poço estiveram no local do fato para preservar a área e coletar vestígios que auxiliarão na investigação”. Acrescentou ainda “que os armamentos envolvidos na ação, dos militares e o encontrado no local, foram apreendidos e encaminhados para perícia. A Delegacia de Crimes Funcionais (Decrif) dará continuidade às diligências. Os policiais militares que participaram do evento já foram ouvidos pela Polícia Civil e Corregedoria da PM instaurou um Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar as circunstâncias do fato”.
Advogado aponta contradições da polícia
A Associação Indígena Tembé das Aldeias Tawari e Zawaruhu recebeu, na segunda-feira (15), o coordenador geral da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), o advogado Marco Apolo Santana Leão. A entidade representará juridicamente a família de Isac Tembé e o povo Tembé. “Há um clima de revolta por parte dos indígenas e repúdio à alegação da polícia quanto à possível responsabilidade em abate de gado e uso de armas de fogo”, conta, por telefone, Marco Apolo.
De acordo com o advogado, o uso da espingarda é comum durante as atividades de caça. “Mas é comum caçar assim como pescar, especialmente em situação de penúria, durante a pandemia. É preciso que a polícia esclareça o descompasso entre o horário do tiro, a retirada da vítima do local do crime, sem perícia, e a entrada no hospital. Por que as armas não foram apreendidas e as pessoas não foram ouvidas?”, questiona
Marco Apolo acompanha, na aldeia São Pedro, as novas denúncias que os indígenas farão durante a diligência realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (CDHDC-Alepa). “Há um passivo grande e pouca resposta do Estado. A polícia aborda de forma discriminatória os indígenas que se deslocam da aldeia para a [área urbana da] cidade, entre elas Capitão Poço, Santa Luzia e Garrafão de Norte. Eles querem a presença e o acompanhamento do Ministério Público Federal (MPF)”, antecipa Marco Apolo.
Na manhã de terça-feira (16), integrantes da Comissão de Direitos Humanos e Defesa do Consumidor da Assembleia Legislativa do Estado do Pará (CDHDC-Alepa) se deslocaram até a aldeia São Pedro, distante cerca de 20 quilômetros do centro de Capitão Poço.
O presidente da comissão, deputado Carlos Bordalo (PT), disse que pretende se reunir com lideranças indígenas, movimentos sociais e instituições públicas, contando com a presença da Ouvidora do Sistema Estadual de Segurança Pública e Defesa Social (Sieds), a advogada Maria Cristina Fonseca de Carvalho, e assessores da deputada Marinor Brito (Psol). Em nota, a comissão comunica que o “objetivo da diligência é apurar informações e investigar o caso em torno do assassinato, a fim de resguardar os direitos do povo Tembé, dos familiares de Isac Tembé, assim como devido cumprimento dos preceitos legais da Justiça, no que tange à Constituição brasileira e a legislação indigenista na garantia de direitos dessas populações”.
Escalada de violência contra indígenas
Os Tembé-Tenetehara reivindicam a presença do Ministério Público Federal (MPF) na aldeia e o acompanhamento do caso. O MPF afirma ter enviado ofícios, no dia seguinte ao crime, à Polícia Militar, à Polícia Federal, à Polícia Civil e à Fundação Nacional do Índio (Funai). O órgão requisita informações, no prazo de três dias, sobre as circunstâncias do assassinato de Isac Tembé, o andamento dos procedimentos investigatórios instaurados, se houve a realização de perícia no local em que ocorreu o fato e se foi realizada a oitiva das pessoas presentes no local dos fatos.
O assassinato de Isac Tembé e as denúncias do povo Tembé-Tenetehara ilustram dramas descritos no relatório “Violência contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019”, publicado em setembro de 2020, pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Foram registrados 277 casos de violência praticada contra indígenas, mais que o dobro do total registrado em 2018, que foi de 110. São casos de abuso de poder (13); ameaça de morte (33); ameaças várias (34); assassinatos (113); homicídio culposo (20); lesões corporais dolosas (13); racismo e discriminação étnico cultural (16); tentativa de assassinato (25); e violência sexual (10).
Em setembro de 2019, por exemplo, o Ministério Público Federal (MPF) requisitou à Polícia Federal e ao comando do Exército em Belém (PA) operação urgente para evitar ataques de madeireiros contra os indígenas. De acordo com o MPF na ocasião, os Tembé Tenetehara decidiram expulsar os invasores por conta própria, apreendendo equipamentos e maquinários usados no desmatamento ilegal. Os madeireiros passaram a ameaçar atacar aldeias e matar os indígenas.
De acordo com o relatório do Cimi, as violências praticadas contra os indígenas e suas comunidades estão associadas à disputa pela terra. Na categoria “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”, a organização identificou um aumento de casos, saltando de 109 casos registrados em 2018 para 256 casos no primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro na Presidência.
As Terras Indígenas, como a do povo Tembé-Tenetehara, representam o reconhecimento de um direito originário dos indígenas e são as áreas que mais protegem as matas e os seus ecossistemas. A Terra Indígena Alto Rio Guamá foi homologada em 1993 e nela vivem 1.727 indígenas dos povos Awa Guajá, Ka´apor e Tembé.