Um amigo costuma dizer que depois de passar duas férias seguidas no Japão ficou estragado para o mundo. Nada mais parecia ter graça depois da aventura oriental. Bem, imaginem então o estado de quem morou lá durante cinco anos. A vida real fora de Tóquio demora um pouco a entrar nos eixos. Tudo parece meio desorganizado, sem sutileza, um tanto bruto. Aos poucos, a gente se adapta a tudo na vida. Mas tem uma coisa que, admito, ainda me parece estar estragada para sempre: a primavera. Acho que essa não tem mais jeito…
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]Como brasileira, muito pouco acostumada à mudança das estações, eu ficava frustrada sempre que as pétalas começavam a cair, mas aprendi que é isso o que os japoneses mais valorizam: a efemeridade.
[/g1_quote]Os jardins de onde moro hoje (Londres) são lindos nesta época do ano. No entanto, apesar da explosão de cores e do alívio de saber que o frio vai dar uma trégua, algo ainda me parece fora de ordem. Não é culpa das flores e muito menos dos ingleses, apaixonados por jardinagem. É que minhas lembranças continuam tomadas pela nuvem rosé das cerejeiras de Tóquio. Não há nada igual. Não só por causa das centenas de formatos e tons diferentes de sakura (a flor de cerejeira), mas pelo que ela simboliza para os japoneses.
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Veja o que já enviamosÉ emocionante ver um país inteiro saindo às ruas para celebrar um fenômeno natural que vai durar pouco mais de uma semana. O tempo da floração, entre março e maio, varia de um ponto a outro do arquipélago, dependendo da temperatura. Seja onde for, são milhões de pessoas em movimento, buscando os melhores cenários, os lugares mais indicados para ver as flores, fotografá-las à exaustão, comer, beber (saquê, de preferência) e cantar sob a sombra das árvores. Famílias, amigos e colegas de trabalho se juntam com suas cestas de piquenique para a festa, conhecida como hanami – o ato de contemplação das flores. É uma mistura que não se vê em outra época do ano: crianças, homens engravatados que se deram ao direito de sair mais cedo do trabalho, senhoras de quimono, muitos turistas. Mal comparando, o hanami tem um pouco de carnaval (é uma festa popular), de São João (barraquinhas de comida tomam as ruas) e de réveillon (são multidões dignas da Avenida Atlântica na noite de 31 de dezembro), só que tudo é bem mais silencioso e voltado para a natureza.
Como brasileira, muito pouco acostumada à mudança das estações, eu ficava frustrada sempre que as pétalas começavam a cair, mas aprendi que é isso o que os japoneses mais valorizam: a efemeridade. O curto período de tempo das flores é uma lembrança da nossa própria mortalidade, do fato de que a vida é passageira, mas tem seus momentos de extrema beleza. A metáfora é uma marca da cultura japonesa há séculos, como provam poemas e pinturas milenares que já retratavam esse fascínio.
Em tempos medievais, as cerejeiras ficavam escondidas nas montanhas, longe dos vilarejos. Aos poucos, os moradores começaram a trazer mudas para enfeitar templos e a sakura acabou virando um símbolo do poder dos xoguns. Durante séculos, jardins carregados de cerejeiras eram um privilégio da aristocracia. Quando a capital foi transferida de Kyoto para Edo (o antigo nome de Tóquio) no século 17, o país mergulhou num período de paz e a população pôde cultivar suas árvores. Locais marcados por cerejeiras alinhadas se espalharam pela cidade e o hanami se tornou um festival do povo.
Em 2011, o Japão viveu seu momento mais trágico do pós-guerra. No dia 11 de março, um terremoto seguido de tsunami na costa do Nordeste arrasou cidades inteiras e deixou um rastro de 20 mil mortos, além de ter provocado um vazamento nuclear na usina de Fukushima, uma herança radioativa com a qual os japoneses terão que conviver por tempo indeterminado. Algumas semanas depois da catástrofe, as cerejeiras floriram. Mesmo em Tohoku, a região devastada pela onda gigante, as árvores que permaneceram de pé cumpriram as ordens da primavera.
Em Tóquio, o aparecimento das sakuras naquele ano foi melancólico. Não havia clima para celebração. Mas numa terra constantemente ameaçada por desastres naturais, os japoneses mais uma vez enxergaram as flores com outros olhos, como um recado da natureza, uma mensagem de renovação. Numa cena do belo documentário “O Tsunami e a Cerejeira em Flor”, de Lucy Walker, um sobrevivente afirma: “As plantas continuaram de pé. Então nós, humanos, temos que fazer o mesmo”. Foi um hanami silencioso, de preces e não de brindes, porém inesquecível. Outros bem mais alegres vieram depois, contaminando para sempre a minha visão da primavera.
A rua onde moro agora tem duas árvores de sakura. São pequenas, bem simples se comparadas às intermináveis alamedas cor-de-rosa de Tóquio. Sempre dou um jeito de ficar parada embaixo delas por alguns segundos. Os vizinhos devem me achar louca, mas quem sabe um dia eu explico para eles que esse é o meu humilde hanami.
Muito lindo Claudia! Obrigada por nos transmitir sua experiência em culturas tão diversas! Através do seu artigo eu me encantei ainda mais pelo Japão.
Texto lindíssimo e emocionante. Parabéns, Cláudia Sarmento!