O Ministério do Meio Ambiente começou o ano comemorando o sucesso do leilão de concessão dos Parques Nacionais de Aparados da Serra e da Serra Geral, localizados na divisa entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul: a empresa vencedora apresentou proposta de R$ 20,5 milhões iniciais, valor 2.700% superior ao lance mínimo, de R$ 718 mil, e previsão de investimentos de R$ 260 milhões ao longos dos 30 anos de concessão. O leilão de concessão dos dois parques faz parte do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), que tem outros 13 parques nacionais na lista de concessões em andamento, inclusive, alguns dos mais visitados do país como o parques da Serra dos Órgãos (RJ), dos Lençóis Maranhenses (MA), de Jericoacara (CE) e da Chapada dos Guimarães (MT).
A concessão dos parques à iniciativa privada, modelo usado em boa parte do mundo, é vista com bons olhos pela maioria dos ambientalistas: a concessionária ficaria responsável pela revitalização, modernização, operação, manutenção e administração dos serviços turísticos, com a gestão da conservação da biodiversidade sob responsabilidade do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). “Para esse modelo funcionar, é necessário que o governo cumpra sua função pública de fiscalizar o privado – e este governo, no meio ambiente, não está cumprindo suas funções de conservar e preservar”, alerta a engenheira agrônoma Maria Tereza Jorge Pádua, diretora de parques nacionais do IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, antecessor do Ibama e do ICMBio) por 12 anos, ex-presidente do Ibama, e integrante do conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza
A participação da iniciativa privada na administração dos parques nacionais está prevista no Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC), criado por lei em 2000, que determina as regras para criar, implementar e gerir as unidades de conservação. Foi com base no modelo estabelecido no SNUC que foram feitas as concessões de exploração de atividades turísticas em andamento no Parque Nacional do Iguaçu e no Parque Nacional da Tijuca. “A gente vê com muita desconfiança essa inclusão dos parques nacionais nesse programa de parceria de investimentos porque não sabemos os reais planos deste governo. A concessão precisa fazer parte de uma política pública de conservação e preservação. Mas a política do governo tem sido a de passar a boiada para dificultar a conservação e a preservação”, destaca o biólogo Carlos Augusto Figueiredo, professor do Programa de Pós-Graduação em Ecoturismo e Conservação, da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosAs iniciativas do governo contra a preservação do Meio Ambiente, o desmonte dos órgãos ambientais, com corte drástico de recursos e a desvalorização dos servidores, e as seguidas tentativas de afrouxar a fiscalização para facilitar a exploração de áreas protegidas criam essa enorme preocupação dos ambientalistas com a concessão dos parques nacionais. “O problema é que temos um governo que não fiscaliza e até incentiva o afrouxamento das regras ambientais. É difícil acreditar que o arsenal infralegal não vai ser usado para fragilizar a conservação e a preservação dos parques nos processos de concessão”, alerta a urbanista Cecília Herzog, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e coordenadora da pós-graduação em Paisagismo Ecológico na PUC-Rio e integrante da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza (RECN).
De olho na arrecadação
O Brasil tem hoje 74 parques nacionais sob responsabilidade. Sete já estão concedidos à iniciativa privada desde contratos mais antigos como o do Parque Nacional do Iguaçu (PR) e o Parque Nacional da Tijuca (RJ) até concessões mais recentes: iniciados no governo Temer, os processos dos parques de Itatiaia (RJ) e Pau Brasil (BA) foram concluídos em fevereiro de 2019. Outros 12 parques nacionais estão incluídos no PPI: Chapada dos Guimarães (MT), Serra da Bocaina (RJ), Serra da Bodoquena (MS), Serra da Capivara (PI), Serra dos Órgãos (RJ), Jericoacoara (CE), Lençóis Maranhenses (MA), Ubajara (CE), Jaú (AM), Brasília (DF), São Joaquim/SC, além da nova licitação para o Parque Nacional do Iguaçu.
[g1_quote author_name=”Cecília Herzog” author_description=”Urbanista e professora da PUC/RJ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Nós temos um governo que acha e repete que o ambiente atrapalha o crescimento econômico. O governo vê a natureza como um bem a ser explorado. Não tem preocupação ambiental, não tem estratégia para uso sustentável
[/g1_quote]Levantamento realizado ano passado pela consultoria Radar PPP, que monitora o mercado de infraestrutura, identificou mais de 80 projetos de concessão de parques à iniciativa – além dos federais, há processos deflagrados por estados e municípios. O estudo aponta 31 projetos que já estão entre fase de modelagem ou de licitação – inclusive a concessão dos parques de Aparados da Serra e Serra Geral. De acordo com a Radar PPP, somente para estas concessões, a estimativa de investimentos é da ordem de R$ 874 milhões.
Pelo modelo de concessão aplicado nos parques recém-concedidos, o critério principal de julgamento é a maior outorga fixa, ou seja, maior valor pago diretamente ao governo – outro alvo de preocupação dos ambientalistas. “Mesmo que os requisitos para disputa incluam melhorias e investimentos no parque, não é esse o critério principal: não ganha quem assume mais investimentos e se compromete a mais melhorias, mas quem oferece o maior valor. Essa é uma lógica preocupante”, aponta o professore Figueiredo. Nosso grande temor é a concessão ser desvirtuada desde a licitação – com a entrega a uma empresa sem qualificação ou com algum tipo de favorecimento, como vemos em tantos casos. E que a operação seja feita apenas do ponto de vista do interesse comercial, que é legítimo e precisa ser contemplado, mas sem considerar o interesse público, Os parques são bens públicos: sua preservação e conservação interessam a toda a sociedade”, acrescenta.
Os projetos para os parques são voltados para a concessão de serviços para atendimento ao público, de modo que a gestão da conservação da biodiversidade continua sob responsabilidade do ICMBio, que tem participado da modelagem ao lado do BNDES e do TCU. “Nós temos um governo que acha e repete que o ambiente atrapalha o crescimento econômico. O governo vê a natureza como um bem a ser explorado. Não tem preocupação ambiental, não tem estratégia para uso sustentável. Percebe-se, então, uma tendência de favorecer somente as empresas concessionárias, sem a mesma preocupação com a conservação da natureza e o fortalecimento do órgão gestor, o ICMBio”, critica Cecília Herzog.
De acordo com os projetos desenvolvidos pelo PPI, a qualidade do serviço prestado pelo concessionário será medida a partir de indicadores de desempenho, que englobam avaliação da satisfação dos visitantes, da manutenção e conservação da área e das estruturas, e da realização dos investimentos assumidos em contrato. A fiscalização – da qual participará um verificador independente – será responsabilidade do Poder Concedente – no caso, o ICMBio. “Não podemos esquecer que o ICMBio já tem déficit de servidores para cumprir suas funções de fiscalização nas unidades de conservação. Precisaria ser fortalecido para fiscalizar e garantir que as concessionárias respeitem os planos de manejo do parque”, frisa Maria Tereza Pádua, ex-diretora do IBDF e ex-presidente do Ibama.
[g1_quote author_name=”Maria Tereza Jorge Pádua” author_description=”Ex-diretora do IBDF e ex-presidente do Ibama” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]É perfeitamente possível que os parques de Aparados da Serra e da Serra Geral tenham melhorias para os visitantes e para sua preservação. Os parques nacionais andam muito abandonados. O grave problema é que temos no ministério e na direção dos órgãos ambientais pessoas totalmente despreparadas e que nada entendem de preservação e concessão
[/g1_quote]Os ambientalistas defendem que os recursos arrecadados sejam aplicados não apenas nos parques concedidos mas também no ICMBio para melhorar a conservação e a preservação em todas as unidades de conservação. “Parte significativa desses recursos deveria ser usada criar um fundo para financiar a preservação das unidades de conservação. Nem todos os parques nacionais vão atrair interesse das concessionárias. Mas eles precisam ser igualmente preservados”, argumenta Carlos Augusto Figueiredo. Dos 74 parques nacionais, menos da metade está aberta à visitação por diferentes circunstâncias.
Turismo pode ajudar na conservação
De acordo com dados do ICMBio, os parques nacionais receberam, em 2019, mais de 8,5 milhões visitantes, um ranking encabeçado pelo Parque Nacional da Tijuca, que abriga o Cristo Redentor, o Parque do Iguaçu e Jericoacoara. “A valorização da natureza e a educação para a conservação, que podem e devem ser impulsionadas pelo turismo, fazem parte da função dos parques nacionais. Não há porque ter reserva ao conceito de concessão. Nós temos no Brasil, concessões particulares que funcionam adequadamente, como ocorre no Parque Nacional do Iguaçu; esse modelo é usado em todo o mundo”, afirma Maria Tereza Pádua.
Responsável pela criação de mais de 40 parques nos seus 12 anos no IBDF, ela acredita que, se o plano de manejo for respeitado e a concessionária fiscalizada, a concessão seria benéfica. “É perfeitamente possível que os parques de Aparados da Serra e da Serra Geral tenham melhorias para os visitantes e para sua preservação. Os parques nacionais andam muito abandonados. O grave problema é que temos no ministério e na direção dos órgãos ambientais pessoas totalmente despreparadas e que nada entendem de preservação e concessão”, preocupa-se a ex-presidente do Ibama.
Os parques nacionais de Aparados da Serra e Serra Geral são vizinhos e contíguos, situados na fronteira entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Seis empresas apresentaram propostas para ficar com a concessão dos parques por 30 anos, um indicativo, ao lado do valor da outorga vencedora, do potencial econômico e turístico da região. Os dois parques receberam pouco mais de 220 mil visitantes em 2019, atraídos principalmente pelos famosos cânions da região – Itaimbezinho, em Aparados da Serra, e Fortaleza, na Serra Geral.
[g1_quote author_name=”Carlos Augusto Figueiredo” author_description=”Biólogo e professor da UniRio” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Esse impacto ajuda a população a reconhecer o valor do parque para a região. Portanto, é preciso criar mecanismos para garantir que a concessão não se torne um fator de transferência de renda das comunidades locais para a metrópole onde está a sede da concessionária porque isso vai enfraquecer a preservação. Em vez de ajudar na conservação, a comunidade vai passar a sabotar
[/g1_quote]A Construcap – empresa vencedora do leilão – já administra o Parque do Ibirapuera e outros cinco parques menores na capital paulista, onde tem sede. A nova concessionária dos parques do Sul informou que só vai se manifestar após a assinatura do contrato o que deve ocorrer até o fim do mês. Pelo projeto, a empresa deverá oferecer serviços aos turistas, incluindo alimentação, estacionamento, segurança e outros – além de apoiar ações de preservação e proteção do parque, que continuam sob responsabilidade federal. “Realmente não é papel do ICMBio promover passeios turísticos, gerir restaurantes e lanchonetes, desenvolver campanhas de marketing para atrair visitantes. Mas, como em qualquer concessão de um serviço público, é necessário criar os parâmetros para a exploração e garantir a fiscalização”, enfatiza o professor Figueiredo.
Parque também tem impacto sócioeconômico
A concessão dos parques Aparados da Serra e Serra Geral ocorre em paralelo aos problemas de regularização fundiária. Segundo dados do ICMBio, a União ainda precisa adquirir terras particulares correspondentes a 82,5% da área do parque Serra Geral e 29,7% no caso de Aparados da Serra. A concessionária poderia ajudar o governo a de pagar pelas indenizações, já que as áreas coincidem com as marcadas no projeto básico da concessão como potenciais atrações turísticas, o que, entretanto, não está previsto no contrato.
Maria Tereza Pádua frisa que não é possível achar que basta fazer a concessão e todos problemas do parque estarão resolvidos. “Não estarão: os parques nacionais têm problemas fundiários, têm problemas de segurança, são alvo de invasões de garimpeiros, madeireiros e caçadores, por exemplo, têm problemas de conservação causados pela própria dinâmica da natureza e pelas mudanças climáticas. Esses são desafios para o poder público – que não pode terceirizar essa responsabilidade para os concessionários”, alerta a ex-presidente do Ibama. “Esta é outra preocupação que deve estar presente nos projetos de concessão”, acrescenta.
Ex-presidente do ICMBio, Claudio Moretti destaca outra preocupação, relativa aos parques nacionais recém-concedidos na Região Sul. “Por exemplo, no caso dos Parques Nacionais Aparados da Serra e Serra Geral, temos pelo menos uma comunidade quilombola à qual deveriam ser dadas as condições de optar pelo aproveitamento do turismo de base comunitária, ainda que vinculado à concessão de serviços”, aponta.
O biólogo Carlos Augusto Figueiredo enfatiza a necessidade de ter atenção também aos aspectos sócioeconômicos dos parques nacionais. “A maioria dos parques incluídos no PPI já tem alguma exploração de serviços turísticos, aprovados através de permissão ou autorização. Esses permissionários – como os bugueiros dos Lençóis Maranhenses, por exemplo – são pessoas da região, que movimentam a economia da região, que geram emprego e renda na região”, lembra.
Para o professor da UniRio, integrante da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza, este impacto socioeconômico de um Parque Nacional – que tem grande importância, por exemplo, também em Jericoacara e na Chapada dos Guimarães – é fundamental para a unidade de conservação. “Esse impacto ajuda a população a reconhecer o valor do parque para a região. Portanto, é preciso criar mecanismos para garantir que a concessão não se torne um fator de transferência de renda das comunidades locais para a metrópole onde está a sede da concessionária porque isso vai enfraquecer a preservação. Em vez de ajudar na conservação, a comunidade vai passar a sabotar”, alerta Figueiredo.
Muito boa matéria!
Muito esclarecedora essa matéria. Merece ser amplamente divulgada. Especialistas ouvidos são de primeira linha.