Anatomia de uma onda: o que faz a praia do surfe olímpico tão única e desafiadora

Paris 2024: mudança abrupta de profundidade na costa do Taiti garante ondas perfeitas, como a surfada pelo brasileiro Medina, mas corais são risco para atletas

Por The Conversation | ODS 14 • Publicada em 1 de agosto de 2024 - 08:16 • Atualizada em 19 de novembro de 2024 - 11:42

O voo do brasileiro Medina na disputa do surfe dos Jogos de Paris 2024: condições do fundo do mar no Taiti tornam na praia olímpica únicas e desafiadoras, permitindo manobras espetaculares (Foto: Jerome Brouillet / AFP)

(Tom Shand*) – À medida que as disputas dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 esquentam nesta primeira semana, nem todos os olhos estão voltados à cidade-sede. Os fãs de surfe estão com suas atenções no Taiti, do outro lado do mundo, na Polinésia Francesa, um arquipélago no Oceano Pacífico, onde estão sendo disputadas as competições olímpicas do esporte, que, pela segunda vez, fazem parte dos Jogos.

Por que os organizadores de Paris 2024 fizeram essa escolha? Bem, além da costa francesa parecer um lago nesta época do ano, na costa sudoeste do Taiti Iti (Pequeno Taiti, a parte sudeste da ilha), há uma onda diferente de qualquer outra no planeta na praia Teahupo’o, que pode ser traduzido de forma um tanto sinistra como “lugar de caveiras” – e é conhecida, de forma ainda mais sinistra no esporte, como “o mar dos crânios quebrados”.

Leu essa? E o ouro olímpico, como sempre, vai para os ricos

A onda de Teahupo’o é única na forma como quebra.  A parte inferior da onda parece cair abaixo do nível do mar, com a metade superior se dobrando dramaticamente para criar uma forma quase perfeita, um tubo de desenho animado.

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos

É tanto o peso da água na crista mergulhante da onda quanto o risco de ferimentos ou morte para um surfista na posição errada que fazem desta uma das ondas mais pesadas do mundo, em todos os sentidos. (Teahupo’o sedia a etapa do Taiti da Liga Mundial de Surfe há mais de duas décadas; o brasileiro Gabriel Medina – que classificou-se para as quartas-de-final da competição olímpica com uma nota 9,90, a mais alta da disputa, na onda em que foi flagrado ‘voando’ – já foi campeão ali: nota da redação).

Para entender por que a onda quebra assim, precisamos começar com a batimetria: o formato do fundo do mar que influencia as ondas conforme elas se aproximam da costa. Em Teahupo’o, uma combinação de fatores entra em jogo.

A brasileira Tatiana Weston-Webb aproveita o tubo na onda do Taiti na disputa olímpica de Paris 2024: mudança abrupta de profundidade na costa garante ondas únicas (Foto: William Lucas / COB)
A brasileira Tatiana Weston-Webb aproveita o tubo na onda do Taiti na disputa olímpica de Paris 2024: mudança abrupta de profundidade na costa garante ondas únicas (Foto: William Lucas / COB)

Uma onda única

As ondas que chegam a Teahupo’o geralmente se originam de sistemas de tempestades intensas de “roaring forties” ao sul da Nova Zelândia – marinheiros chamam as latitudes entre 40 e 50 graus ao sul do Equador de Roaring Forties (uma alusão aos Roaring – de rugir – Twenties, os loucos anos 20, como ficou conhecida a década 1920: nota da tradução). Quando as ondas chegam ao Taiti, elas se tornam ondulações ordenadas, com alturas de onda de dois a cinco metros e períodos de 14 a 20 segundos entre ondas sucessivas.

Clique aqui e siga o canal do #Colabora no WhatsApp

Esses tipos de ondas de longo período normalmente começam a interagir com o fundo do mar em profundidades de cerca de 200 metros. Na maioria das áreas costeiras, essa profundidade ocorreria até vários quilômetros da costa. Mas, em Teahupo’o, é muito mais perto, apenas algumas centenas de metros da praia.

Essa rápida mudança na profundidade força a onda a “rebaixar” muito rapidamente – a velocidade da onda diminui, a distância entre as ondas se comprime e a altura da onda aumenta.

A mudança é tão abrupta que a onda ainda é muito linear — ela não teve tempo de desenvolver a crista pontiaguda e o vale plano (a parte mais baixa da onda) típicos de ondas em águas rasas.

No alto, a localização da praia olímpica de Teahupo’o e o formato de corais e montanhas em torno; embaixo, a batimetria da área para o surfe e as barreiras de recifes na costa (Arte: Tom Shand/CC)

Ondas quebrando nesse tipo de declive íngreme normalmente entrariam em colapso, quebrando do meio da onda e criando uma bagunça insurfável. Mas isso não acontece em Teahupo’o.

A cerca de dez metros de profundidade, uma plataforma mais plana no recife permite que a onda se estabilize e “fique de pé” com uma face frontal íngreme, antes de finalmente quebrar quando o recife sobe novamente.

E quebra. Devido à linearidade, há muito mais água na crista (a parte acima da água) do que na maioria das ondas, e um vale mais profundo na frente.

Isso cria a quebra característica abaixo do nível do mar em Teahupo’o, com o lábio de virada sendo metade da altura da onda e um jato de ar comprimido forçado para fora do barril da onda após a quebra.

Quanto maior a onda, mais perto da rampa íngreme offshore ela quebra, e mais extremo o mergulho.

O brasileiro Felipe Toledo na competição de surfe de Paris 2024: recifes de corais tornam as ondas de Teahupo’o mais desafiadoras e perigosas (Foto: William Lucas / COB)

Paraíso para surfistas profissionais

Uma série de outras características únicas contribuem para a forma como a onda quebra em Teahupo’o – e o que a torna tão desafiadora para ser surfada, como admitem os próprios atletas.

Um canal profundo corre ao longo da plataforma de recife rasa. A onda não quebra nesta área mais profunda, permitindo que ela se descasque – para quebrar em uma direção (neste caso para a esquerda olhando para a costa) – e permitindo que os surfistas peguem a onda antes que ela finalmente feche no recife raso.

Uma parte da plataforma de recife rasa se estende offshore, para dentro da passagem do recife. Esta área rasa curva e concentra a energia da onda da parte mais larga e profunda da onda de volta para a onda quebrando. Isso acontece particularmente em ondas mais orientadas para o oeste, aumentando a intensidade da quebra.

Além disso, a onda de Teahupo’o quebra em uma direção quase oposta aos ventos alísios predominantes, mantendo a face da onda suave para o surfe.

Uma amplitude de maré baixa também limita os momentos em que o recife está muito profundo ou muito raso para surfar. E a onda está perto da barreira de corais de Passa Hava’e, o que ajuda os surfista a focarem e furarem a onda. Mas, como não está exatamente na barreira, a onda não é afetada por correntes de maré alta ou induzidas por ondas.

Modelos de ondas de nova geração que simulam ondas individuais, em vez de apenas densidade média de energia, fornecem insights sobre o que cria uma onda de surfe como Teahupo’o. Esses modelos fornecem insights sobre o que acontece quando as ondas se aglomeram e refratam (curvam e focam) sobre o fundo do mar à medida que se aproximam do ponto de quebra.

Eles também melhoram significativamente nossa compreensão do que torna uma onda de surfe específica única. Isso pode ajudar a avaliar o impacto potencial de modificações humanas ou naturais no meio ambiente.

*Tom Shand, doutor em Engenharia Costeira, é professor honorário sênior do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Auckland (Waipapa Taumata Rau), na Nova Zelândia

The Conversation

The Conversation é uma fonte independente de notícias, opiniões e pesquisas da comunidade acadêmica internacional.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe:

Sair da versão mobile