Povos tradicionais gaúchos listam 5 ensinamentos para enfrentar a crise climática

Povos tradicionais gaúchos listam 5 ensinamentos para enfrentar a crise climática

Por Ana Carolina Ferreira ODS 13

Uma ano após as enchentes no Sul, representantes de comunidades explicam o que é preciso para a necessária reconexão com a natureza

Publicada em 29 de abril de 2025 - 00:03

Neste final de abril, faz um ano desde o início das fortes chuvas no Rio Grande do Sul quando o estado vivenciou o maior desastre socioambiental de sua história, que afetou mais de 95% das cidades e impactou a vida de milhões de pessoas. A tragédia ainda atingiu de forma desproporcional comunidades tradicionais que são mais dependentes do meio ambiente — e, portanto, mais vulneráveis a eventos extremos —, como povos indígenas, quilombolas, ciganos e pequenos agricultores.

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São esses mesmos povos que apresentam saberes e práticas para promover uma relação mais equilibrada e respeitosa com o planeta. Territórios indígenas, por exemplo, são os mais preservados do país, segundo estudo do MapBiomas: essas terras perderam menos de 1% de sua área de vegetação nativa entre 1985-2023, em comparação a perda de 28% em áreas privadas.

Temos que nos conscientizar da necessidade do cuidado com a natureza, porque senão, as consequências futuras vão ser mais desastrosas do que já foram no ano passado”

Laísa Kaingang
Antropóloga e moradora da Aldeia Guarita, em São Lourenço do Sul (RS)

Além dos povos indígenas, populações tradicionais possuem uma cosmovisão — forma como de ver e interpretar o mundo, a natureza, a sociedade e o universo — diferentes da hegemônica, o que também influência em suas práticas, crenças e valores. São modos de vida intrinsecamente ligados à natureza, que podem inspirar um caminho de reconstrução mais sustentável e consciente. A seguir, apresentamos cinco lições compartilhadas por representantes de povos tradicionais do Rio Grande do Sul, sobre a urgência de estabelecer uma boa relação com o ambiente, frente ao marco de um ano do desastre no estado que, ainda hoje, apresenta consequências.

Laísa Kaingang em palestra: indígenas têm relação de relação de troca, respeito, e reciprocidade com a natureza (Foto: Instituto Federal Farroupilha / Divulgação)

1. Interconexão entre ser humano e natureza

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Laisa Kaingang é antropóloga e membro do povo Kaingang — terceiro maior grupo indígena no Brasil. Ela mora na Terra Indígena Guarita, no município de Redentora, e a cosmologia de seu povo compreende que a natureza e o ser humano são intrinsecamente ligados, sendo praticamente um só. Uma visão de mundo que se distancia da sociedade num geral, segundo ela: “não existe uma relação entre a humanidade e o planeta, existe uma tentativa de destruição”.

Quando vou em Porto Alegre, vejo que nada mudou: continuam aterrando os banhados — que cumprem um papel fundamental de esponja no ecossistema. Eu diria que a sociedade aprendeu pouco e esqueceu rápido todo esse saber que a gente tem acumulado

Huli Marcos Zang
Diretor da Cooperativa dos Produtores Orgânicos da Reforma Agrária de Viamão (RS)

A cultura e a espiritualidade de seu povo dependem da saúde do ambiente, conta. A água, em particular, é vista como geradora de vida e fundamental para a existência humana. “Para nós, povos indígenas, essa relação com a natureza é uma relação de troca, respeito, reciprocidade, em que se tira somente o necessário. Não pode existir um povo indígena se não existir a natureza”, explica.

Laisa Kaingang destaca que a destruição da natureza, motivada por construções em áreas de preservação e pelo avanço de monoculturas, é a causa principal de eventos extremos como enchentes. A reconexão passa, portanto, por reconhecer essa interdependência e a necessidade de proteger o meio ambiente para garantir a própria sobrevivência. “Precisamos parar com as construções de edificações próximas aos rios, o desmatamento, a destruição das matas ciliares, o envenenamento das nossas águas. Temos que nos conscientizar da necessidade do cuidado com a natureza, porque senão, as consequências futuras vão ser mais desastrosas do que já foram no ano passado”.

2. Respeito ao conhecimento ancestral

Comunidades tradicionais acumularam, ao longo de gerações, um conhecimento profundo sobre os ciclos naturais e os limites dos ecossistemas, como conta Huli Marcos Zang, diretor da Cooperativa dos Produtores Orgânicos da Reforma Agrária de Viamão e também presidente da Central Metropolitana de Cooperativas da Agricultura Familiar. O agroecologista traz como exemplo experiências do assentamento Filhos de Sepé, do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), onde vive.

No local, a decisão de construir moradias em áreas mais altas, evitando as zonas de inundação, foi baseada no conhecimento transmitido pelos mais antigos. Esse saber ancestral alertava para o respeito aos espaços do rio, compreendendo que intervir nessas áreas traria consequências negativas, segundo Huli. “A gente não pode tomar decisões que desrespeitam o conhecimento histórico, acumulado pelas comunidades tradicionais. Organizamos as moradias nas partes altas porque os antigos determinavam que a parte baixa era do rio Gravataí, que corta os fundos do assentamento”, explica.

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No último ano, com as fortes chuvas, a área foi alagada, mas as moradias não foram afetadas graças a esse conhecimento ancestral, que passa por gerações. Para o agricultor, a principal lição é a importância de valorizar e respeitar o conhecimento histórico e acumulado sobre a dinâmica da natureza. Huli Marcos critica a falta de memória da sociedade que, mesmo após desastres, continua a aterrar. “Quando vou em Porto Alegre, vejo que nada mudou: continuam aterrando os banhados — que cumprem um papel fundamental de esponja no ecossistema. Eu diria que a sociedade aprendeu pouco e esqueceu rápido todo esse saber que a gente tem acumulado”.

Marcos Huli Zang em depósito de assentamento do MST: agroecologia respeita dinâmicas da terra (Foto: Mariana Raphael / MEC)

3. Agroecologia como prática de harmonia com a terra

Huli Marcos também demonstra a viabilidade de um modelo de produção agrícola em harmonia com o meio ambiente. “Falo de um assentamento que é o maior produtor de arroz agrícola no Brasil. Temos uma área de 1.650 hectares do grão, produzido em larga escala, sem um pingo de veneno, sem adubos químicos sintéticos, produzindo nossa própria semente”, afirma.

Essa prática, segundo o agroecologista, oferece um ensinamento crucial: é possível produzir alimentos de forma sustentável, respeitando os ciclos naturais e a saúde do solo, da água e da biodiversidade. Huli Marcos aponta que a transição para a agroecologia, em contraposição ao modelo do agronegócio, é fundamental para constituir uma melhor relação com a natureza, embora essa mudança esbarre em questões políticas e econômicas: “vejo um discurso predominante de que a sociedade vai de fato combater as mudanças climáticas quando cada um tomar a sua atitude. Elas são importantes, mas não vai mudar se a gente não enfrentar o real problema, que é o agronegócio e a acumulação do capital”.

4. Respeito ao retirar recursos da natureza

Para os povos ciganos, é comum a prática de decifrar os sinais da natureza e do clima, o que lhes permite saber quando algo está diferente e prever certos acontecimentos. “Conhecemos os ventos, as nuvens, as chuvas, o calor e a umidade do tempo. Dependemos da natureza para nossa medicina tradicional. Temos noção da quantidade certa de folhas, frutos, flores ou cascas que podem ser retiradas de uma árvore, com o cuidado de manter a saúde do planeta”, conta a fotógrafa Rosecler Winter, 62 anos, cigana da etnia Sinti. Mas atualmente, em meio às mudanças climáticas, ela conta que não consegue realizar essas previsões como antes.

A gente precisa da terra, do ar, da pedra, da água (que é a mãe, nossa essência). A gente precisa estar em harmonia com o ambiente, porque ele faz parte da nossa espiritualidade

Mestre Preto
Quilombo do Boqueirão, em São Lourenço do Sul (RS)

Segundo Rosecler, moradora de São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre, catástrofes como a que afetou o sul no último ano são “uma resposta do divino. A natureza está respondendo, e essa é a colheita do que foi já plantado há alguns anos”. Para reverter esse quadro, Rosecler conta que a perspectiva de seu povo ensina a importância de pedir licença à natureza antes de retirar qualquer recurso, reconhecendo que não são ilimitados. Ela enfatiza que, assim como não se entra em uma propriedade alheia para retirar algo sem permissão, o mesmo princípio deve ser aplicado à natureza. “Os povos tradicionais têm uma ligação maior com a terra, sabem o que pode ser tirado e em qual momento, justamente para preservar”, conta.

5. “Preservar a natureza é nos preservar”

Para as tradições africanas e as práticas nas comunidades quilombolas, a relação com o ambiente é de pertencimento e cuidado integral. Daniel Roberto Soares, mais conhecido como Mestre Preto, é do Quilombo do Boqueirão, em São Lourenço do Sul (RS), e critica o termo “meio ambiente” por sugerir uma separação entre o ser humano e a natureza. “Na perspectiva africanista, fazemos parte do ambiente, então preservar a natureza é nos preservar” conta. Mestre Preto ressalta que as práticas tradicionais sempre foram de conservação, por dependerem do ambiente. “A gente precisa da terra, do ar, da pedra, da água (que é a mãe, nossa essência). A gente precisa estar em harmonia com o ambiente, porque ele faz parte da nossa espiritualidade”.

De acordo com o representante quilombola, a lição central é a necessidade de internalizar que o ser humano é parte integrante do ambiente e que as ações têm consequências diretas para a saúde do planeta e para a própria sociedade. Em tom de esperança, diz que “ainda temos um ambiente, não está completamente tomado pela destruição e pelos abusos do homem”, mas reforça que não consegue imaginar a sociedade aprendendo com os ensinamentos dos povos quilombolas e de terreiro. “É quase uma utopia, porque essa sociedade nega a nossa existência, o sistema nos trata como invisíveis. Mas se abrissem os olhos para o nosso modo de viver, a nossa identidade africana e a nossa ligação com a natureza, conseguiríamos recuperar a conexão com o ambiente”, finaliza.

Ana Carolina Ferreira

Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.

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