Enchentes no Rio Grande do Sul intensificam ansiedade e depressão

Pesquisa mostra o impacto do desastre climático na saúde mental da população afetada. "Não é uma reação natural não sentir nada", diz psiquiatra

Por Luiza Souto | ODS 13ODS 3 • Publicada em 22 de agosto de 2024 - 09:59 • Atualizada em 29 de agosto de 2024 - 09:54

Cármen viu sua casa destruída, mas suas perdas foram muito além das materiais (Foto: arquivo pessoal)

“A pergunta é: ‘será que eu continuo lutando ou paro por aqui? Já falei ‘chega, não aguento mais’.” O desabafo é da auxiliar de serviços gerais Cármen Souza, 58 anos, sobrevivente das enchentes no Rio Grande do Sul em maio. Depois de perder tudo o que conquistou com o trabalho, ver uma irmã tentar suicídio por causa da tragédia e sofrer com falhas de memória provocadas pelo trauma, ela diz que vem tentado se manter de pé por seus filhos e netos, com muita ajuda de terapia.

Cármen não é exceção. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pela Fundação Universitária Mário Martins revela o impacto das enchentes na saúde mental dos sobreviventes, evidenciando transtornos como estresse pós-traumático (TEPT) e ideações suicidas. 

Entre os 1.552 participantes que responderam a um questionário online logo após as águas invadirem Porto Alegre, 1.138 (73,3%) relataram ter pelo menos sintomas leves de depressão, e 58,8% afirmaram que nunca tiveram esses sintomas antes. Além disso, 32,6% desses indivíduos relataram piora durante o período da pesquisa.

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Analisando aqueles com sintomas moderados a graves de depressão, que somaram 636 pessoas, 53,1% nunca haviam tido esses sintomas, enquanto 41,5% relataram uma piora significativa. Entre os casos moderados a graves de ansiedade (667), 57,3% nunca haviam tido esses sintomas, enquanto 37,6% relataram piora após as enchentes no Rio Grande do Sul. 

Enchentes no Rio Grande do Sul: Carmen Souza teve a casa destruída (Foto: arquivo pessoal)
Carmen Souza teve a casa destruída (Foto: arquivo pessoal)

‘As memórias afetivas foram para o lixo’

Cármen mora no bairro de Mathias Velho, em Canoas, uma das cidades mais afetadas pela chuva. Ela conta que era por volta das 11h do dia 3 de maio quando recebeu uma mensagem de texto de uma de suas filhas avisando que estavam evacuando a região onde mora com sua mãe, seus irmãos, sobrinhos e cinco dos seus seis filhos.

Não foram só bens que a gente perdeu, mas memórias e tudo que planejamos

Cármen Souza
auxiliar de serviços grais

Ao chegar no local, deparou-se com seus parentes tentando armar uma barraca no telhado, pois todas as casas haviam sido tomadas pela água. Cármen pegou suas cachorrinhas e foi para a casa de uma amiga. Somente 26 dias depois ela conseguiu retornar ao que um dia foi seu lar:

“Não foram só bens que a gente perdeu, mas memórias e tudo que planejamos. Meu pai faleceu há dois anos. Eu era muito apegada a ele, e tinha uma camisa com o seu cheirinho que eu guardava com todo amor. Agora é só lodo. As memórias afetivas foram para o lixo”, lamenta Cármen.

‘Bate desespero’

Além da perda material, sua família enfrentou a angústia de tentar localizar um irmão de 39 anos que ficou desaparecido por três dias. E precisou evitar que o pior acontecesse com uma das irmãs, de 48. 

“Ela saiu correndo pela rua desesperada falando que ia se matar, que não aguentava mais. Só não fez besteira porque o psiquiatra dela ligou e conversaram muito enquanto eu a segurava”, lembra Cármen. “Um vizinho chegou a tentar se jogar da passarela da estação”, ela relembra.

A filha de Cármen, que já havia tentado suicídio em outras ocasiões, viu sua condição psicológica se agravar com a enchente. “Depois que ela se deparou com tudo isso, precisou ter bastante amparo, com medicação. Ela não pode ouvir o barulho de chuva”, relata Cármen.

Diante do desespero, Cármen e sua família passaram a ter acompanhamento psicológico.  “Todas as pessoas que eu conheço tiveram que fazer tratamento. Talvez hoje eu não estivesse conversando com você, porque bate desespero”, confessa ela, destacando a necessidade de suporte emocional para enfrentar os traumas como as enchentes no Rio Grande do Sul.

‘Não é uma reação natural não sentir nada’

Cármen e parte da sua família são atendidos na Fundação Universitária Mário Martins onde, em parceria com o departamento de psiquiatria da UFRGS, pesquisadores estão analisando dados de sintomas de depressão, ansiedade e estresse agudo das vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul.

Você vê uma cidade inteira submergir. Não é uma reação natural não sentir nada

Simone Hauck
Psiquiatra na UFRGS

Supervisora do ambulatório de trauma do Hospital de Clínicas da UFRGS, a psiquiatra Simone Hauck explica ser normal ter depressão, ansiedade, transtorno de estresse agudo e TEPT em situações de tragédia:

“Você vê uma cidade inteira submergir. Não é uma reação natural não sentir nada.”

Exemplo disso foi o desastre provocado pelo rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, em Minas Gerais, em 2016. Levantamento do Núcleo de Pesquisa Vulnerabilidades e Saúde (NAVeS) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em conjunto com a Cáritas Brasileira dois anos após a tragédia, avaliou que o índice de depressão entre a população atingida era o maior do que na população geral: 28,9% dos moradores daquela região tinham problemas, taxa cinco vezes maior do que a registrada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a população brasileira em 2015, de 5,8%.

‘Suporte emocional faz muita diferença’

Também foi analisada a taxa de ideação suicida entre as vítimas do RS: ela variou entre 8% e 8,5%, número considerado inferior aos observados em outros estudos brasileiros. 

O estado apresenta, historicamente, a maior taxa de mortalidade por suicídio do país: 12,37 por 100 mil para um total de 7,45 por 100 mil habitantes.

Para Simone, que conseguiu levantar apenas os dados sobre ideação suicida, os números vieram baixos pelo nível de engajamento da comunidade para ajudar: 

“A minha hipótese para isso tem a ver com empatia. A gente sabe que algumas coisas fazem muita diferença se intervirmos no início, como um suporte emocional. E não precisa ser especializado. Esse é meu maior ponto.”

A psiquiatra Alice Cacilhas, da Fundação Universitária Mário Martins, que coordena o trabalho junto a Simone, concorda e acrescenta:

“Eu tenho um ambulatório grande e atendi muitas pessoas. E a questão do suicídio não foi um problema. Na minha teoria, às vezes, a angústia é tanta para se salvar que uma vez que a pessoa segura isso, dá uma certa protegida.”

Casa de Dinarte afetada pela enchente: solidariedade ajudou saúde mental (Foto: arquivo pessoal)

‘O grande pulo é não ficar sozinho’

O estudante de medicina Dinarte Valdoir Mello da Luz Júnior, 31 anos, atesta que foi somente com ajuda de voluntários e de uma psicóloga que hoje está vivo para contar o que lhe aconteceu. Ele adquiriu TERF, e tem um acompanhamento quinzenal com uma profissional. “Me senti um pouco mais agressivo após as enchentes.”

Sua casa, no bairro Fátima, em Canoas, ficou submersa, e Dinarte passou alguns dias sem dar notícias aos colegas da UFRGS. Ele e os pais foram para um abrigo com mais outras 25 mil pessoas e depois para a casa de um tio. 

Até que os amigos acharam o universitário e ofereceram ajuda. Um grupo auxiliou na limpeza de sua casa, que até hoje tem como porta uma geladeira estragada. 

O pai, de 80 anos, perdeu o transporte que usava para trabalhar, e junto com a mãe de Dinarte, de 70, estão vivendo com a aposentadoria. “Nossa renda baixou muito. A sorte é que consigo fazer duas refeições na universidade”.

Dinarte também recebeu cesta básica e apoio emocional. “Não é que não tenha pensado em desistir, mas a gente não tem essa opção. O grande pulo é não ficar sozinho”, conclui.

O estudante Santiago teve sua casa ilhada: participar de estudo sobre saúde mental amenizou angústia (Foto: arquivo pessoal)

‘Ajudar foi uma forma de amenizar a angústia’

Aluno de iniciação científica de Simone, Santiago Diefenthaeler, 22 anos, atuou na coordenação da pesquisa mesmo estando fora de casa – sua rua, no Centro Histórico, ficou ilhada e ele, que não perdeu o imóvel, não tinha como voltar.

Acho que isso (ajudar) tem um papel um pouco terapêutico. Para mim, foi uma forma de  amenizar a minha angústia também

Santiago Diefenthaeler
Estudante UFRGS

Por dias e noites, procurou pessoas que não davam notícias, além de ter organizado vaquinhas para atender demandas urgentes como compra de remédio e produtos de necessidades básicas para as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. Foi Santiago quem auxiliou Dinarte na limpeza da casa. Para ele, ajudar também é terapêutico.

“Vi naquilo ali uma forma de me fazer útil. Acho que isso tem um papel um pouco terapêutico. Para mim, foi uma forma de  amenizar a minha angústia também.”

Os dados da pesquisa vão ser publicados num artigo científico numa importante revista internacional. A ideia, explica Simone, é ensinar sociedade a se ajudar mais:

“Tem como treinar pessoas comuns, porque um abraço, uma escuta ou pegar um esfregão para ajudar a limpar já ajuda”.

E Alice complementa:

“E a gente vai seguir pesquisando quais medidas ajudam as pessoas a diminuir esse estresse, e quais abordagens serão mais efetivas daqui para frente.”

Luiza Souto

Jornalista e pesquisadora do Rio de Janeiro. Tem experiência na cobertura sobre Direitos Humanos, diversidade e gênero. Também produtora e roteirista de campanhas e minidocumentários com essas temáticas. Contribuiu com veículos como Folha de S. Paulo, Extra, O Globo, GloboNews e UOL.

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