(Leila Salim e Priscila Pacheco*) – Depois de muito impasse, tensão e de estar a um passo da implosão, a COP29 aprovou a nova meta de financiamento climático, a NCQG, nas primeiras horas da madrugada de domingo (24/11) pelo horário do Azerbaijão (noite de sábado no Brasil). Houve forte oposição dos países em desenvolvimento, que consideraram a decisão “um insulto” e uma “flagrante violação da justiça climática”. A decisão prevê a destinação de US$ 300 bilhões por ano até 2035 – muito longe dos US$ 1,3 trilhões reivindicados – para financiar a ação climática nos países em desenvolvimento.
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Além disso, o texto não coloca os países desenvolvidos como responsáveis (mas sim “na dianteira” dos esforços), não determina que esse financiamento deve ser público (o que pode diluir as fontes e responsabilidades) e abre espaço para que parte do aporte seja feito através de mecanismos de empréstimo (o que é visto como risco de endividamento pelos países em desenvolvimento).
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Veja o que já enviamos“O acordo de financiamento fechado hoje em Baku distorce a UNFCCC e subverte qualquer conceito de justiça. Com a ajuda de uma presidência incompetente, os países desenvolvidos conseguiram mais uma vez abandonar suas obrigações e fazer os países em desenvolvimento literalmente pagarem a conta. O Brasil agora tem mais uma tarefa espantosa para a COP30: aumentar o financiamento e reconstruir a confiança entre os países”, disse Claudio Angelo, coordenador de Política Internacional do Observatório do Clima.
Stela Herschmann, especialista de Política Internacional do Observatório do Clima, ressaltou que o resultado é uma zombaria para os países em desenvolvimento e os mais vulneráveis. “A nova meta de financiamento climático adotada hoje é um passo para trás em comparação à meta anterior. Não apenas o valor é insuficiente, mas a responsabilidade dos países desenvolvidos é diluída e dificilmente será revertida no futuro”, comentou.
Logo após a aprovação do acordo – aplaudida por parte significativa do plenário, para surpresa da outra parte, frustrada – a primeira fala veio em tom de protesto, pelo representante de Cuba. O delegado considerou o resultado insuficiente e uma demonstração da falta de comprometimento dos países desenvolvidos em arcar com suas responsabilidades: “Uma meta de financiamento que, direta ou indiretamente, pretende converter os países em desenvolvimento em contribuintes ao montante necessário, que deve ser responsabilidade dos desenvolvidos, é uma subversão da Convenção e Acordo de Paris. Isso aumenta o fluxo de recursos do Sul Global ao Norte Global, em uma dinâmica contínua de colonialismo ambiental (…). Os 300 bilhões aprovados são menos, hoje, do que os 100 bilhões de 2019, considerando a inflação”, criticou.
A reação mais forte veio na sequência, da representante indiana, Chandni Raina, que declarou a impossibilidade de aceitar o acordo. “Queremos que nos escutem e escutem nossas objeções antes de aprovar. Os países desenvolvidos estão liderando um objetivo de US$ 300 bilhões para 2025. Isso não resolve os problemas dos países em desenvolvimento. A proposta que temos não vai resolver nada. A proposta é muito baixa, não é algo que permita uma ação climática para sobrevivência. Não podemos aceitá-la. Esse documento não é nada mais do que uma ilusão de ótica. A Índia se opõe à aprovação desse documento”, disse, sob muitos aplausos do plenário.
Mukhtar Babayev, presidente da COP29, afirmou que as objeções seriam “registradas no relatório final”, indicando que a oposição dos países não alteraria a decisão. O acordo final faz uma referência à meta de US$ 1,3 trilhões anuais, estabelecida em consenso como necessidade de financiamento para os países em desenvolvimento. Mas ela aparece como um horizonte, não um compromisso, o que foi duramente criticado pela sociedade civil. Além disso, a possibilidade de financiamento através de empréstimos foi denunciada.
Laurie van der Burg, gerente global de campanha de finanças públicas da Oil Change Internacional, relacionou a fragilidade da decisão aos interesses da indústria fóssil: “A oferta de financiamento climático de US$ 300 bilhões em Baku é uma farsa — nem de longe o que é necessário, e nem protegida contra a contração de dívidas. Os países ricos estão planejando o fracasso da eliminação gradual dos combustíveis fósseis e se esquivando de responsabilidades, forçando os países em desenvolvimento e o setor privado a cobrir a conta. Isso cria uma armadilha de dívida para os mais vulneráveis à crise climática”, destacou.
“Se os países ricos colocassem seus trilhões acumulados na mesa em vez de dar desculpas, veríamos um progresso real na eliminação gradual dos combustíveis fósseis. Os EUA, a UE e o Reino Unido mostram uma indiferença repugnante enquanto milhões pagam com suas vidas. Não desistiremos”, completou van der Burg.
Para se ter uma ideia: dividindo os US$ 300 bilhões atuais pelo total de países menos desenvolvidos, cada uma das 45 nações mais vulneráveis à crise do clima ficaria com US$ 6,6 bilhões por ano. O cálculo para auxílio e recuperação do Rio Grande do Sul após as enchentes históricas deste ano é de até R$ 100 bilhões (cerca de US$ 17 bi). Por outro lado, só o Plano Safra da agricultura familiar anunciado pelo governo federal em 2023 destinou mais de R$ 400 bilhões (quase US$ 69 bilhões) em créditos ao agronegócio.
Expectativa maior para COP30
Horas antes da plenária final, a ministra Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima) comentara em entrevista coletiva a “experiência dolorosa” vivida em Baku com a falta de acordo sobre o tema. A ministra reafirmou que a proposta apresentada no dia anterior “não é algo aceitável” e sinalizou que as partes trabalhavam em torno do montante de US$ 300 bilhões por ano.
“Se, em Dubai, estabelecemos que deveríamos estar alinhados com 1,5ºC [a meta do Acordo de Paris para controle do aquecimento global] e para isso era necessário triplicar as energias renováveis, duplicar a eficiência [energética], e fazer transição para [o fim] do uso de fósseis, então aqui temos que sair com alinhamento do que é necessário em termos de recursos para cumprir com esses esforços”, disse Marina Silva.
Ela destacou ainda as tarefas pós-Baku, no caminho para a conferência do próximo ano, em Belém: “Até a COP30, nosso objetivo central passa a ser alinhar NDCs suficientemente ambiciosas para alcançar a missão 1,5ºC. A COP30, em Belém, é realmente um grande desafio que só poderemos alcançar com o esforço e a colaboração de cada um de nós aqui representados”, afirmou.
A responsabilidade do Brasil foi também destacada por Marcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, que espera que a COP30 possa preencher as lacunas deixadas pela conferência de Baku: “A presidência da COP29 foi desastrosa, perdendo apenas para o conteúdo do texto aprovado, que é absolutamente insuficiente para qualquer solução da crise climática. O desfecho de Baku escancara que os países ricos fogem de qualquer responsabilidade, além de deixar aberta a conta do financiamento. A COP30, sob a liderança do Brasil, terá que ser muito competente e dedicada para preencher as lacunas deixadas por esta conferência, promover o avanço de ambição e manter o objetivo de 1.5 °C vivo”, disse.
Outras reações
As organizações ambientalistas foram unânimes na crítica ao acordo de Baku e ressaltaram o peso da próxima Conferência do Clima, em Belém. “Como presidente da próxima Conferência do Clima, é fundamental que o Brasil se coloque como protagonista da viabilidade do 1.5º C, cobrando o aumento de ambição dos demais países em todas as áreas de negociação, e dando o exemplo, em especial no que se refere a metas que abarquem a economia como um todo enquanto aos objetivos de eliminação dos combustíveis fósseis e de eliminar o desmatamento e a degradação de vegetação nativa”, afirma Maurício Voivodic, diretor executivo do WWF-Brasil, para quem o resultado da COP29 corre o risco de atrasar a ação climática precisamente no momento em que sua aceleração é mais crítica e necessária. Para o WWF Brasil, o acordo de financiamento climático que não chega nem perto de atender as necessidades de financiamento dos países em desenvolvimento.
O mesmo tom foi usado pela diretora de Campanhas do Greenpeace Brasil, Raíssa Ferreira, sobre o fim da COP29. “Com um processo conturbado e pouco transparente, a COP29 adotou uma nova meta de financiamento aquém das necessidades dos países em desenvolvimento e sem nenhuma obrigação clara para os países desenvolvidos. A rota para Belém será difícil, mas temos confiança na liderança brasileira para entregar um resultado que contribua para a justiça climática global”.
A cientista política Karen Silverwood-Cope, diretora de Clima do WRI Brasil, viu no acordo de financiamento climático um primeiro passo para sair do patamar anterior que era muito insuficiente. “Só que US$ 300 bilhões também é um valor bastante distante dos US$ 1,3 trilhão que os países em desenvolvimento precisam investir todos os anos até 2035 para dar uma resposta ao novo paradigma da crise climática. Trata-se de um aumento que meramente cobre a inflação dos US$ 100 bilhões anuais prometidos em 2009. A lacuna de investimentos no presente aumentará os custos no futuro, criando um caminho potencialmente mais caro para a estabilidade climática”, afirmou, destacando o protagonismo brasileiro na COP29. “Agora, ao assumir a presidência da COP30, o Brasil terá o dever de continuar sendo um exemplo positivo e cobrar maior ambição dos demais países, assim como recuperar a confiança das partes após um processo decisório desgastado e em um contexto geopolítico mais desafiador”.
Para Natalie Unterstell, presidente do instituto Talanoa, o acordo na COP29 mantém vivo o espírito do Acordo de Paris, mas está muito aquém de abordar a urgência da crise climática. “Compromissos financeiros incrementais e lacunas em medidas concretas de mitigação deixam claro que ainda há muito trabalho pela frente. O caminho até Belém será crucial para transformar esse progresso modesto em ações significativas. O desafio agora é reconstruir a confiança, reformar as COPs e garantir que o próximo passo corresponda à ambição que o mundo exige”, afirmou.
*Leila Salim, jornalista e doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, colabora no Observatório do Clima e no Fekebook.eco; Priscila Pacheco é jornalista, colaboradora do Observatório do Clima e co-fundadora da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias