Pesquisa publicada recentemente na revista Cadernos de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), mostra que o Brasil enfrentou 23.452 desastres climatológicos entre 2013 e 2021. A Região Nordeste foi a mais afetada com 16.823 registros, ocasionados principalmente por conta da seca e de queimadas. O estudo foi realizado no Programa de Mestrado Acadêmico em Tecnologias da Informação e Gestão em Saúde, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), e analisa o impacto de diferentes tipos de desastres na saúde pública.
No estudo intitulado “A carga de saúde dos desastres naturais e tecnológicos no Brasil de 2013 a 2021”, conduzido por três pesquisadores da área da saúde, são analisados dados disponíveis no Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2iD), com base na Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (Cobrade), utilizada pela Defesa Civil para decretar situação de emergência em municípios. “Eventos climatológicos são seca, incêndio florestal e derretimento das calotas polares, ou seja, são fenômenos dentro de ciclos. E os nossos dados mostraram que os desastres climatológicos foram os que mais ocorreram e afetaram a população brasileira”, afirma o pesquisador Abner Willian Quintino de Freitas, mestre em Gestão em Saúde e um dos autores do estudo.
No total do período analisado, o Brasil registrou 51.184 desastres, divididos em duas categorias: desastres naturais e desastres tecnológicos. A classificação de desastres é feita com base na definição do Centro de Pesquisa de Epidemiologia em Desastres, da Universidade de Louvain, e adotada também pelo Cobrade no Brasil. No entanto, esse número total também considera desastres biológicos, o que inclui dados da pandemia de Covid-19.
No grupo de desastres naturais são considerados, além dos climatológicos e biológicos, desastres meteorológicos, hidrológicos e geológicos. Enquanto os desastres tecnológicos são incêndios urbanos, desastres relacionados a obras civil, acidentes com produtos perigosos ou desastres relacionados ao transporte de passageiros e cargas não perigosas.
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Veja o que já enviamosAbner explica que um desastre se caracteriza quando um evento adverso gera danos humanos, materiais e/ou ambientais em um ecossistema vulnerável, ou seja, está associado diretamente ao impacto em um ambiente ou cidade. Ainda de acordo com o pesquisador, eventos adversos podem gerar mais de um tipo de desastre. “Temos a ocorrência de um evento meteorológico que é a chuva intensa, que vai gerar um desastre hidrológico com a inundação. Só que essa chuva com a inundação causa o encharcamento do solo, que vai provocar um desastre geológico por conta do deslizamento”, descreve o pesquisador.
Fotografia do impacto na saúde pública
Professora da UFCSPA e orientadora de Abner no mestrado, a bióloga Ana Gorini da Veiga critica a falta de integração entre bancos de dados sobre desastres e bancos de dados de saúde da população, o que dificulta as pesquisas e, consequentemente, a gestão de riscos e o mapeamento dos impactos.
No caso do estudo assinado por Gorini, Abner e pela professora Regina Rigatto Witt, os dados usados são fornecidos no momento em que a Defesa Civil registra o pedido de decretação de situação de emergência e estado de calamidade pública em um município, porém não são mais atualizados após a liberação dos recursos para aquela localidade. “Esse dado é gerado como uma fotografia da ocorrência”, explica a pesquisadora.
“Em termos metodológicos, fizemos um estudo descritivo, que é para primeiro dimensionar o quanto ocorreram desastres e, num segundo momento, fizemos uma análise da taxa de letalidade. Em termos absolutos, o que mais matou foram os desastres biológicos, por conta da pandemia de Covid-19, e esse dado entra, porque muitos municípios precisaram decretar situação de emergência, o que só a Defesa Civil pode fazer”, explica Abner de Freitas, também CEO da Hopeful Brasil, organização que prepara indivíduos e instituições para lidar com desastres. Abner também critica a falta de detalhamento sobre o perfil das vítimas, o que dificulta a preparação de políticas públicas.
Desastres geológicos com maior taxa de letalidade
Em relação à taxa de letalidade dos desastres, a pesquisa mostra que a proporção entre desastres e vítimas fatais é maior para os desastres geológicos. De acordo com o especialista, esse tipo de desastre pode ser de três tipos: atividade vulcânica, terremotos e deslizamentos, sendo que os dois primeiros não têm incidência no Brasil, restando apenas os deslizamentos. “Na série histórica (2013-2021), a cada 10 pessoas expostas a um desastre geológico no Brasil, 7 morreram. Na Região Sudeste, a cada 10 pessoas afetadas por um desastre geológico, 9 morrem. E isso nós temos todo janeiro, que são as chuvas intensas e os deslizamentos”, contextualiza Abner de Freitas.
Em fevereiro de 2023, mais de 60 pessoas morreram no litoral norte de São Paulo, a maioria no município de São Sebastião onde a chuva provocou deslizamentos que soterraram dezenas de casas. O volume de chuva na região foi recorde: choveu em poucas horas o dobro da média para fevereiro.
Ana Gorini destaca que a pesquisa pode colaborar na preparação dos gestores públicos para lidarem com eventos que ocorrem com frequência. “A seca é um dos desastres que mais mata. E sabemos que o Nordeste, o Pampa gaúcho e várias outras regiões sofrem todos os anos com secas”. De acordo com ela, esse tipo de desastre é um dos mais negligenciados no país. “O que a gestão pública pode fazer com nosso estudo é planejamento. Entender como os eventos afetam o seu municípios, quais são as estratégias e os serviços que eles podem organizar para responder a essa ocorrência”.
Abner de Freitas ressalta também que é preciso observar o impacto desses desastres na saúde pública e na vida das pessoas. “O que vale lembrar é isso: tem gente morrendo por conta de desastres”, acrescenta.
Desastres meteorológicos são previsíveis
De acordo com a pesquisadora Débora Simões, professora de Meteorologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), os desastres naturais são, quase sempre, previsíveis, principalmente no caso dos meteorológicos. Nos dados levantados no estudo da UFCSPA, as regiões Sul e Sudeste são as mais frequentemente atingidas por fenômenos que podem gerar esse tipo de desastre, que somaram 6,567 registros entre 2013 e 2021.
Durante o mês de julho, o Rio Grande do Sul sofreu com dois ciclones extratropicais que causaram diversos estragos materiais. Além disso, no caso do primeiro evento, que atingiu o litoral norte e a região metropolitana de Porto Alegre, 15 pessoas morreram. “Esses eventos ciclônicos são normais e toda semana acontece um, porque o que chamamos de ciclone é um sistema atmosférico de baixa pressão”. Segundo a especialista em meteorologia, a formação do fenômeno mais próximo ao continente potencializou os ventos e chuvas, soma-se a isso a falta de preparação das cidades para lidar com o fenômeno. “Nós não temos uma infraestrutura preparada para receber esses eventos severos”, afirma Débora Simões.
Ainda que as previsões não deem conta de precisar o volume de chuva e o local exato, situações atípicas são visíveis com antecedência, afirma Débora Simões. Ela exemplifica com o caso de uma cidade próxima a Pelotas durante o segundo ciclone que atingiu o RS. “Esperamos 150 milímetros por mês e estava sendo previsto 250 milímetros em 12 horas, então já tinha algo muito estranho para acontecer. E a gente imaginava que o modelo ia errar, mas já era para todo mundo estar preparado. Só que choveu 6 vezes mais, 680 milímetros”, relata ela.
Outro elemento abordado pela pesquisadora é a temperatura mais elevada do Oceano Atlântico, fator que pode colaborar para a intensidade e frequência de desastres meteorológicos. De acordo com ela, uma hipótese para o aquecimento do Atlântico são os efeitos das mudanças climáticas. “Ainda não temos essa confirmação, mas são cenários possíveis, verificarmos aumento das temperaturas dos oceanos. O que vai conduzir a sistemas de tempestade mais severos”, alerta.
Débora Simões explica que é necessário observar o contexto de cada situação, tanto para se preparar e pensar em políticas de mitigação, como para evitar o pânico. “No primeiro ciclone do litoral norte, as pessoas fizeram pouco caso. No segundo, todo mundo entendeu a gravidade da situação. Agora, todo mundo ficou apavorado, mas não disseram que não seria comparável ao que foi observado antes”, explica a professora, fazendo uma comparação com o ciclone que passou pelo Rio Grande do Sul entre os dias 26 e 27 de julho.
Na visão da especialista, é preciso considerar diferentes nuances ao pensar em desastres. “Tem a previsão de um evento natural que vai ser fora do padrão, que vai atingir um local mais vulnerável, em uma situação que não foi tomada uma atitude de mitigação prévia. Então, são várias coisas que vão configurar esse cenário de desastre”, aponta Débora Simões.