ODS 1
Afinal, quem paga a conta das emissões?
Dia da Sobrecarga da Terra será em 2 de agosto e o direito ambiental surge para regular as questões em torno dos responsáveis por esses impactos
Por felicidade, acaso ou tomada de consciência tardia, o assunto “mudanças climáticas” tem ocupado fortemente o noticiário este ano. Dos eventos mais recentes que aumentaram o foco sobre o tema, a onda de calor em alguns países da Europa está na ponta, alavancando reflexões sugeridas há tempos e sempre guardadas num nicho das situações anódinas. É o espaço dos problemas cuja solução depende de tanta coisa que… é melhor postergar um pouco mais.
Fato é que, pelo menos aparentemente (pode ser apenas mais um momento propício, nunca se sabe) as mudanças climáticas se impuseram como tema urgente. Termômetros alcançando níveis altíssimos na Itália, na Grécia, é algo que atrapalha o turismo, mexe com a saúde, desnorteia até um planejamento urbano que tem contado sempre com temperaturas mais amenas. Mais ou menos como se nevasse na Praia de Copacabana no inverno.
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Hão de se perguntar, alguns desavisados, se afinal de contas estamos sendo flagrados por esse fenômeno, ou se já se sabia que tudo estava para acontecer. A resposta é: as descobertas vêm sendo feitas – assim mesmo no gerúndio – e em passos lentos, mas com embasamento científico.
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Veja o que já enviamosEm 1972 aconteceu a primeira Conferência Mundial do Meio Ambiente ancorada pelas Nações Unidas em Estocolmo. De lá surgiu o trabalho “Um só planeta”, o que se pode chamar de reconhecimento de que os bens naturais, também chamados de recursos naturais, são finitos.
Mas, como explica o embaixador Andre Corrêa do Lago em ‘Estocolmo, Rio, Joanesburgo – O Brasil e as Três Conferências Ambientais das Nações Unidas”, a Conferência de Estocolmo, de maneira geral, não causou um grande efeito na opinião do grande público:
“O processo negociador é visto muito mais sob ângulo pessimista, – como um triturador de ideias progressistas”, escreve ele.
Stefano Mancuso, escritor italiano e uma autoridade mundial em Neurobiologia Vegetal, estende essa percepção da não aderência até mesmo a 1988, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou com unanimidade uma resolução sobre o tema: “Proteção do Ambiente Global para as Atuais e Futuras Gerações da Humanidade”. Mesmo contrapondo com a ideia de que sem esses tratados assinados em conjunto a situação poderia ser ainda pior, Mancuso pontua:
“Permanece o fato inegável de que estes acordos, em parte devido às notórias dificuldades de implementação, em parte devido à escassez de vontade e incapacidade política, parecem ser totalmente ineficazes”.
Tantas cabeças, tantas sentenças diferentes, serão mesmo capazes de construir um guia eficiente para se evitar que a espécie humana seja expulsa do planeta?
A ideia é avançar no debate, mesmo que para isso tenhamos que retroceder na história até o século XVIII, na primeira Revolução Industrial, que começou a poluir a atmosfera. Países ricos passaram a construir coisas com a matéria prima fornecida pelos países pobres. Ok, a equação não é assim tão infalível, há variáveis. Mas o fato é que a conta da poluição de gases de efeito poluente que estão ajudando a aquecer o planeta e, portanto, a severos eventos naturais, foi para os países ricos. Como o calor agressivo na Europa, por exemplo.
Responsabilidade comum, porém diferenciada
Como já se imagina, essa discussão ainda está longe de ter um resultado. A ativa percepção do presidente Lula, de que as questões climáticas são tema de suma importância, tem pintado a questão com cores fortes e ajuda também a trazê-lo à tona.
“Não há dúvidas de que precisamos ampliar nossos esforços de mitigação, em especial os países que historicamente mais emitiram gases de efeito estufa, mas não podemos perder de vista a demanda crescente por adaptação, perdas e danos”, disse ele em Hiroshima no encontro do G7.
Em resumo, a questão é a seguinte: países ricos, que se beneficiaram com a matéria prima que colheram dos pobres, agora precisariam ajudá-los a diminuir as emissões, ajudando a pagar a tecnologia para mitigá-las. E, quem sabe assim, arrefecer a fúria dos eventos extremos que prejudicam sobretudo os mais pobres.
Numa recente oficina organizada pelo escritório de advogados Graça Couto, em que o tema veio à tona, a expressão “responsabilidade comum, porém diferenciada” chamou a atenção. Do que se trata? Como solucionar?
Um dos sócios do escritório e especialista em direito ambiental, Guilherme Leal, lembra que, sim, existe uma regra: países desenvolvidos que contribuíram de forma significativa para a acumulação histórica de gases de efeito estufa na atmosfera devem liderar esse percurso de transição para uma economia de baixo carbono.
“Eles têm uma responsabilidade histórica que os diferencia, e não à toa existe esse princípío de responsabilidade comum porém diferenciada, que não é um princípio novo, está previsto na Convenção Quadro da Rio-92, e é um princípio do direito ambiental internacional”, disse Guilherme Leal.
O advogado não tem outra escolha senão deslizar também na linha do tempo para prosseguir com a reflexão. Cinco anos depois da Rio-92, Conferência que reuniu delegações de 172 países e trouxe ao Rio de Janeiro 108 chefes de Estado, o Tratado de Kyoto foi assinado, organizando uma relação de países desenvolvidos que assumiram expressamente o compromisso de mitigação de emissões.
“Tínhamos ali o que chamamos de diferenciação binária, ou seja, ou o país tem ou não tem o compromisso (de mitigar as emissões). Kyoto foi esse movimento, de compromissos fortes. Mas Estados Unidos não ratificou, alegando que não podia incorporar essas obrigações internamente. Alegou ainda que o mundo vivia um contexto diferente, quando Índia, China, Rússia e Brasil já estavam contribuindo para as emissões significativamente. Não seria justo que os mais ricos, sozinhos, assumissem o compromisso”, disse Leal.
Na época o assunto foi, assim, esfriado. Mas algum tempo depois foi novamente levantado. Começam a surgir, nos debates das Conferências, a ideia de tratar essa diferenciação de responsabilidades de maneira mais flexível. Até que, em 2015 em Paris, na COP-15, consegue-se o já famoso Acordo de Paris. É um acordo híbrido, como lembra Guilherme Leal:
“Aquela relação de países organizada em Kyoto é extinta porque se decide não impor metas específicas a ninguém. Cada país assume um compromisso de acordo com suas próprias características e particularidades e capacidades nacionais. A obrigação de apresentar esse compromisso (chamado NDC) é de conduta, não de resultado. Não há uma obrigação de qual meta que o país tem que atingir, não há uma autoridade global que fará esse juízo”, disse Leal.
É um acordo híbrido: rígido em procedimento (obrigações fortes de apresentar um compromisso) e flexível em substância (quando diz que cada país é livre para dizer qual será esse compromisso).
A importância do direito ambiental
E ninguém pense que será fácil. Os eventos estão aí, a medir a urgência. Instituições privadas, civis, públicas, não se cansam de emitir alertas sobre os impactos ambientais que nossa produção está causando.
Estamos próximos, por exemplo, do Dia da Sobrecarga da Terra, que este ano cairá no dia 2 de agosto. Trata-se de uma efeméride criada por organizações da sociedade civil para marcar o dia do ano em que a humanidade, tendo consumido toda a produção de recursos que os ecossistemas terrestres são capazes de regenerar para esse mesmo ano, começa a consumir recursos que já não são renováveis.
‘Não é preciso ser um gênio para perceber que este modo de atuar é insensato’, escreve Mancuso.
Já que sabe falar, dialogar, o homem vem ao menos tentando implementar ferramentas que possam regular as questões em torno de quem deve se responsabilizar para minimizar tanto impacto. O direito ambiental surge como um instrumento para isso.
“Ele surge, em essência, na década de 70, muito fortemente nos Estados Unidos. No Brasil surge em 1981, com a Política Nacional de Meio Ambiente e, em 1988, a Constituição garante o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. É a consolidação de um conjunto normativo básico da garantia, que começa a tratar o meio ambiente de maneira integrada e não apenas como recursos naturais isolados: proteção de floresta, dos animais, do rio, da água”, analisa Guilherme Leal.
A partir da década de 90, o Brasil passa a ter normas “mais instrumentais para colocar em prática a defesa desse macro bem ambiental, desse direito que se passou a reconhecer”.
O advogado situa o início do século como a era em que os tribunais entram na discussão, junto com o Ministério Público, na interpretação e compreensão do que diz a lei. Na interpretação de Guilherme Leal, a sociedade civil passa a abraçar mais a pauta, e o mundo fica menor, com a Internet.
“Normas e leis editadas na Europa são recebidas aqui no Brasil instantaneametne e de maneira muito acessível, com tradução imediata e com uma percepção de que existe uma causa comum em todo o mundo e que a sociedade civil se identifica demais com essa pauta”, disse ele.
Greta Thunberg, a jovem sueca que tem sido arauto da inércia dos líderes, é um exemplo dessa sociedade que passa a atuar sem dourar a pílula. Finalmente parece ter caído a ficha: vivemos num único mundo, e precisamos atuar em conjunto para garantir vida às futuras gerações.
É preciso que se diga que este foi o significado de desenvolvimento sustentável escrito em “Nosso Futuro Comum” em 1987… A história não nos deixará esquecer.
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Jornalista, durante nove anos editou o caderno Razão Social, encartado no jornal O Globo, que atualizava temas ligados ao desenvolvimento sustentável. Entre 2013 e 2020 foi colunista do G1, sobre o mesmo tema. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde as questões relacionadas ao meio ambiente, ao social e à governança são tratadas sempre com ajuda de autores especialistas.