No bairro Castelo Branco, em Salvador, as mãos de Ana Girlene Pereira dão novas funcionalidades ao que para muitos seria considerado lixo. Munida da máquina de costura, agulhas e linhas, um pedaço de jeans usado se torna uma bolsa. Ao redor dela, outras mulheres fazem o mesmo: resgatam resíduos têxteis, promovendo a economia circular e ainda garantindo sua fonte de renda. No Brasil, segundo dados da Sebrae de 2023, somente 20% dos materiais têxteis produzidos são reciclados — faz parte desse dado o projeto Repense Reuse, que promove a circularidade desses materiais e apoia a cooperativa Costurando Sonhos, da qual Ana Girlene participa.
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Todo o material (como roupas, sapatos e acessórios) é recolhido pelo projeto por meio de 180 contêineres espalhados pelo estado da Bahia, instalados em locais como shoppings, supermercados e praças públicas, e em 2024 foram 280 toneladas de materiais têxteis coletados — 430 toneladas considerando Brasília (DF) e Aracaju (SE), onde o projeto também está presente. A gestora de implementação do Repense Reuse, Cláudia Andrade, explica que a iniciativa “chegou ao Brasil em 2021 e promove o desenvolvimento sustentável através da reutilização de peças têxteis, que seriam descartadas em aterros, criando alternativas e lógicas produtivas sustentáveis”.
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Veja o que já enviamosApós a coleta, o material é encaminhado para um centro de triagem, onde há um processo de curadoria do que pode ser reaproveitado. Os itens em bom estado vão para Lojas Humana — que ficam nos bairros de Itapuã, Piedade e Uruguai. O restante é direcionado para costureiras e sapateiros transformarem em novos produtos. Já o lucro das lojas é encaminhado para projetos sociais em comunidades em situação de vulnerabilidade, onde são promovidos, por exemplo, cursos de capacitação em corte e costura e em confecção de acessórios. O projeto conta com mais de 70 colaboradores, todos formais – mulheres são maioria.

A associação Humana Brasil, responsável pela iniciativa Repense Reuse, auxilia a formação profissional de mulheres por meio de outros projetos, como o Mulheres Rurais, que impulsiona a agricultura familiar e a economia solidária; o Pretas 40+, que oferece para mulheres afrodescendentes cursos de culinária com ênfase no aproveitamento de alimentos; e o Projeto Futuro Aberto, que ensina corte e costura e resultou na formação do grupo produtivo Costurando Sonhos. “Me sinto muito feliz de fazer parte desse grupo que ajuda as mulheres a saírem de momentos de dificuldade na vida. Hoje estamos formadas e ajudando outras mulheres do bairro. Ser cooperada foi um divisor de águas na minha vida”, conta Ana Girlene, do Costurando Sonhos.
Ana é uma mulher de 55 anos, casada e mãe de dois filhos. Ela sustenta sua casa financeiramente graças à formação de costureira oferecida pela Humana Brasil. A oportunidade veio durante a pandemia, em 2022: “foi quando conheci esse centro que estava oferecendo os cursos de corte e costura e costura criativa. Era o meu sonho, mas nunca tive a possibilidade financeira de me capacitar nessa área”, conta Ana Girlene.
Nesse processo de circularidade da moda sustentável, o que parecia o fim de uma peça de roupa se transforma em recomeço. “Essas roupas ganham vidas nas nossas mãos. Fazemos mochilas, bolsas, necessaires, ecobags. Damos uma nova função para essas peças, que seriam descartadas no meio ambiente e dariam tanto transtornos ao meio ambiente e a nós seres humanos, e ainda nos ajuda muito na renda de casa”, conta Ana.
A coordenadora do Costurando Sonhos, Leila Flores, 38 anos, conta qual é o perfil das mulheres que fazem parte da cooperativa. “O grupo tem total apoio do Repense Reuse, tanto para o espaço, maquinário, apoio técnico, insumos, mas também para divulgação e visibilidade. A cooperativa é formada por moradoras de Castelo Branco e bairros adjacentes. São mulheres em situações vulneráveis, que não tem uma renda fixa, que tem uma família para cuidar. São empreendedoras que buscam uma atividade terapêutica, elevação da autoestima e empoderamento feminino coletivo na comunidade”, relata.
Esse modelo de circularidade, portanto, alia a redução do impacto ambiental à geração de renda para mulheres baianas. Dados levantados pelo projeto revelam que a coleta de material têxtil na Bahia evitou a emissão de duas mil toneladas de CO2 no último ano, e economizou quase dois bilhões de litros de água. Além da Bahia, o projeto está presente em Sergipe e no Distrito Federal, e ainda há planos de expansão para as principais capitais do Brasil nos próximos 10 anos, segundo explica a gestora Claudia Andrade. “Iniciamos pelo Nordeste e atingiremos outras regiões. A economia circular norteia as ações do Repense Reuse e temos como objetivo fomentá-la ainda mais, através da ampliação da rede de lojas e extensão das técnicas de reutilização criativa, que beneficia a redução de descartes e a geração de empregos para mulheres em situação de vulnerabilidade social”.
A iniciativa reflete um movimento de adesão à moda de segunda mão: dados de 2023 da Sebrae afirmam que o Brasil tinha até aquele ano 118 mil brechós ativos, aumento de 30,9% ao longo dos cinco anos anteriores. Já no cenário global, a expectativa é que o mercado de roupas e acessórios usados atinja US$ 350 bilhões até 2028, crescendo três vezes mais rápido do que o setor de moda que oferece roupas novas, segundo o relatório divulgado no último ano “Resale Report”, da ThredUp.