(Kevin Damasio e Jorgelina Hiba*) – A nova legislação europeia para banir a importação de commodities associadas a desmatamento e violações aos direitos humanos, que entrou em vigor no final de junho, pode impactar significativamente o mercado agrícola do Mercosul — bloco formado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.
Estão no alvo as cadeias produtivas de óleo de palma, soja, gado, madeira, cacau, café e borracha, além de derivados como móveis, chocolate e papel. Essas commodities representam a maior parte do desmatamento importado pela União Europeia (UE) e, sem intervenção, resultariam na perda de 248 mil hectares anuais de florestas — uma área quase do tamanho de Luxemburgo a cada ano.
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A lei europeia abrange todos os países com os quais o bloco tem relações comerciais, mas terá efeitos bastante práticos no Mercosul, que tem na UE seu maior parceiro comercial e o segundo em comércio de bens, atrás apenas da China. Em 2021, a UE comprou o equivalente a 43 bilhões de euros da região, sendo 20% em produtos vegetais como soja e café.
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Veja o que já enviamosEspecialistas consultados pelo Diálogo Chino acreditam que o maior rigor na exportação ajudará a limpar as cadeias mais permeadas por impactos socioambientais na América Latina. Mas a lei, eles afirmam, pode criar novos problemas, como a migração de danos a biomas não contemplados pela norma. Enquanto isso, setores do agronegócio e de governos locais a descrevem como protecionista.
Como lei funciona: empresas são alvo
Pela nova legislação, as empresas que exportam para a UE precisarão fornecer informações “verificáveis e conclusivas” de que suas commodities são livres de desmatamento e que seguem as leis dos países exportadores. Isso demandará o rastreamento de todos seus fornecedores, com a geolocalização de cada estabelecimento por onde os produtos passaram.
A lei manda um “sinal forte” de que o mercado sul-americano precisa agir, diz André Vasconcelos, coordenador de engajamento da Trase, plataforma que monitora cadeias de produção: “Algumas empresas já têm seus próprios processos de verificação, mas isso precisa ganhar escala e ser mais transparente”.
Uma análise recente da Global Canopy, organização responsável pela Trase, mostra que as empresas que mais impulsionam o desmatamento em zonas tropicais não estão preparadas para implementar a nova legislação, com mais de três quartos delas sem um compromisso de rastreabilidade.
“Essa é uma área onde a UE pode e deve contribuir com recursos financeiros, para haver uma divisão igualitária dos custos ao longo das cadeias,” diz Vasconcelos. As empresas terão até dois anos, a partir de junho, para se adequar, processo que, segundo a lei, contará com a assistência técnica da UE.
Luciana Téllez, pesquisadora da Human Rights Watch que acompanha as discussões sobre a nova lei, ressalta que “seu aspecto mais forte é proibir qualquer tipo de importação ligada ao desmatamento”, independente de ser legal ou ilegal. Isso, diz ela, previne que um país ajuste suas normas para legalizar mais desmatamento, além de facilitar sua implementação.
A lei também ajudará a combater as constantes violações de direitos humanos ligados à produção agrícola da América do Sul, diz Téllez. “Ela dá maior apoio aos povos indígenas que buscam o direito à terra e na responsabilização de empresas que violam seus direitos”. No entanto, acrescenta a pesquisadora, ainda há dúvidas sobre as normativas que servirão de base para monitorar esses casos.
Paralelamente, a UE realizará até 2025 uma avaliação de risco dos países exportadores, considerando dados como taxas de desmatamento e expansão agropecuária, tendências de produção e abusos de direitos humanos, conforme “evidências científicas e fontes mundialmente reconhecidas”, segundo a norma.
A partir daí, o bloco deve listar o grau de risco — baixo, padrão ou alto — de cada nação. “Essa avaliação cria um incentivo para os países adotarem reformas e limparem suas cadeias produtivas, porque no futuro a comissão pode revisar e baixar o índice de risco”, afirma Téllez.
O grau de risco impõe mais ou menos rigidez na fiscalização, por isso, alguns países já deixaram claro que devem reagir se forem considerados de alto risco. “A comissão da UE ficará sob muita pressão política de seus parceiros para rebaixar os riscos dos mercados”, diz.
Brasil: novo rumo para a pecuária?
O Brasil é um dos países que “provavelmente” inauguraria com um risco alto na lista, segundo o eurodeputado Christophe Hansen, relator da legislação.
Puxado pela soja e carne bovina, o agronegócio é o principal motor da balança comercial brasileira, sendo a UE a segunda maior cliente, atrás apenas da China. Mas essa mesma economia também impulsiona a destruição ambiental: em 2022, a agropecuária foi o vetor de 95,7% do desmatamento do país, e quase sua totalidade teve indício de ilegalidade, segundo o MapBiomas.
O desmatamento permeia várias cadeias produtivas do país, mas a da pecuária é a mais problemática, segundo especialistas. Parte da dificuldade ocorre porque ela envolve 2,5 milhões de propriedades e se divide em várias etapas: algumas fazendas se especializam na criação ou desenvolvimento, enquanto outras no abate e na exportação do bovino. Assim, é comum que o animal passe por diferentes propriedades até chegar às prateleiras de supermercados.
O maior gargalo é rastrear as propriedades dos primeiros estágios de criação do animal, explica Pedro Burnier, agrônomo e gerente do programa de pecuária da Amigos da Terra, organização que acompanha o setor. “O mais difícil de monitorar hoje em dia é quando o pecuarista da engorda compra do cara da recria, que compra do cara da cria”, afirma.
Além de seu tamanho e complexidade, a cadeia da pecuária é pouco transparente. Autoridades monitoram o setor por meio de documentos oficiais preenchidos pelos proprietários rurais. As informações são autodeclaratórias e por isso dependem da boa-fé do pecuarista. Os frigoríficos também têm sistemas próprios de rastreamento, mas não divulgam seus dados.
Essas falhas no rastreamento podem resultar na “lavagem do gado”, ou seja, quando um pecuarista multado por crimes socioambientais vende sua produção a outro regular, que leva adiante a carga com aparente legalidade.
Uma série de investigações, produzidas por organizações ambientais e veículos de imprensa nos últimos anos, tem mostrado que o gado vendido por grandes frigoríficos não raro vem de áreas desmatadas ilegalmente.
As empresas já assinaram termos de ajustamento de conduta com autoridades, por exemplo, o Ministério Público Federal do Pará. “Temos visto que compromissos são estabelecidos, mas eles não avançam,” diz Thaís Bannwart, porta-voz da campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil.
O ministro da Agricultura e Pecuária do Brasil, Carlos Fávaro, afirmou recentemente que o rastreamento total é um “caminho inevitável”, porque “aqueles poucos que cometem crimes ambientais contaminam todo o sistema”. Hoje, em torno de 80% do desmatamento no país é promovido por grandes pecuaristas nas últimas etapas da cadeia produtiva.
Diante das pressões domésticas e internacionais, o setor dá sinais lentos de mobilização. A Confederação da Agricultura e Pecuária propôs recentemente um sistema voluntário para rastrear cada um dos cerca de 225 milhões de bois brasileiros — mais do que a própria população do país, de 203 milhões.
Hoje, segundo Burnier, a identificação individual abarca só 2% do rebanho. Não à toa, a confederação estima levar ao menos oito anos para se adequar, três vezes mais do que o definido pela legislação europeia. Além disso, os dados ficariam sob o controle da entidade e não seriam tornados públicos.
Ao assumir o cargo em janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou claro que quer colocar o país em um caminho ambiental mais positivo. Seu governo lançou um plano para zerar o desmatamento na Amazônia até 2030 e planeja fazer o mesmo para os demais biomas ao longo do ano. Em seus primeiros seis meses de governo, o desmatamento caiu 34% na Amazônia, mas cresceu 21% no Cerrado em comparação a 2022.
Enquanto as taxas não caem de fato, Lula prega “a confiança mútua, e não a desconfiança e sanções”. Após encontro com a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von Der Leyen, em junho, o presidente brasileiro disse que uma lei cujo efeito ultrapassa o território europeu trará “restrições potenciais às exportações agrícolas e industriais do Brasil”.
Argentina: programa-piloto antidesmatamento
Em outros países do Mercosul, os desafios para se adequar à lei europeia são semelhantes. Na Argentina, a pecuária e a soja para exportação foram os principais responsáveis pela perda de sete milhões de hectares de florestas nas últimas duas décadas.
A soja — a maior parte em forma de farelo de soja — é a commodity argentina mais exportada, respectivamente, para Índia, China e Holanda. Já a carne bovina refrigerada tem a Europa como destino principal, embora a China seja a maior compradora de carne bovina congelada.
Patricia Bergero, subdiretora de estudos econômicos da Bolsa de Comércio de Rosário, lembra que 87% da soja é exportada, e por isso a legislação europeia “não é algo pequeno”.
“Sem dúvida haverá mudanças para os produtores, principalmente com a identificação ou o georreferenciamento da propriedade de origem do grão”, diz Bergero. “Isso atravessará toda a cadeia de valor da oleaginosa”.
Para a carne bovina, Fernando Storni, presidente da Mesa Argentina de Carne Sustentável, acrescenta que o país “precisa de uma melhora contundente no atual sistema de rastreabilidade”. Ele cobra, por exemplo, o uso obrigatório da identificação eletrônica dos animais.
Desde 2020, a província de Santa Fé testa um programa-piloto nesse caminho. Hoje, 108 dos 26 mil pecuaristas da região aderiram a um rastreamento com imagens de satélite disponibilizadas em plataforma digital.
“Alguns produtores não estão preparados, então trabalhamos com capacitação”, diz Pablo Fiore, diretor provincial da produção de carne bovina e aviária. “Por enquanto o programa é voluntário, mas quem não aderir terá menor chance de exportar”.
Juan Carlos Cotella é diretor da Aapresid, uma associação de sojicultores, e membro da ViSeC, plataforma que certifica produtores do Gran Chaco, bioma fortemente impactado pelo avanço do desmatamento.
O Chaco é onde se produz 13% da soja argentina, mas poucos agricultores adotam seu rastreamento, observa Cotella: “Há muito trabalho pela frente e não está claro como isso será conduzido no território”.
Paraguai: impactos incertos
O Paraguai é o membro do Mercosul que menos exporta commodities para a UE, mas ainda assim é relevante. Em 2020, o país destinou 6% de toda sua produção, quase tudo em soja e carne, ao bloco europeu.
Guillermo Achucarro, pesquisador paraguaio de mudanças climáticas da Base Investigações Sociais (Base-IS), celebra a aprovação da lei antidesmatamento, mas teme que ela tenha pouco efeito no país que enfrenta um “excesso de poder do agronegócio” e uma baixa troca comercial com a UE.
Nas últimas duas décadas, o Paraguai perdeu seis milhões de hectares de florestas, sendo 93% em decorrência da produção de soja e carne e da extração de madeira. Mas o processo tem desacelerado na última década, segundo dados do Instituto Nacional de Floresta.
O ministro da Agricultura do Paraguai, Moisés Bertoni, lembra que o país, assim como outras nações da região, já têm suas normativas internas para garantir o comércio de alimentos desassociados do desmatamento.
“Temos uma região do país com desmatamento zero desde 2005, enquanto na outra cada produtor protege 50% de sua área”, diz Bertoni. “Nos preocupa como a regulação será aplicada e que ela acabe excluindo os pequenos produtores”.
Fabio Villalba é um pequeno produtor de hortaliças e carne da comunidade Yacare, no departamento Cordillera e, desde 2011, integra uma associação de produtores agroecológicos. “Não há mais árvores, 90% do nosso país já está total ou parcialmente desmatado”, observa Villalba. “Não acredito que isso mudará muito com a nova lei europeia.” Apesar de sua percepção de total degradação ambiental, dados do Global Forest Watch indicam que o Paraguai perdeu 28% de sua cobertura florestal desde 2000.
Uruguai: exemplo de rastreamento
Luciana Téllez considera o Uruguai o país sul-americano mais preparado para atender às demandas da legislação antidesmatamento. Segundo ela, seu sistema de rastreabilidade do rebanho bovino já é obrigatório, além de “transparente e bem regulamentado”.
Desde 1998, o programa é reconhecido pela UE. E em 2004, o país começou o monitoramento individual do bovino, que depois se tornou o Sistema Nacional de Informação Pecuária.
“A rastreabilidade do gado bovino no Uruguai permite seguir a trajetória do animal desde o nascimento até o abate, fornecendo dados como a data e o lugar de nascimento, sexo, raça, movimentação e mudanças de dono”, explica Jorge Acosta, agrônomo do Instituto Nacional de Carnes.
Nesse processo, cada bovino ganha uma espécie de brinco, que identifica sua numeração, e um radiotransmissor, que armazena dados do animal e de sua movimentação em um formulário eletrônico.
Desde 2007, todas as fábricas uruguaias também adotam um sistema que monitora o animal do matadouro até sua destinação aos mercados doméstico ou internacional.
Com isso, a carne bovina é o principal produto da balança comercial do Uruguai. Em 2022, a UE comprou 12% da produção, ainda bem abaixo da parcela destinada à China, de 58%. Já a soja uruguaia, embora tenha aumentado seu mercado exportador, vem saindo das prateleiras da UE, reduzindo suas compras do país em 93% na última década.
Por isso, a nova legislação deve trazer menos mudanças para as cadeias produtivas uruguaias. Outro fator que reduz sua influência no país é que seu bioma predominante, a pradaria, não é contemplada pela lei europeia.
“Sua ênfase é claramente na Amazônia brasileira, então ainda veremos o que vai acontecer com outras florestas,” diz Eduardo Gudynas, membro do Centro Latino-americano de Ecologia Social.
Gudynas explica que, embora a taxa de desmatamento da vegetação nativa esteja estável, as florestas uruguaias estão degradadas, sofrendo com a entrada de espécies invasoras. “A maior pressão tem origem na conversão de matas nativas para as plantações das fábricas de celulose,” comenta o pesquisador.
Entre os dois milhões de hectares remanescentes de vegetação do Uruguai, mais da metade é na verdade de espécies plantadas, como o eucalipto.
Receio de migração de desmatamento
Mal entrou em vigor, a lei antidesmatamento já recebe pedidos de revisão. Uma das maiores preocupações é com os ecossistemas excluídos, e que, sem proteção, poderiam se tornar alvos da expansão agrícola.
“Esperamos que a revisão reconheça a grande importância ecológica das savanas arbóreas, pradarias e planícies alagadas”, diz Vasconcelos, da Trase, plataforma que analisou a vulnerabilidade dos ecossistemas não contemplados pela lei da UE.
Com as novas demandas europeias e a tramitação de uma legislação similar nos EUA, a atenção se volta também para a China — desde 2018, o principal parceiro comercial de commodities do Mercosul, com exceção do Paraguai.
Há um temor de que o fluxo comercial se desloque para mercados menos rígidos. “As exportações de soja e carne da América do Sul para a China e outros países asiáticos continuarão a causar desmatamento”, diz Hernán Giardini, coordenador da campanha de florestas do Greenpeace Argentina.
No caso da China, empresas ligadas à China Meat Association já declararam investir na sustentabilidade de suas cadeias. O compromisso não tem peso de lei, mas também prevê “aprimorar o rastreamento e a transparência” do setor.
“Pelos critérios da associação, percebemos que os chineses são muito ciosos com a pegada de carbono em sua cadeia e com a segurança alimentar, em aspectos como a melhoria de pastagens e a redução do desmatamento”, diz Eduardo Caldas, coordenador da Tropical Forest Alliance (TFA) no Brasil.
A TFA coordena a iniciativa The Beef Alliance, que trabalha com empresas do setor de ambos os países para aprimorar o rastreamento e a transparência.
No final de abril, os governos do Brasil e da China publicaram uma declaração conjunta afirmando o interesse de ampliar “a cooperação em áreas como agricultura sustentável e de baixo carbono”.
“Ainda tenho dificuldade de enxergar como esses compromissos de fato serão estabelecidos”, avalia Thaís Bannwart. “Não vimos nada de inovador, mas esperamos que a China se inspire nessas novas iniciativas e faça proposições pertinentes, já que é o maior consumidor de carne e soja do Brasil”.
*Kevin Damásio é jornalista com foco em questões socioambientais e autor do livro “Serra do Mar: a bacia do Rio Grande e seu entorno”; Jorgelina Hiba é repórter especializada jornalismo ambiental, baseada na Argentina – colaborou Yedan LI, pesquisadora do Diálogo Chino